quinta-feira, 7 de junho de 2012

Guilherme de Almeida e a história do haicai no Brasil


Guilherme de Almeida e a história do haicai no Brasil

[publicado como prefácio a: Guilherme de Almeida, Haicais completos. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão, 1996 - republicado no livro Estudos de literatura brasileira e portuguesa]

Entre os patronos do haicai no Brasil, Afrânio Peixoto divide com Guilherme de Almeida as honras maiores de introdutor da forma no país. De fato, se foi Peixoto um dos primeiros cultores dos tercetos mais ou menos aproximados do haiku japonês, foi apenas com Guilherme de Almeida que um determinado tipo de poema chamado de haicai atingiu um público mais amplo, levado na esteira do grande prestígio popular de que desfrutava o poeta campineiro nas décadas de 30 e 40.
Nesse sentido, de vulgarizador de um nome exótico e de praticante de poesia em tercetos de dezessete sílabas, Guilherme de Almeida – como diz H. Masuda Goga – "estimulou o abrasileiramento da mais concisa poesia de origem japonesa". Mas será verdade que, num nível mais profundo, a sua prática de poesia em tercetos teria estimulado o abrasileiramento do haicai? A resposta a essa pergunta dependerá, é claro, do que entendermos por abrasileiramento, pois é verdade que o haicai guilhermino fez escola e que mesmo hoje em dia ainda encontramos vários cultores da forma poética que ele denominou haicai. Entretanto, de meu ponto de vista, antes de podermos responder claramente a essas questões essenciais, é preciso determinar o que, de fato, Guilherme de Almeida entendia por haicai, e quais eram as características que atribuía a esse tipo de poesia quando falava dela e quando a escrevia.
Para compreender o papel de Guilherme de Almeida na história do haicai no Brasil, devemos ter em mente a forma pela qual esse tipo de poesia japonesa chegou ao nosso país e aos nossos meios literários. Contrariamente ao que se poderia pensar, não foi devido ao fato de termos aqui a maior colônia japonesa do mundo que o haicai se tornou uma forma literária da poesia em português. De fato, o haicai aportou no Brasil vindo da França, num primeiro momento, e dos países de língua inglesa, num segundo. A princípio, o haicai comparecia apenas em livros de viagens, como exemplo do miniaturismo japonês. Depois, em traduções livres, como ilustração da sensibilidade delicada e exótica do Extremo-Oriente. Só por volta do segundo e terceiro decênios do nosso século o haicai passou a ser objeto do interesse de um maior número de poetas e de um público mais significativo. Foi nesse momento que Guilherme de Almeida, tendo tomado conhecimento do haicai por via francesa e, depois, por intermédio de um grupo praticante de haiku em São Paulo, desenvolveu uma ação que visava, como ele mesmo diz num dos textos deste livro, transplantar o haicai e dotá-lo de uma "disciplina rígida". Vejamos em que consistiu a sua ação.
Do ponto de vista da composição física do haicai, Guilherme de Almeida propôs-se a resolver um problema que se vinha arrastando desde os primeiros momentos de registro e de tradução do haicai: a questão da forma métrica e do uso ou não das rimas.
Desde as primeiras tentativas de tradução para o português – que parecem ter sido as de Wenceslau de Moraes, na virada do século –, o haicai apresentava um problema de métrica. No original japonês, o poema tinha 17 sons (mais exatamente, 17 durações). Traduzir o haicai em 17 sílabas poéticas, distribuídas em três versos de medida diferente (5, 7 e 5 sílabas) e sem rima, não parecia um bom caminho. Quer dizer, do ponto de vista musical o haicai não tinha, a rigor, uma estrutura reconhecível e assimilável à nossa tradição. Era difícil perceber qualquer ritmo nessa distribuição de versos sem rima e com número diferente de sílabas e foi por isso que Wenceslau de Moraes tratou de traduzir os tercetos japoneses em forma de quadra popular portuguesa: para conseguir um equivalente, na nossa tradição, do metro mais corrente em língua japonesa. A solução, entretanto, não parecia completamente adequada, uma vez que o ritmo ternário da composição – isto é, a exposição dos conceitos em três segmentos poéticos –, tem, muitas vezes, bastante importância no haicai japonês.
Guilherme de Almeida, que era um bom ritimista do verso português, ao defrontar-se com esses problemas tratou logo de adaptar o haicai às necessidades formais da nossa tradição poética, mantendo de certa forma o ritmo estrófico ternário.
Começou por atribuir um título ao terceto, o que lhe permitia aumentar um pouco o tamanho do mesmo e torná-lo mais palatável por essa espécie de orientação de leitura que um título muitas vezes proporciona. Também tratou de dar ao poemeto uma estrutura rímica muito cerrada, de modo a tornar musical – em nossos termos – o que de outro modo poderia parecer um tanto desarticulado. Na estrutura de versos de cinco/sete/cinco sílabas métricas dispôs duas rimas: uma unindo o primeiro com o terceiro verso, e outra interna ao segundo verso, ocupando a segunda e a última sílaba. Eis um exemplo, com as rimas sublinhadas e seguidas de um esquema simplificado:

           Por que estás assim,               – – – – a
   violeta? Que borboleta           – b – – – – b
   morreu no jardim?                  – – – – a
 
Com esse recurso, Guilherme de Almeida conseguiu ampliar a regularidade métrica, pois, marcados pela rima, temos agora as seguintes seqüências métricas: cinco sílabas, duas sílabas, cinco sílabas e, de novo, cinco sílabas. Isso dá, tanto quanto possível, um andamento marcado e reconhecível ao poemeto, com três segmentos isossilábicos e um quebrado perfeitamente assimilável à acentuação do pentassílabo.
Quando lemos ao acaso alguns dos poemas que estão neste livro, é muito sensível o ritmo que a distribuição das rimas concede aos tercetos, bem como a maestria com que o poeta trata a alternância das seqüências de duas e de cinco, ora deixando a rima interna sem destaque, ora fazendo-a coincidir com uma pausa sintática, e por fim, como no seguinte poema, sobrepondo à distribuição das sílabas em segmentos de duas e de cinco sílabas pela rima, uma distribuição sintática inversa, em segmentos de cinco e de duas sílabas:

Noite. Um silvo no ar.
Ninguém na estação. E o trem
passa sem parar.
Muitas vezes tem havido debates, nos círculos haicaísticos, sobre se o modelo de Guilherme de Almeida é ou não é uma boa forma de verter o haicai em português. A discussão, quase sempre, gira à volta do uso das rimas, e, mais do que isso, do uso de rimas fixas e algo virtuosas. De fato, ao fazer incidir a noção de disciplina sobre um aspecto tão exterior quanto a métrica e a rima, Guilherme de Almeida propõe um haicai que é uma espécie de micro-soneto parnasiano, um lugar de exibição de perícia técnica. Em princípio, essa espécie de disciplina nada tem a ver com o haiku japonês, mas tampouco impede que se produzam haicais interessantes. A questão, de fato, situa-se em outro nível: ao propor o haicai como terceto cheio de prescrições métricas e rímicas, Guilherme de Almeida nos mostra que está pensando em aclimatar basicamente a forma do haicai. Ora, se essa forma é aclimatada com inovações tão relevantes quanto a rima fixa e a contagem silábica ocidental, o que é que se está, de fato, aclimatando? Entretanto, mesmo a questão das rimas e da métrica é secundária, comparada à outra invenção guilhermina, que é o título atribuído a cada haicai. De fato, lidos sem o título, alguns dos seus poemas, como os que acabo de citar, deixam-se ler como haiku. Com o título, que é uma prática totalmente estranha à tradição do haiku, praticamente nenhum.
De meu ponto de vista, os tercetos de Guilherme de Almeida fracassam como haicais não pela rima e pela métrica preciosas e afetadas, mas pela atitude que se explicita quando os lemos com os títulos que têm. Num dos textos aqui recolhidos – Os meus haicais –, o leitor poderá encontrar uma espécie de análise do poema pelo próprio autor. Lendo a explicação do poeta e observando-se o poema, percebe-se claramente qual a função do título que o poeta atribui aos seus tercetos. Percebe-se mais: qual é a orientação do seu discurso, que é metafórico do ponto de vista da concepção, e sentimental do ponto de vista da disposição de espírito.
Vejamos aqui só um exemplo elucidativo. Este poema:

Desfolha-se a rosa.
Parece até que floresce
O chão cor-de-rosa.
Lido assim, sem título, é um haiku. Não, é claro, por causa das rimas e da métrica. Talvez mesmo apesar delas. É um haiku porque é objetivo. Mais exatamente, é haiku porque nele se contrapõe a uma observação predominante muito objetiva uma percepção fugaz e pessoal. E também porque é visual, até mesmo num sentido icônico: o desfolhamento da rosa se representa, de alguma forma, pela posição das palavras – no primeiro verso está a rosa que se desfolha, no último o chão onde caem as pétalas; no central, aquilo que une os dois planos num todo significativo, a observação pessoal do poeta, a sua ilusão de que a flor transitou do galho para o solo. Não há sentimentalismo, nem qualquer intenção simbólica ostensiva.
Leiamos agora o comentário do poeta: "A flor, que se desfolha, é bem uma lição de alta caridade: dir-se-ia que ela se despe do que é seu, que ela toda se dá à terra humilde, para que o pobre chão, a seus pés, pense que também é capaz de florir". Há um abismo entre os versos e este comentário piegas e banal. O poema, porém, poderia conservar-se bom poema e com sabor de haiku, apesar do comentário, não fosse o gesto decisivo do poeta em franquear a sua intenção moralizante por intermédio de um título. Eis como se lê o poema, na sua forma completa:

CARIDADE
Desfolha-se a rosa
parece até que floresce
o chão cor-de-rosa.
É muito sensível, não só neste caso extremado, mas em todos os outros, que o título empobrece os textos, pois determina a direção da leitura ou força uma decifração metafórica do terceto que nomeia. Apresentados com o título que têm, os tercetos de Guilherme de Almeida quase nunca provocam aquele tipo especial de emoção que nos é transmitida por um bom haicai de Issa ou Buson, mesmo em tradução para outra língua. Definida uma tal orientação da leitura, os haicais, dotados ou não de estrutura métrica e rímica compatível com a tradição da língua portuguesa, perdem aquele modo específico que aprendemos a identificar com o haicai. O que não os impede de ser, às vezes, bons poemas, em outra clave de leitura.
O ponto que queria sublinhar com esse exemplo é que não reside na estrutura métrica ou na utilização de rimas o sabor ou a ausência de sabor de haicai num dado poema, mas na disposição interna do discurso que se apresenta nesse texto. Por isso, fracassou sempre tão redondamente a tentativa de aclimatar o haiku a partir de um trabalho de pesquisa formal, de virtuosismo rímico e métrico. E por isso também a simples inclusão de um título pode contribuir tão decisivamente para alterar por completo a percepção que temos a respeito da classificação genérica de um poema apresentado a nós como haicai. Repetindo de outra forma: o que permite caracterizar um poema breve como haicai não é a forma externa adotada pelo poeta, mas sim uma determinada atitude discursiva que o poema deve fazer supor ou manifestar. Menos do que uma aclimatação, portanto, o trabalho de Guilherme de Almeida consistiu apenas em encarar o haicai como uma forma relativamente neutra, a que se conforma um discurso poético orientado quase sempre de acordo com a nossa própria tradição.
Num outro texto recolhido neste volume, o poeta nos dá a sua definição de haicai: "anotação poética e sincera de um momento de elite". A definição é interessante, pois apela para a sinceridade e para o caráter imediato do haicai. "Anotação sincera de um momento" – dificilmente se conseguirá juntar três palavras mais significativas para a arte da poesia de haicai. Porém, partindo de um conhecimento muito limitado do que fosse o haiku japonês – como se vê nos textos aqui recolhidos, o poeta acreditava mesmo que os haiku tivessem títulos e que o furuike ya (o velho tanque...) se chamava Solidão! –, Guilherme de Almeida acabou por não perceber que essa poesia que tanto o fascinava nascia de uma radical recusa ao sentimental e ao emotivo e de um apego igualmente radical à percepção mais imediata, à sensação concreta, visual, auditiva, tátil ou outra. Por não ter percebido isso é que também não percebeu completamente a função da palavra de estação (kigo) no haiku japonês.
Mas na composição, na prática dos seus versos, se deles eliminarmos os títulos que os destroem enquanto haicais, podemos ver que várias vezes Guilherme de Almeida captou a essencialidade do haicai, fazendo com que a fugacidade de uma sensação ecoasse nas diversas cordas da sensibilidade e da memória, num terceto vibrante. Como neste caso:

Um gosto de amora
comida com sol. A vida
chamava-se: "Agora."

De novo, como no caso de "Caridade", sem título o poema se deixa ler como haicai: o gosto da amora (que é o kigo, pois representa uma determinada estação do ano) está no presente do poema, é sentido pelo poeta enquanto poeta. Essa sensação lembra outra, o que a intensifica e abre espaço para a evocação (algo sentimental para haicai, é verdade) de um momento passado de plenitude. Já com o título de "Infância", o gosto de amora faz parte do passado, é lembrança de um gosto, evocação mental e não sensação imediata. Com o título, a amora não é mais um kigo no sentido funcional de disparar uma determinada emoção. Agora, é o sentimento que recria a sensação como símbolo do bem perdido. Sem o título, podemos ler o poema num registro de -haicai, numa atitude de haicai. Com o título, reencontramos os limites da nossa própria tradição e temos já um outro texto, que faz parte de outro registro genérico.
Numa entrevista publicada em 1941, Guilherme de Almeida dizia, sobre a questão do título no haicai: "o título, no haicai é como o verbete num dicionário: o texto definirá o título". Infelizmente não é assim, e, no seu caso, o título é que define o texto. Tivessem sido publicados sem ele, um bom número dos tercetos que o leitor encontrará a seguir seriam bons haicais e o poeta teria, apesar da ostentação de virtuosismo, um lugar ainda mais relevante na história desse tipo de poesia no Brasil.

Lavoura arcaica - depoimento


BALIZA E FAROL



[Depoimento publicado no jornal Rascunho, de 15 jan. de 2006]





Li Lavoura arcaica assim que foi publicado, em 1975. Pareceu-me, de imediato, uma obra grandiosa e diferenciada do que então eu podia ler do que se publicava.

Impressionaram-me, em primeiro lugar, a potência e a riqueza das imagens, e o tônus daquele discurso torrencial, que se derramava intenso página, após página, mesclando a simbologia dos elementos básicos da vida rural e o acervo das parábolas bíblicas com um vocabulário organicista, quase naturalista, de gosto meio mórbido. Uma mistura que me lembrava, também por representar a irrupção do desejo carnal e profanatório no meio de um universo construído com as tintas violentas do sagrado, a leitura a que me dedicava com mais entusiasmo naquele último ano de faculdade: a poesia e a prosa confessional de Baudelaire.

Também me causou forte impacto a cerrada fatura da novela, com os vários planos nos quais se modulam a voz do narrador e a voz das personagens, principalmente a voz do pai, que é glosada, imitada, incorporada e, ainda assim, a cada passo, combatida pelas explosões de ira e de incontinência da voz da personagem narradora.

Quando li o livro, o país vivia ainda sob a ditadura. A leitura dos textos contemporâneos tendia, por costume e por desejo, ao registro alegórico. Nalguns, a denúncia alegórica era lida de modo mais explícito. Em outros, do que então se chamava “realismo mágico”, a operação era mais difícil e nem sempre bem sucedida. Ao mesmo tempo, era sensível certa desconfiança em relação a textos nos quais os dramas da consciência e das paixões aparecessem ostensivamente desvinculados da situação política pela qual o país passava. Talvez fosse possível ver na figura opressiva do pai e no isolamento da família, uma alegoria da situação do país, na qual mesmo o espaço privado era submetido a uma autoridade feroz, e a saída era a loucura ou o crime. Mas isso nada valia frente ao sentido “arcaico” do livro, isto é, face à sua força específica, que vinha de se apresentar como um texto fora do tempo, no qual o que contava eram as paixões humanas, uma espécie de revivescência de mitos, medos e anseios terríveis, isto é, uma espécie de tragédia.

Lavoura arcaica, naquele momento, assim, teve então para mim um sentido e um ar de família que não sei se hoje eu me atreveria a reconhecer. Mas na época em que li o livro recém-lançado, a minha impressão era a de que se tratava de um escritor que eu só podia aproximar, no momento, da forma de escrever de Clarice Lispetor.

Desde 1975, quando o li duas vezes em seguida, não tinha mais lido o livro.  Agora, para este depoimento, li-o pela terceira vez.

A impressão do poder verbal se renovou inteiramente. Mas já agora a impressão geral de potência e de beleza feroz se deixou em parte empanar pela evidenciação dos procedimentos narrativos. O desenvolvimento ternário das notações, em forma de amplificação, por exemplo, o paralelismo ostensivo entre as frases ao longo de um mesmo parágrafo, que me haviam passado despercebidos nas leituras juvenis, agora vieram para primeiro plano e tiveram um efeito de cansaço, de alguma monotonia, que estava ausente. Especialmente o processo de repetição ternária, para amplificar uma imagem ou registro, que se torna mais recorrente ainda no último terço do livro.

