quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Recordando Goga



Arrumando os arquivos do computador, encontrei várias anotações sobre uma figura excepcional que tive o prazer de conhecer. Juntei alguma coisa, puxei pela memória e eis aqui:
- - -
Conheci H. Masuda Goga logo depois do lançamento de “Haikai: antologia e história”. Foi assim: a Editora da Unicamp, que o publicara, participava da Bienal do Livro. No estande, fui procurado por um simpático senhor, que se apresentou: Douglas Eden Brotto. Falou-me então de um grupo que se dedicava à prática do haicai em São Paulo, na Aliança Cultural Brasil-Japão, e convidou-me para ir conhecê-lo. Creio que ele estava com mais alguém, mas não me recordo. Recordo-me, sim, que fui, no próximo sábado em que houve reunião. E foi lá que conheci Goga.
Goga praticara o haicai sob orientação de Sato Nenpuku, que liderava um amplo movimento de composição do haicai em japonês entre os imigrantes. Ao longo dos anos em que se dedicou a promover o haicai, Nenpuku teve cerca de 6000 mil discípulos. Mas nunca escreveu em português.
A produção de Nenpuku terminou por ser conhecida em nossa língua, traduzida, mas a enorme quantidade de haicais escrita em japonês, tendo como tema a natureza e a vida quotidiana no Brasil, parece esperar em vão por um trabalho sério e sistemático, que a reúna, estude e traduza, permitindo assim a sua divulgação mais ampla no país, bem como o conhecimento da língua dos imigrantes e alguns aspectos da sua adaptação ao clima, à flora e à fauna do Brasil.
Goga levou adiante o trabalho de Nenpuku, praticando o haicai na sua língua natal, mas dando um passo decisivo. Como foi amigo de Guilherme de Almeida e de Jorge Fonseca Júnior, empenhou-se na transposição do haicai tradicional para o português.
A tarefa não era fácil. O haicai não é somente uma forma fixa. Não é uma espécie de microssoneto, não é uma estrutura na qual se pode vazar qualquer conteúdo.
É certo que o “haicai” tem uma forma que, na vertente que é a de Goga, tradicionalista, exige um grande domínio da técnica e da língua literária. Mas antes de ser uma forma ou o produto de uma técnica, o haicai é um jeito de estar no mundo, uma maneira de olhar para as coisas. Um jeito de estar na linguagem, no sentido de que o estado de haicai pressupõe a contemplação, a experiência e a composição por impulso, segundo a impressão do momento. Mais ou menos como sair com uma câmera para fazer fotos pressupõe um jeito diferente de olhar para as coisas e de se acercar delas.
O primeiro problema que se apresentava, em meados do século XX, era compreender por que caminhos e com que sentidos o haicai tinha chegado ao Brasil. Não havia ainda nenhum trabalho sistemático sobre isso, nem em português, nem em japonês. Goga dedicou-se a recompor essa história, dando finalmente a público, em 1987, o volume O haicai no Brasil, publicado também em língua japonesa.
Nesse mesmo ano, junto com outros interessados, principalmente nisseis, fundou a primeira associação dedicada à prática de haicai em português, o Grêmio Haicai Ipê, e logo depois, em 1993, o Grêmio Haicai Caleidoscópio, dedicado à produção de rengas (haicais encadeados) em língua portuguesa.
Foram anos de dedicação à tarefa. Goga, nascido em 1911, emigrou para o Brasil em 1929. Seu trabalho com o haicai em português se estende de 1936 até 1987, quando dá por encerrada a primeira parte do trabalho, com a publicação do livro e a fundação do Grêmio.
Ainda havia, entretanto, muito que trabalhar, para construir o haicai brasileiro em moldes japoneses. O próximo desafio era fazer a sistematização dos índices de estação no Brasil.
No Japão, a longa prática consolidou relações unívocas entre alguns fenômenos, animais, plantas e atos humanos, por um lado, e os vários momentos do ciclo das estações, por outro. A simples menção a um pássaro, por exemplo, já convoca para o poema associações que configuram não só uma estação específica, mas também um estado de espírito tradicionalmente associado a ela. A alma do haicai tradicional repousa nessas relações unívocas, pois elas fornecem a base para o desenvolvimento particular de cada poema, por meio da glosa do estado de espírito conotado, da sua contradição, da anotação de uma variante ou, em casos mais radicais, da sua negação pela ironia ou pela piada. No Japão, a codificação dessas relações é tão importante e clara que se organizam dicionários de “kigos”, isto é, palavras que remetem a um momento determinado na sucessão das estações.
No Brasil, país de vários climas e de estações menos definidas, o “kigo” sempre foi um problema. Sua sistematização, do ponto de vista do haicai tradicional, era urgente.
Com ajuda da haicaísta Teruko Oda, sua sobrinha, foi esse o próximo passo de Goga na construção do caminho do haicai brasileiro. Após muitos anos de trabalho, ambos publicaram finalmente o volume “Natureza – Berço do Haicai” (1996), o primeiro dicionário de “kigos” brasileiros.
Por conta desse trabalho, Masuda Goga recebeu, em 2004, do Japão, o “Masaoka Shiki International Haiku Grand Prize”, que é concedido a pessoas que tiveram grande destaque na difusão internacional do haicai.
Em 2008, ano em que se comemoravam os cem anos da imigração japonesa, esse homem que dedicou boa parte da vida a promover a imigração da forma do haicai tradicional nos deixou, no dia 28 de maio. Tinha 96 anos de idade.
Sua passagem foi consentânea com os ideais da poesia que praticou.
Naquele ano, ia ser lançado, pelos seus admiradores, um concurso de haicai com o seu nome, e seria realizada uma exposição de fotografias em sua homenagem. Ia também ser lançado o meu livro “Oeste/Nishi”, que Goga generosamente tinha traduzido para o japonês, completando assim um círculo: o haicai tradicional, praticado pela colônia sob a orientação de Nenpuku, aclimatado à língua portuguesa por Goga, voltava agora à língua japonesa pelas suas mãos. É certo que eu não pertencia ao Grêmio Ipê, mas também é certo que sempre tive por ele a maior simpatia. De modo que nesse sentido se pode dizer que o círculo se fechava.
Pois bem, foi quando viajava, em companhia do filho e da nora para São Paulo, vindo do interior de Minas Gerais, onde vivia seus últimos anos, que Masuda faleceu. Trazia, como sempre, a sua caderneta, onde escrevia tantos haicais. Em certo momento, olhando a paisagem, sentiu-se cansado. Disse à nora que descansaria um pouco no ombro dela. Recostou-se e adormeceu calmamente para sempre.
Na abertura dos eventos comemorativos, que incluíam o lançamento do livro, um seu retrato o representou: sorridente e feliz, como sempre o vimos e dele me lembro agora.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Haquira e o haikai

 Quando comecei a estudar o haicai, Haquira Osakabe me disse: tem de lembrar que haicai é atividade, é sociabilidade. Ele tinha um jeito oracular de se expressar. Não concatenava as ideias com clareza lógica. Ao menos, não como eu gostaria que fizesse. Em vez disso, comunicava pelo olhar, pelo meio sorriso, pelo gesto. Tinha uma forma estranha de se expressar corporalmente. Uma vez, perante uma fala enrolada e perigosa, ele mesmo se enrolou defensivamente de um modo que não compreendi à primeira vista, pois parecia que suas longas pernas, enroscadas uma na outra, eram de material plástico e não de carne e osso. Ainda o vejo assim, e com a mão tampando metade da boca, como a impedir-se de falar. Pois aquela advertência foi assim enigmática e a frase acima é o apenas a minha tradução. Hoje me lembrei dela. Estou terminando um breve texto para um congresso. Intitulei-o “Poesia da natureza – a aclimatação do haiku no Brasil”. Faz tempo que não participo de congressos, mas uma razão afetiva me moveu a responder positivamente à organizadora, que foi tão solidária com os últimos eventos da minha vida. Talvez por isso, por esse texto ser uma resposta afetiva, lembrei-me do Haquira. Mas não só: ao longo dele ressalto como florescência nova desse transplante justamente a sociabilidade dos grêmios e dos agrupamentos virtuais dedicados ao haicai. E porque o nosso haicai tradicional é uma aclimatação em linha reta do haiku de Shiki, usei o termo japonês no título. De fato, Shiki > Kyoshi > (Mizuho Nakata) > Nenpuku > Goga > Teruko Oda > “grêmios” = haiku > haicai tradicional brasileiro. E dinamizando isso tudo, a sociabilidade, o caráter coletivo, a valorização da poesia como atividade, mais do que como produto – como queria me dizer Haquira, no começo dos já longínquos anos de 1980.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Arguição: literatura digital?