São, porém, passados 30 anos entre uma leitura e outra. E se esse foi todo o desgaste causado ao livro, tendo em vista os muitos textos que ele gerou, não creio que haverá outros mais, e que Lavoura arcaica terá ainda um longo tempo como baliza e farol para a escrita em prosa contemporânea no Brasil.

domingo, 3 de junho de 2012

Os sonetos do Só, de António Nobre


Os “Sonetos” do , de António Nobre



[texto apresentado  no colóquio Nobre/Nemésio, realizado na FFLCH/USP, em 2001]


Quando comecei a pensar nos sonetos de António Nobre, estava lendo o na segunda edição, a última em vida do autor.
            Minha primeira observação foi que, no conjunto de 8 seções que compõem o , apenas uma se nomeia aparentemente segundo a forma dos poemas nela dispostos: justamente a dos “sonetos”, integrada por 18 peças, sem título e numeradas seqüencialmente. As demais se nomeiam ou de acordo com o recorte temático (nesse caso, é ainda preciso separar as que levam o nome do poema único que encerram e as que englobam vários poemas e têm nome diferente de qualquer deles), ou de acordo com o tom, o registro genérico dos poemas, “elegias”.[1]
            Dessa constatação, decorre muito naturalmente uma questão crítica: seria “sonetos” uma designação apenas formal? Isto é: “sonetos” significa “o conjunto dos sonetos do Só?”. A questão se apresenta, durante a leitura, porque o penúltimo poema da seção imediatamente anterior é um soneto: o intitulado “Menino e moço”. Se “Menino e moço” é um soneto e não está no conjunto denominado “sonetos”, algo parece estranho. Assim também o percebeu Amorim de Carvalho, que no seu Tratado geral da versificação, tratou de descobrir uma explicação para a aparente contradição. De fato, observando que, “Menino e moço” sendo um soneto em versos alexandrinos, seu oitavo verso é decassílabo, especulou desta forma: “A anomalia dum só verso, fácil de corrigir, mas que António Nobre quis manter – era, ao tempo, já uma certa ousadia –, explicará por que o poeta colocou o soneto fora do conjunto dos seus sonetos do ?”.[2]
            Se tivesse estendido sua indagação à totalidade do , Amorim de Carvalho veria que essa explicação não funciona, pois na seção denominada “Elegias” existem dois outros sonetos alexandrinos sem qualquer problema de heterometria: “Santa Iria” e “Enterro de Ofélia”.[3]
Ou seja, são 3 os sonetos que não integram a seção “Sonetos”. Portanto, podemos já dar por certo que esse título não significa “o conjunto dos sonetos do ”. Ora, se não é uma marcação que indica uma constante formal, só resta buscar outra explicação para o título. Na minha opinião, ‘sonetos’ é uma referência ao livro mais prestigioso denominado de acordo com a forma, surgido nos anos de formação de Nobre: os Sonetos de Antero, concebido e divulgado como um livro de autobiografia intelectual. Nas palavras do seu autor: “Ele forma uma espécie de autobiografia de um pensamento e como que as memórias de uma consciência”. Ou, no dizer de Oliveira Martins, uma coleção de poemas que se organiza de forma simultaneamente “biográfica e cíclica”.
Entretanto, para compor essa “memória de um pensamento”, ou esse desenho “biográfico e cíclico”, a ordenação dos sonetos de Antero foi feita tendo como critério organizativo a suposta cronologia dos textos. O que parece muito razoável, num tempo em que poesia e vida, poesia e autobiografia, poesia e confissão eram termos que possuíam uma ampla faixa de sobreposição de sentido comum, embora hoje saibamos que, para não violentar nem a cronologia suposta, nem o desenho da evolução espiritual deseja, Antero e Oliveira Martins tiveram de proceder a “adaptações” na posição relativa de alguns sonetos.
Ora, se a leitura dos “sonetos” de Nobre revela um claro desenho temático, que é também um desenho, digamos assim, “biográfico”, a marcação das datas de composição dos poemas não permite nenhuma postulação semelhante à que se encontra no livro de Antero.[4] De fato, as datas oscilam sem ordem aparente entre 1884 e 1991, bem como os locais de composição, apostos ao poema. Isso me levou a pensar que já para Nobre autobiografia espiritual e autobiografia positiva não eram já a mesma coisa. Ou, dizendo de outra forma: que  para Nobre o desenho ideal da personalidade era uma construção a partir de experiências várias, vividas em momentos vários. O que não é sem importância para a compreensão da poesia de Nobre, tantas vezes entendida como pura confissão espontânea.
Isto posto, e mantida a distinção entre construção biográfica e autobiografia, voltando à ordenação da seção “Sonetos”, parece fácil identificar o desenho biográfico ali presente: o conjunto abre com um poema que apresenta o conjunto e que ocupa, na seção, o mesmo lugar que Memória na totalidade do livro, e a seguir prossegue tematizando o nascimento (soneto 2), a infância (soneto 3) e prossegue pela juventude, até a constatação do fracasso (soneto 13), o exílio voluntário (soneto 14) o terror da morte (sonetos 15 e 16), a constatação do caráter ilusório da vida (17)  e, por fim, da inutilidade de todos os esforços, com o conseqüente desejo de descanso, só possível na aniquilação. Em seguida, pude investigar a hipótese de que a seção dos “sonetos”, vindo ao final do livro, funcionava como uma espécie de recolletio, de retomada sintética, dos temas e motivos que constituem o Só. Nessa etapa de trabalho, pareceu-me bastante plausível que há uma homologia de estrutura entre “sonetos” e a totalidade do .
Nessa homologia, o primeiro soneto tem função muito parecida com Memória, traduzindo “o livro mais triste que há em Portugal” no “missal dum torturado” e no “talvez choreis, talvez vos faça pena”. Já o segundo soneto glosaria, em contraste irônico, o poema “Antonio”, pois em ambos se tematiza a origem heróica, os lobos-d’água, o ‘lusíada’. O terceiro, por sua vez, com a sua “idade em que se é conde assim” pareceu-me ecoar nitidamente o tempo evocado em “Lusitânia do Bairro Latino”, “menino e moço, tive uma Torre de leite, / Torre sem par!”. Prosseguindo a linha de leitura, a Purinha apareceria transfigurada nas virgens que passam ao sol poente, e assim por diante, até o soneto 18, cujo anseio pelo descanso proporcionado pela morte me parecia aproximar o final da seção do final do livro, com os “Males de Anto”.
Estava nesse ponto das minhas especulações, tentando levar adiante essa hipótese, quando me ocorreu verificar o que se tinha passado entre a primeira e a segunda edições, no que diz respeito ao conjunto que me interessava. Essa verificação acabou por alterar as minhas hipóteses de trabalho.
É certo que o cotejo de várias edições de um livro não nos deve iludir: a última edição tem autonomia completa e não depende, no que diz respeito ao seu sentido geral ou particular, daquilo que ela efetivamente substitui. Nesse sentido, é possível continuar a refletir na linha antes apontada: a leitura de “sonetos” como uma recollectio do . Ela não se enfraquece minimamente por conta do que vou dizer, como também não se enfraquece a leitura da seção dos sonetos como um tributo a Antero, na clave autobiográfica. Nesse caso, o distanciamento irônico do sujeito dos sonetos, em relação ao sujeito dos demais poemas do , pode mais facilmente entendido e motivado.
Mas o que me pareceu mais interessante, de momento – mais interessante do que desenvolver essas duas linhas de leitura seqüencial dos “sonetos” – foi pensar de outra forma, lançando uma terceira e mais radical hipótese de leitura, para que especulemos aqui sobre ela.
Vejamos, para formular essa última hipótese, a estrutura do livro nas duas edições em vida do autor. A listagem dos títulos já permite perceber as grandes alterações no desenho da obra:

Para ter uma idéia melhor das alterações de ordem, de título e de quantidade de peças entre uma edição e outra, basta considerar a seguinte tabela:

O que me chamou a atenção foi reconhecer o conjunto dos “sonetos” num agrupamento com título temático. Também me chamou a atenção que esse conjunto não era composto, na primeira edição, apenas de sonetos, mas que era encerrado por um poema em quintilhas.
“Terças-feiras” é um nome muito significativo, dentro do . De fato, no poema “António” lemos:

Ao mundo vim, em terça-feira
Um sino ouvia-se dobrar! [...]
Vim a subir pela ladeira
E, numa certa terça-feira,
Estive já pra me matar.

A terça-feira, assim, no léxico de Nobre, é o dia aziago, a data marcante em que se revela e reitera um destino de eleição negativa. Na primeira edição, o conjunto vinha acrescido de alguns sonetos depois suprimidos e todos tinham título. O soneto que passou a ser o primeiro na segunda edição, o que nela começa com o verso “em horas que lá vão, molhei a pena”, antes se denominava “Prólogo” e tinha uma variante no primeiro verso, que se lia: “em horas de aflição, molhei a pena”. Esse título e esse primeiro verso, como se vê, reforçam a leitura do título: são horas de aflição as terças-feiras, são momentos de provação na via-crúcis que é a vida do autor/personagem do . Isto reforça a idéia de que os “sonetos” sejam uma autobiografia, nos moldes anterianos: um conjunto de poemas nos quais se sintetiza, em momentos cruciais, um percurso biográfico.
A relação entre o título do conjunto de poemas e a estrofe do poema “António” é clara e é reforçada pelo inusitado da denominação. Mas se fosse precisa uma prova de que ela existe, bastaria consultar as correções de Nobre à primeira edição do , com vistas à elaboração da segunda. Lá, vemos que ele, em algum momento, pensou em manter o conjunto denominado “Terças-feiras”, mudando-lhe apenas o nome para “Sextas-feiras”, provavelmente para acentuar o paradigma crístico que percorre o livro. Mas, quando pensou em fazer isso, tratou igualmente de corrigir, no poema “António”, os versos que falavam em terça-feira, mudando aí também o dia da semana. Ou seja, Nobre queria manter a relação entre os versos e o título da seção, o que reforça a associação entre as “Terças-feiras” e aquela estrofe de “António”. Também a reforça o fato de que, quando resolveu mudar de lugar as “Terças-feiras” e rebatizá-las de “Sonetos”, voltou atrás na correção dos versos de “António”, o que mostra que a correção se devia exclusivamente à alteração do título do conjunto dos sonetos.
No que diz respeito à ordenação, o conjunto das “Terças-feiras” é muito semelhante ao dos “Sonetos”, como se pode ver na tabela a seguir:



Ora, se a progressão dos sonetos era praticamente a mesma na primeira e na segunda edições, exceto por 3 textos, que foram suprimidos, vejamos que textos são esses. São dois sonetos que precediam o “Prólogo” e o que se intitulava “Ai de mim!” O primeiro deles era uma espécie de envoi: “Ao Alberto”. Sua supressão (embora possa ser explicada também pela razão privada do estremecimento da relação de Nobre com Alberto de Oliveira, a quem era dedicado o soneto e, assim, a seção inteira) contribui para integrar o conjunto “sonetos” no corpo do livro, bem como contribui para o mesmo fim a supressão dos títulos muito pontuais, quase todos exclamativos, que tinham sabor a registro em diário (gosto esse inconsistente, aliás, considerando a ordem das peças e as datas de composição). De modo que, na minha avaliação, a supressão do “envoi”, dos três sonetos e dos títulos de todos fez com que o conjunto ganhasse em força e em amplitude simbólica., reforçando, ao mesmo tempo, pela acentuação da linha temática e “cronológica”, a possibilidade de leitura do conjunto como autobiografia espiritual.
Julgando plausíveis as hipóteses de leitura que havia formulado sobre a seção “sonetos” da segunda edição do , comecei então a refletir sobre a posição relativa das seções “Terças-feiras” e “Sonetos”, no corpo dos dois volumes.
A primeira constatação a fazer é que o conjunto de sonetos sofreu uma mudança radical de posição: admitido o desenho temático acima esboçado (anotações de momentos fortes na vida do sujeito lírico do ), o deslocamento da posição inicial para a posição quase final, bem como a divisão de todo o volume em seções com subtítulo, parece claro que o sentido do conjunto adquire conotações muito diferentes em cada um dos livros.
Quanto à posição, é interessante considerar a relativa simetria inversa do lugar do grupo das “Terças-feiras”/“Sonetos”. O , na primeira edição era composto por 29 peças, além do conjunto “Terças-feiras”; na segunda edição, são já 34 peças, além do conjunto dos “Sonetos”. Na primeira edição, as “Terças-feiras” apareciam na oitava posição seqüencial, logo depois de “Memória”, “António”, “Menino e Moço”, “Os cavaleiros”, “Purinha”, “Elegia” e “Os sinos”. Na segunda edição, os “Sonetos” aparecem perto do final do livro, seguidos das sete elegias e do poema final “Males de Anto”.
Ou seja, se as “Terças-Feiras”/“Sonetos” reproduzem de alguma forma o desenho temático do , na primeira edição elas tem a função de um anúncio, uma espécie de mapa do caminho. Na segunda edição, como já assinalei acima, de recollectio, de retomada sintetizadora do trajeto desenhado ao longo do livro. Essa posição algo especular poderia ser justificada com outros argumentos, mas de momento julgo que o mais interessante é observar que “Elegia”, que na primeira edição vinha antes das “Terças-feiras”, na segunda vem após, vindo esse título a denominar todo o conjunto de poemas em que a antiga “Elegia”, agora renomeada “Na estrada da Beira”, passa a integrar.
 Feita essa constatação, ocorreu-me esta terceira hipótese de trabalho, que agora interpela não a segunda edição do , mas a gênese do livro, enquanto objeto articulado segundo um plano significativo. Essa hipótese constitui, na verdade, a negação daquela que expus logo no começo desta apresentação, e consiste no seguinte: se, lendo a segunda edição,  tive a impressão de que os “Sonetos” consistiam na síntese do desenvolvimento temático do livro, preparando o momento elegíaco e permitindo o gran finale dos “Males de Anto” (e aqui seria preciso lembrar os comentários de Paula Morão sobre a redução de António a Anto), agora, com o cotejo das edições, minha intuição é a de que os sonetos das “Terças-feiras”, isto é, o seu desenho temático, sua progressão, constituem a matriz da arrumação final dos poemas do na segunda edição.
Na primeira edição, vale lembrar, todos os poemas até o soneto número 3 (que é o que vai abrir o conjunto, na segunda edição), vêm datados de “Paris, 1891”. Isso dá a essa edição um movimento que já não está presente na segunda: o livro se estrutura a partir do exílio, sendo os sonetos o primeiro momento em que a data da composição está situada fora da perspectiva parisiense. E tão forte é essa perspectiva que, para não quebrá-la, Nobre, antes de alterar radicalmente a estrutura do livro, julgou dever explicitar esse ponto de vista, ensaiando interessantes subtítulos ao poema “Purinha”: Ideal cristão, Ideal dum poeta místico, Ideal dum parisiense, Ideal fim-de-século e, por fim, Ideal dum decadente. 
Não preparei muitas justificações para esta asserção de que as “Terças-feiras” constituem a matriz da rearrumação do , exceto as que podemos encontrar na observação do movimento dos poemas de uma edição para outra. Mas creio que é uma fecunda hipótese de trabalho, para quem se interessar pela estrutura do . E já que estou aqui expondo apenas hipóteses interpretativas, que ainda precisariam ser ensaiadas num texto mais longo, queria logo registrar que mesmo a substituição do poema “Memória” (que era um texto dedicado ao pai e à mãe, intimista e circunscrito ao domínio familiar) pelo poema homônimo (que agora ganha uma dimensão simbólica muito mais ampla) me parece ser um movimento no sentido de adequar todo o desenho do livro ao movimento expresso nos sonetos.
Tinha pensado e preparado, para esta fala, uma apresentação do movimento interno do núcleo dos “sonetos”, com especial atenção, nele, para o número quatro, que me parece um dos mais belos da língua portuguesa. Mas depois, pensando bem, julguei que, nesta reunião, seria mais interessante apenas dar forma a algumas intuições confusas de leitor. Já que não sou especialista no poeta, tentei assim fazer da deficiência uma vantagem; e da ingenuidade, um trunfo e uma bandeira na homenagem a este poeta que durante tantos anos passou pelo mais ingênuo e espontâneo, além de o mais triste que já houve em Portugal.



Bibliografia:

Morão, Paula. O de António Nobre – uma leitura do nome. Lisboa: Editorial Caminho, 1991.
Nobre, António. . Paris: Missão Permanente de Portugal Junto da Unesco, 1992 (repr. fac-similar do exemplar da primeira edição do , anotado pelo poeta)
Nobre, António. Só. Porto: s/e, 1939 (6.ª ed.)


Anexo – lista dos poemas e seções da segunda edição do :

Memória, s/d
ANTONIO
                Antonio                                  (Paris, 1891)
LUSITÂNIA NO BAIRRO-LATINO
                Lusitânia no Bairro-Latino      (Paris, 1891-2)
ENTRE-DOURO-E-MINHO
                Purinha                                   (Paris, 1891)
                Canção da felicidade               (Paris, 1892)
                Para as raparigas de Coimbra (Coimbra, 1890)
                Carta a manoel                        (Coimbra, 1888,89,90)
                Saudade                                  (Paris, 1894)
                Viagens na minha terra           (Paris, 1892)
                Os figos pretos                       (Coimbra, 1889)
                Os sinos                                 (Paris, 1891)
LUA CHEIA
                Da influência da lua                (Porto, 1886)
                D. Enguiço                              (Paris, 1893)
                O meu cachimbo                     (Coimbra, 1889)
                Balada do caixão                     (Paris, 1891)
                Febre vermelha                       (Leça, 1886)
                Poentes de França                   (Paris, 1891
                À toa                                       (Porto, 1885)
                Ao canto do lume                   (Paris, 1890-1)
LUA QUARTO-MINGUANTE
                Os cavaleiros                          (Paris, 1891)
                A vida                                     (Paris, 1891)
                Adeus!                                    (Paris, 1893)
                Ladainha                                                (Paris, 1894)
                Fala ao coração                       (Coimbra, 1888)
                Menino e moço                       (Leça, 1885)  /soneto/
                O sono de João                       (Paris, 1891)
SONETOS
I                                              (Coimbra, 89)
II                                            (Coimbra, 89)
III                                           (Porto, 87)
IV                                           (Porto, 86)
V                                            (Porto, 84)
VI                                           (Hamburgo, 91)
VII                                          (Porto, 89)
VIII                                        (Leça, 89)
IX                                           (Coimbra, 90)
X                                            (Coimbra, 89)
XI                                           (Coimbra, 88)
XII                                          (Colônia, 91)
XIII                                        (Coimbra, 89)
XIV                                        (Oceano Atlântico, 90)
XV                                          (Golfo de Biscaia, 91)
XVI                                        (Canal da Mancha, 91)
XVII                                       (Mar do Norte, 91)
XVIII                                      (Paris, 91)
ELEGIAS
                A sombra                                               (Coimbra, 1888)
                Pobre tísica                             (Leça, 1889)
                Santa Iria                                                (Leça, 1885) /soneto/
                Enterro de Ofélia                    (Leça, 1888) /soneto/
                Na estrada da Beira                                 (Paris, 1891)
                Ca (ro) da (ta) ver (mibus)      (Leça, 1885)
                Certa velhinha                         (Paris, 1891)
MALES DE ANTO
                Males de Anto
1.A ares numa aldeia;
2 Meses depois, no cemitério
(Paris, 1891)





[1] Seções compostas por poema único: “Antonio”, “Lusitânia no Bairro Latino” e “Males de Anto” (este em duas partes, que talvez possam também ser consideradas dois poemas); denominações temáticas: “Entre-Douro-e-Minho” (8 poemas), “Lua cheia” (7 poemas), “Lua quarto-minguante” (8 poemas); denominação genérica: “Elegias” (7 poemas).
[2] Amorim de Carvalho. Teoria geral da versificação. Lisboa: Editorial Império, 1987, vol. II, p. 102
[3] Ver, ao final deste texto, a tabela do Anexo, que apresenta a sucessão dos poemas na segunda edição. Nela, os sonetos que não integram o núcleo denominado “Sonetos” vêm identificados entre / /.
[4] Ver a tabela do Anexo 1, no final deste texto.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

T. S. Eliot


[Jornal 6]

T. S. Eliot


[texto publicado na coluna Livros, do jornal Correio Popular,
em 14 de outubro de 2000]