 Estou agora mesmo numa atividade que há tempos não me pegava: ser membro de uma banca acadêmica. No caso, banca de uma tese apresentada em concurso para Professor Titular numa universidade federal.

As questões que abordei na  minha participação têm a ver com o que vim refletindo aqui sobre poesia e técnica, poesia digital, inteligência artificial.

Por isso mesmo, como a arguição é uma etapa pública e aberta a qualquer interessado, pensei que não haveria problema em a transcrever aqui, já que talvez ela pudesse gerar alguma conversa também neste espaço.

 

- - -

 

Arguição da tese intitulada Antologia crítica da literatura digital brasileira.

Autora: Rejane Cristina Rocha 

Instituição: Universidade Federal de São Carlos

Data: 10 de dezembro de 2024

 

Prezada Rejane,

 

Lendo sua tese, reparei um ponto que me interessou pessoalmente, pois fui dos primeiros usuários de computador do meu Instituto e em casa. Também pude criar num CCVAX o primeiro fórum de discussão sobre haicai (e talvez o primeiro dedicado à literatura), em 1996. Vim para a Unicamp dez anos antes disso, em 1986, no mesmo ano em que foi lançado o Redator da Itautec. No IEL, em 1987 chegaram dois computadores de 8 bits, sem hard disk, com apenas dois drives para disquetes moles (floppy disks). Foi neles que compus, em 1987– usando o Redator  –, para maravilha de muitos, o primeiro livro do IEL inteiramente digitado. 

Assim que pude, comprei um computador Itautec, com um pequeno disco rígido de 30 megabytes E foi nessa máquina ou em uma um pouco melhor que pude, em 1990/91, instalar o WordPerfect e criar as macros que me permitiram fazer, em tempo recorde, a edição crítica do Camilo Pessanha. 

Por essa época, fui o segundo usuário do IEL a utilizar o bitnet por linha discada de 1200 bps. Como tinha uma namorada nos EUA – minha futura ex-esposa – e o BITNET (because it’s time of network) fosse muito ruim, consegui uma generosa autorização para usar a HEPNET (High Energy Physics Network).  

Com tanto entusiasmo profissional e tanto interesse pessoal envolvido, e como eu era praticamente o único usuário constante e apaixonado, logo fui designado Coordenador de Informática, sendo por um ano e tal o coordenador e praticamente o único coordenado. 

Enfim, o que quero dizer é que vivenciei, em casa ou na Unicamp, no espaço de 15 anos, todas as etapas do choque informático e internético.

Um ponto que me interessou pessoalmente, portanto, foram as reflexões sobre o tempo acelerado das mudanças no mundo da informática, bem como sobre a perda das informações, soterradas sob programas que já não funcionam ou sites dos quais a gente só tem uma imagem congelada e parcial. 

Camões já observava algo novo no seu tempo. Dizia ele que 'todo o mundo é composto de mudança,' mas que “outra mudança faz de mor espanto: / Que não se muda já como soía.' 

Não creio exagerar ao dizer que essa aceleração do ritmo da mudança se deveu em grande parte à invenção e disseminação da imprensa. Agora, com a invenção do computador pessoal e da internet experimentamos algo semelhante ao que registrou Camões: a velocidade da mudança cresceu espantosamente. 

            Entretanto, no que diz respeito à sua tese, outra mudança se faz de muito mor espanto. É que o livro impresso representou, no seu tempo, duas coisas: acessibilidade do conhecimento e conservação desse conhecimento, pois não se tratava mais de existirem exemplares únicos. Já a informática, junto com um enorme poder de difusão, trouxe um complicador: a perda igualmente rápida da informação, por conta da obsolescência vertiginosa do software e hardware. E não só: a desativação de domínios – por exemplo, no livro impresso Tristessa, que você analisa, deparei com esta informação, na quarta capa: “O livro original você pode ler emwww.quatro.com.br/tristessa . Mas esse domínio, como vi logo em seguida, ao tentar acessar, já não existe.

            Você se debate com algo, portanto, que a gente não imaginaria no começo da aventura computacional: a perda da informação e da memória. 

Daí que o seu trabalho seja equiparado em vários momentos da tese ao de um arqueólogo. Enquanto aquele tira o entulho e varre o pó acumulado sobre os objetos antigos, você pelo contrário lida com o que, de uma perspectiva puramente utilitária, é o entulho. 

Seja como for, é mesmo arqueologia: tem de chegar ao que está enterrado, usar instrumentos de escavação (por exemplo, emulação de programas já desaparecidos) imaginar como se comportavam os seus objetos, os seus “textos”, e imaginar o efeito de poemas dos quais só se têm fragmentos e poucos testemunhos de leitura. 

Assim como o tradutor de Safo enfrenta os fragmentos na busca infinita da totalidade impossível, assim você tenta traçar um quadro compreensivo da evolução da poesia digital, a partir dos poucos registros disponíveis. 

A terminologia também é reveladora: museu, conservação, preservação. Ou seja, em certo sentido, trata-se de um trabalho de recolha arqueológica e preservação museológica.

 

            Do meu ponto de vista, a sua tese tem dois polos de tensão, entre os quais se ramificam as questões que você nos apresenta. De um lado, pensar o sentido da experimentação poética com as inovações técnicas (hardware e software); de outro, constatar repetidamente a ruína da memória dessa experimentação e os limites para a sua preservação. 

            Do primeiro polo derivam as reflexões sobre poesia e técnica: qual o sentido da experimentação? É cedência ao mercado ou uma forma de resistência a ele? 

Do segundo, a reflexão sobre a obsolescência e a função dos estudos desse tipo de arte.

 

            Minhas questões de leitura giram à volta da relação entre a literatura (ou a arte) e a técnica. Na verdade, nem são questões, são mais comentários. E eu conto aprender ao ouvir os seus comentários aos meus comentários.

 

            A primeira é esta: você em certo ponto diz que temos de concordar com a asserção de que a arte é produzida com as tecnologias do seu tempo. Eu não entendo bem o que isso quer dizer. 

Quer dizer que um autor não pode ou não deve escrever à mão hoje? Ou que mesmo a escrita à mão pressupõe hoje a máquina de escrever ou o computador? Ou quer dizer que a forma literária é determinada apenas em parte pela tecnologia? Por exemplo: o texto fica "jornalístico", como dizem os manuais sobre alguma modernidade... Mas isso é fatal? Proust, por exemplo, vai na contramão... No entanto, mesmo se admitirmos que se torna "jornalístico", isso tanto pode ser atribuído ao fato de que a literatura é produzida com as tecnologias do tempo (máquina de escrever, telégrafo para transmitir textos etc.), quanto à vontade de imitar, de incorporar – ou seja, as tecnologias podem não determinar, mas ser emuladas pela forma literária. São, portanto, questões diferentes, porque uma coisa é a arte ser produzida com a tecnologia do tempo e ser por ela determinada; outra é a arte dialogar com a tecnologia, emulá-la por meios artesanais, ou mesmo ser apenas influenciada por ela.

 

Assim também a afirmação de que hoje tudo é digital. Penso que aí temos também duas coisas diferentes. A reprodução da obra literária implica necessariamente o digital, o número. A literatura, porém, não nasce necessariamente vinculada ao dígito no nosso tempo. Ela pode continuar sendo escrita à mão ou em velhas máquinas de escrever, ou mesmo não sendo escrita, só memorizada e transmitida verbalmente.

 

Outro momento que me chamou a atenção foi quando você pareceu ver a especificidade da questão brasileira como diretamente vinculada ao menor desenvolvimento tecnológico. Eu me pergunto se seria só isso, porque eu me recordo sempre daquele texto de Antonio Candido sobre a literatura na primeira metade do século XX, no qual ele diz que entre nós a cultura letrada “clássica”, erudita, não se tinha sedimentado. E que por isso o público recém-formado era logo capturado pelos mass-media, pela arte de massas. Quero dizer, eu entendo que nós temos uma fixação na tecnologia, apesar do nosso claro atraso nesse campo, por conta justamente de entre nós o mesmo público nascente nas cidades ter sido, por assim dizer, “bilíngue” – falando a língua da cultura letrada e a da cultura de massas ao mesmo tempo.

 

Por fim, a questão da autoria. 

 

Nas redes sociais se publica muita poesia. Mas ali também existe uma preocupação forte com a autoria: publicam-se os poemas em forma de imagem, para não se perder a diagramação, mas também para impedir a alteração. E muitas vezes o nome do autor vem escrito junto de cada poema, mesmo quando o poema vem na página pessoal do autor.

 

Ora a técnica, em si mesma, não é autoral. Ninguém sabe quem inventou o Word, ou o applet x ou y, nem mesmo o Flash. 

 

Um dos motivos pelos quais a evolução da tecnologia é rápida é que ela não é autoral, mas colaborativa, fruto de trabalho de equipe. E quando não é, os direitos negociados fazem com que ela pertença à empresa e não seja creditada ao indivíduo, o que permite modificações, atualizações, redesenho geral se for o caso.

 

Entretanto, a arte exige a autoria. Não só a assinatura, mas a vinculação a uma figura biográfica pública.

 

Por isso mesmo, a arte digital acaba por ter sempre um ar cediço: ela, ao reivindicar a autoria, congela a evolução, fixa o momento. Como a evolução é rápida, e o interesse pela arte é pequeno para justificar um investimento empresarial, o que sucede é que ela faça uma passagem muito rápida: num passe de mágica ela sai da vanguarda do namoro tecnológico para o casamento com o museu de curiosidades e antiguidades.

 

Outro ponto que me chama a atenção é que alguma arte digital não se destaca pela realização, pela qualidade ou novidade do resultado final, mas sim pelo processo de criação. Consideremos, por exemplo, o “Tombeau de Mallarmé”, de Erthos Albino de Sousa. Como você bem nota, há algo curioso no descompasso entre processo produtivo e resultado. Eu acho até que aquilo poderia ser feito com uma máquina de escrever. E, sem dúvida, num computador 8 bits, de tela CGA, ligado a uma impressora matricial. Podia mesmo ser feito artesanalmente, com Letra Set. Mas foi feito por um processo complicado de registro da temperatura de um fluido qualquer num cano. E foi esse processo que chamou a atenção da crítica, processo que, mesmo nesta tese, numa nota, é descrito em pormenor. Então eu concluo que há aí um fetichismo da técnica, não do objeto artístico.

Observo ainda que, nesse caso, no limite há um intuito analógico, patenteado pela apresentação do poema junto com a foto do túmulo de Mallarmé. Os fluidos aquecidos reproduzem o perfil do túmulo. Isso também reafirma a ideia de que o interesse desse poema está unicamente no processo, porque o resultado não é vanguarda, já que está próximo seja dos Caligramas, seja dos poemas "em forma de" que vêm desde os gregos, passando pelos barrocos e românticos.

 

 

Na mesma linha, pude também observar que em muitos casos a tecnologia é convocada "do lado de fora" do resultado textual: livros que cheiram; palavras produzidas por hologramas; palavras produzidas por nanotecnologia. etc. O que se admira nesses casos é a tecnologia. Mas o resultado, o produto, muitas vezes parece pífio em termos de linguagem. Há um caráter lúdico, quase infantil que é divertido, nisso tudo. Mas em geral o que está em pauta é a técnica, que se apresenta muitas vezes, como disse, “do lado de fora” da arte, quase como uma vestimenta. Ou uma embalagem, para lembrar a definição que Philadelpho Menezes deu a poemas de Augusto de Campos.

 

Os exemplos mais claros para mim são alguns poemas desse mesmo poeta, nos quais a tipografia ou mesmo a tecnologia servem basicamente para produzir uma dificuldade de leitura. Muitas vezes para disfarçar a banalidade do enunciado, como no poema dos livros que estão em pé na estante – um poema metrificado, convencional, “ilustrado” pela tipografia.

 

Isso é que é curioso: muitas vezes, no caso da poesia digital, como no caso de vários poemas concretos, não é que explicações sobre a tecnologia são necessárias para o entendimento do poema. A pergunta que me surge é: sem essas explicações do processo, sem o andaime do edifício, o poema não pode ser fruído – o edifício não pode ser habitado? Ou a fruição é na verdade do que é explicado de tecnologia ANTES do poema, como preparação, ou DEPOIS dele, como justificação?

 

Por fim, eu pensei: se a tecnologia é a estrela da festa, por que reivindicar para o produto o nome “poesia” ou “literatura”? Creio que essa é uma questão importante: reivindicar o nome é reivindicar uma forma de leitura, uma disposição do receptor. E também uma reivindicação de pertencimento: eu pertenço à família literária, portanto não sou um produto apenas tecnológico; sou par de Dante, Homero, Baudelaire, Pound etc.

 

Isso tudo está muito corretamente visto na sua tese. Mas voltando à poesia digital: o que nela é apresentado e o que nela é dito? Normalmente, como em alguns poemas de Augusto, o que é dito é apenas uma reflexão sobre o dizer e o ler e interpretar. É metalinguagem. Portanto, a questão é: sem o parasitismo da metalinguagem, remetendo aos novos meios e técnicas, o que esse tipo de poesia tem a dizer? E por conta da dependência da tecnologia e da obsolescência rápida das linguagens e equipamentos, é possível imaginar que se possa escrever um equivalente cultural (no sentido da permanência e da influência sobre o futuro) de uma Ilíada ou de uma Mensagem ou ainda de uma Máquina do Mundo com esses recursos? São questões para responder em outra tese, com certeza, mas que não consegui me impedir de pensar.

 

Uma última observação tópica diz respeito ao uso da palavra “paideuma”. Paideuma tinha um sentido de hierarquia em Pound, está claro; mas também um sentido de rendimento, de economia. Um paideuma seria um elenco de autores que permitiria às próximas gerações ir direto ao que importava, sem perder tempo com coisas que não valiam a pena. 

 

Mas aí me pergunto: no caso da arte digital o paideuma funciona? Perguntei-me isso porque não dá para ir direto ao material, que tem de ser objeto de uma reconstrução arqueológica. Assim, não é possível ao destinatário do paideuma ter acesso às obras tidas como essenciais para o desenvolvimento de sua própria obra. Só à sua descrição e a uma antologia involuntária, que são os fragmentos recolhidos em museus. Se não são acessíveis as obras, pode-se falar em paideuma, no sentido poundiano?

 

O comentário acima não era de fato o último, porque me parece que quanto à arte digital talvez já se possa falar de uma quarta geração. Até este momento, a definição geracional passava pela questão da técnica, dos meios técnicos. O caráter de experimentação se referiu quase sempre à exploração das possibilidades técnicas do software e do hardware por um autor. Mas já há cerca de dois anos começou a haver algo novo: o digital incorporado à literatura não no instrumento, no meio ou na linguagem - mas na própria criação, com a inteligência artificial. É possível pensar agora numa literatura do prompt - uma literatura que é toda ela digital, desde a "escrita", e que pode encontrar ou não uma forma física. E, sim, quando a IA escreve um livro e ele é impresso temos algo muito diferente de quando um livro era interpretado digitalmente. É algo como um caminho inverso. E isso também daria uma outra tese!

 

Não sendo o caso de fazer teses e mais teses, resta-me cumprimentá-la pela que nos apresenta, e aguardar os comentários que julgar interessante fazer em resposta aos meus.

 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Memórias da FFLC Araraquara

         Depois de muitos anos, conversei ontem por WhatsApp com Zina Bellodi. Zina foi minha professora em Araraquara. 

Durante a conversa, lembrei-me daqueles anos em que me deparei com o maior tesouro: uma enorme biblioteca com acesso livre. Nada de pedir o livro no balcão, aguardar, folhear, decidir que não era aquilo e galopar até o fichário para conseguir os dados para outro pedido. 

Entrar naquela biblioteca acolhedora, principalmente no novo campus, era uma coisa; sair, era outra. A serendipity fazia o seu trabalho com perfeição. 

Aquelas manhãs e tardes na biblioteca e o canto altíssimo das cigarras são as memórias mais persistentes daqueles anos de formação.

No que toca à formação propriamente dita, ou melhor, das aulas, persistem as memórias das longas horas sob o comando do Jorge Cury – com sua rabugice tão famosa, quanto a sua paixão pela literatura lusa –, da lenta decifração francesa dos contos e poemas de Gérard de Nerval e outros poetas a quem me afeiçoei, e das aulas de Teoria Literária – que, naqueles tempos, significava basicamente o livro de Wellek e Warren. Veio daí a  minha formação eclética, em que eu combinava sem contradição aparente (e contra os preceitos da professora de Teoria Literária) a explicação de textos francesa (muito externa, às vezes, e biográfica) e a nova crítica americana.

Quando me pus a refletir sobre isso, deparei com um texto em que Antonio Candido em que ele também afirma que a junção desses dois polos também animava o seu trabalho. Foi numa entrevista de 2011: “talvez eu seja aquilo que os marxistas xingam muito que é ser eclético. Talvez eu seja um pouco eclético, confesso. Isso me permite tratar de um número muito variado de obras.” Se pusermos esse paradigma eclético a serviço de uma perspectiva marxista, para a qual o objetivo último da análise literária é a compreensão do movimento social, temos o segundo momento do Candido – momento esse em que não o segui. Não por ter alguma prevenção contra o marxismo, mas porque eu preferi, sempre que foi o caso, fazer o caminho inverso: ter a compreensão da obra literária como objetivo último (e único, talvez) do meu trabalho, colocando a seu serviço o que for preciso, inclusive a compreensão possível do movimento social.

Isso, penso agora, deve ter sido ainda produto da impregnação wellekiana, daqueles verdes anos.

            Por isso mesmo, num texto de um livrinho sobre o ensino da literatura escrevi isto: “Ao mesmo tempo numa disciplina denominada Teoria da Literatura, líamos o livro de René Wellek e Austin Warren, que marcou época no Brasil, promovendo a crítica dos métodos que atenderiam à “demanda extrínseca do estudo da literatura” e valorizando aqueles que promoviam o seu “estudo intrínseco”. [...] Olhando agora o meu velho exemplar dos tempos da faculdade, vejo nas profusas anotações a lápis nas margens do capítulo sobre mito e metáfora (e em outros) o quanto a clareza do vocabulário e o rigor analítico da exposição foram um deslumbramento para mim. Como foi também muito importante outro manual, igualmente marcado pela perspectiva formalista, Análise e interpretação da obra literária, de Wolfgang Kayser, que desempenhava um papel complementar ao de Wellek.”

            A disciplina de Teoria Literária, poderia ir sem dizer, era a da Profa. Zina, com quem conversei ontem à noite, conversa essa que despertou em mim novamente, naqueles momentos em que não se está plenamente desperto, nem totalmente adormecido, estas velhas recordações do campus calorento e sua biblioteca infinita.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Textos sobre inteligência artificial neste blog

  

1-    Análise de haicai 

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/7635535975447774395

 

2 – Composição de soneto

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/4897252241031158659

 

3 – Um dístico latino

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/6389982462619581276

 

4 – Escrita de poesia 

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/4247847397337859988

 

5 – Eliot e a IA

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/5125068848031893630

 

6 – Tradução e IA

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/5756432131876187924

 

7 – New Criticism e IA

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/4858346554281861182

 

8 – IA e autoria

https://www.blogger.com/blog/post/edit/6115202270491811482/5947458456677344362

 

Inteligência Artificial - 8 - O que a IA nos mostra

 Nessas provocações que tenho feito quanto à capacidade da IA de fazer poesia, há um ponto que tenho achado interessante considerar. É que a maior parte de nós boa parte do tempo faz pastiche, assim como a máquina. Vamos lendo, acumulando ideias, procedimentos, imagens, imitando e tentado nos livrar da “influência”, dando um uso criativo a essa dinâmica etc. E nesse arranjo, quando conseguimos, inserimos a nossa nota pessoal, original ou o que seja. Mas penso que duas coisas entram em ação para confundir o debate quando falamos de IA. Primeiro, a ideia romântica do gênio, da individualidade capaz de radical originalidade. Depois, a ideia, que ora é antagônica, ora é complementar a essa, da autonomia do objeto estético. Com o New Criticism e com o Estruturalismo aprendemos na escola que o texto deve falar por si, que vale pela sua estrutura, pela sua concretude, independente de intenção ou propósito do autor. A história da poesia (e da literatura, claro) poderia ser contada como uma história de evolução das formas, quase ou totalmente apagando os autores. Mas essa sim parece uma falácia, em muitos sentidos. Porque talvez haja mais entre um texto e seu autor do que supõe a vã visada autonomista. Esse mais é algo que eu tenderia a chamar de personalidade ou mesmo de biografia literária. Que é diferente da biografia no sentido estrito. Principalmente da personalidade, num sentido psicológico. É uma imagem autoral que permite dinamizar o texto, interpretá-lo e reconhecer nele qualidades estéticas que, sem ela, não teriam a mesma força ou o mesmo sentido. Um bom exemplo é Manuel Bandeira. Sem a sua imagem autoral, sem a sua – por assim dizer – biografia pública, literária, gostaríamos do seu porquinho da Índia? Da sua Irene no céu? Da sua andorinha, andorinha? Dos seus cachorrinhos bebendo água? Escrito por um autor do qual nada soubéssemos, o porquinho não seria terrivelmente piegas? Se assinado por um estudante e entregue a um professor, que seria do poema da Irene ou da conversa com a andorinha? Além disso, há o estilo. Seria imaginável qualquer um desses três poemas saindo das famosas dores de cabeça do João Cabral? Portanto, a questão que me parece interessante no caso da IA é: um texto poético muito bem escrito e estruturado, incluindo ainda originalidade no tratamento do tema (porque pode-se programar a aparição do inesperado e aleatório – é só questão de tempo) poderá ser recebido e lido como boa poesia? Penso que essa questão é importante principalmente porque nos mostra a expectativa que temos com relação à poesia. Talvez com relação à música esse problema não se apresente com a mesma complexidade. Com o design industrial certamente não. E com a arquitetura, o que seria? Ou seja, as provocações visam a escarafunchar um pouco a nossa expectativa frente a um texto que identificamos como poesia. Apenas isso.