Dentre os poetas do século XX, T. S. Eliot (1888-1965) é um dos que teve mais ampla e profunda influência sobre os contemporâneos. De fato, é fácil constatar que não só os seus versos, mas também os seus textos de teoria e de crítica da poesia deixaram marcas profundas nas literaturas ocidentais do primeiro e do segundo pós-guerra.
No Brasil não foi diferente, embora a recepção de Eliot tenha sido um bocado particular. Lido principalmente nos anos 40, Eliot vai permanecer associado aqui ao tipo de poesia que se convencionou denominar de 'Geração de 45'. É uma injustiça. E o pior é que é uma injustiça que continua sendo feita, pois mesmo hoje a tradução mais facilmente encontrável (a publicada pela Nova Fronteira) transforma Eliot num escritor empolado, amante da palavra rara e da sintaxe preciosa e que se expressa num tom uniformemente alto. Ou seja, transforma-o num poeta monótono, num chato.
Eliot pode ser acusado de muitas coisas, menos de ser chato. Ou de ter apenas um tom. Pelo contrário, o que caracteriza a sua poesia é a finura na alternância e no contraste (irônico ou trágico) dos registros e a capacidade de obter efeitos muito intensos com procedimentos minimalistas.
O melhor da sua obra, do meu ponto de vista e da maior parte da crítica, são dois poemas longos: A Terra Devastada, de 1922, e Quatro Quartetos, de 1943. O primeiro, num desses inquéritos da moda, foi aclamado como o melhor poema do século XX. Do segundo pouco se fala no Brasil, embora haja dele uma boa tradução, feita por Oswaldino Marques, na Coleção Prêmio Nobel.
Na impossibilidade de comentar, neste espaço, aqueles poemas, optei apresentar dois textos breves, nos quais se pode perceber o tom mais característico da poesia de T. S. Eliot. O primeiro poema chama-se  La figlia che piange. É do começo da carreira de Eliot: foi escrito em 1911, quando o poeta estudava em Harvard e publicado apenas em 1916, numa revista de poesia de Chicago. O segundo já pertence ao período da sua maturidade. Chama-se Marina e foi escrito em Londres, em 1930.
Não é fácil a poesia de Eliot. Ela é mesmo resistente ao primeiro contato: não tem clara estrutura narrativa, e tampouco é poesia lírica, baseada no discurso confessional ou expressivo. As partes em que se divide o poema evocam ou provocam determinados estados de espírito e não se ligam logicamente umas às outras. O resultado da primeira leitura, por isso, nunca é um desenho claro, mas a percepção de que se trata de fragmentos justapostos, de sentido geral obscuro. Ficam na memória algumas imagens, algumas frases que ecoam e que provavelmente o leitor acabe por repetir mentalmente, em situações várias. Leitura após leitura, os diferentes focos parciais de atenção possivelmente se cristalizarão em um desenho, ou melhor, em vários desenhos possíveis, mais ou menos coerentes e não exclusivos.
Mas não é o caso de teorizar sobre isso, e, sim, de apresentar os poemas.
La figlia che piange significa, em italiano, a moça que chora. A epígrafe latina é um verso da Eneida, de Virgílio: "Ó virgem, como devo chamar-te?". Quem diz essa frase no poema latino é Enéas e a situação é a seguinte: ele acaba de chegar a Cartago, fugindo de Troia, e sua mãe, que é a deusa Vênus, lhe aparece disfarçada de virgem caçadora e lhe dá informações sobre o território a que chegou e instruções para entrar em contato com Dido, rainha do lugar.
Qual a relação entre a moça que chora e a fala de Enéas à sua mãe? Esse é o primeiro desafio do poema. A epígrafe sugere que o poema deva ser lido como uma história de abandono de uma mulher pelo homem a quem se dedicou. Isto é, que o devemos ler como um eco moderno da história de Dido e Enéas. Mas também pode reforçar uma leitura muito diferente. Se a pergunta é dirigida à mãe que se apresenta incógnita, não seria possível ler o poema como a reconstrução de um momento de ruptura de uma relação familiar? Essa pergunta conduz a outra: qual é a relação entre a voz que comanda a representação como se estivesse compondo um quadro ou uma cena de teatro e o conteúdo emocional da própria cena? Trata-se apenas de uma voz que constrói um cenário fantasioso, ou de um monólogo no qual alguém tenta recuperar de alguma forma uma cena para compreendê-la de uma vez e assim se livrar dela? Provavelmente, é tudo isso ao mesmo tempo. Ou melhor, a cada momento da leitura, uma dessas possibilidades vem para primeiro plano, para ser depois suplantada por outra, sem possibilidade de escolhermos uma só e a impormos sobre as demais.
O segundo poema poderá parecer menos ambíguo, mas é talvez mais rarefeito e mais obscuro. O título Marina pode ser lido de três formas diferentes: é um nome de mulher; designa o lugar onde se atracam barcos; é uma denominação genérica de um tipo de composição poética ou pictural: marinha. Já a voz que fala é a de um velho que anseia pela paz espiritual e ao mesmo tempo faz um balanço da vida, ou a de um homem assediado pelas lembranças, que anseia pela morte, uma vez que o passado é irrecuperável?
Este poema também tem uma epígrafe em latim, que foi retirada de uma peça de Sêneca, chamada Hércules furioso: "que lugar é este, que região, que parte do mundo?" O sentido do poema é independente da peça, mas o seu enredo é um pano de fundo que importa conhecer. A deusa Juno, perseguidora de Hércules, fez com que ele perdesse a razão. A frase transcrita é dita pelo herói no momento em que, após um período de idiotia, começa a recuperar a razão. Na seqüência, Hércules perceberá horrorizado que, durante o tempo em que esteve fora de si, matou, num acesso de fúria, toda a sua família.
Não é preciso saber nada disso para poder gostar do poema, que não seria um bom poema moderno se não produzisse, com as suas imagens, os seus ritmos e o seu manejo dos tons um impacto imediato sobre a sensibilidade do leitor atento. Mas penso que os leitores com mais informação ou experiência de leitura poderão lê-lo com maior prazer.
Daí estas considerações, que, resumindo alguns dos resultados da minha própria experiência de leitura desses poemas, querem ser apenas um convite (talvez um pouco longo, vejo agora) à leitura dos versos aqui apresentados e traduzidos.


La figlia che piange

O quam te memorem virgo...

Stand on the highest pavement of the stair –
Lean on a garden urn –
Weave, weave the sunlight in your hair –
Clasp your flowers to you with a pained surprise –
Fling them to the ground and turn
With a fugitive resentment in your eyes:
But weave, weave the sunlight in your hair.

So I would have had him leave,
So I would have had her stand and grieve,
So he would have left
As the soul leaves the body torn and bruised,
As the mind deserts the body it has used.
I should find
Some way incomparably light and deft.
Some way we both should understand,
Simple and faithless as a smile and shake of the hand.

She turned away, but with the autumn weather
Compelled my imagination many days,
Many days and many hours:
Her hair over her arms and her arms full of flowers.
And I wonder how they should have been together!
I should have lost a gesture and a pose.
Sometimes these cogitations still amaze
The troubled midnight and the noon's repose.


Tradução de P.F. e Eric Sabinson:

La figlia che piange

O quam te memorem virgo...

Parada no último patamar da escadaria –
Encostada num vaso de jardim –
Tece, tece a lua do sol nos teus cabelos –
Abraça as tuas flores numa surpresa dolorida –
Joga-as no chão e volta-te
Com um lampejo de mágoa nos olhos:
Mas tece, tece a luz do sol nos teus cabelos.

Assim eu o faria partir,
Assim eu a faria ficar, parada e aflita,
Assim ele teria partido


Como a alma deixa o corpo lacerado e ferido,
Como a mente abandona o corpo que usou.
Eu teria encontrado
Algum jeito incomparavelmente leve e fácil.
Algum jeito que ambos pudéssemos entender,
Simples e descrente como um sorriso e um aperto de mão.

Ela virou o rosto, mas chegando o outono
Forçou minha imaginação muitos dias,
Muitos dias e muitas horas:
Seu cabelo sobre os braços e os braços cheios de flores.
E fico imaginando como eles teriam ficado juntos!
Eu teria perdido um gesto, uma pose.
Às vezes tais pensamentos ainda assombram
A agitada meia-noite e o repouso do meio-dia.


=x=x=x=x=x


Marina

Quis hic locus,
quae regio, quae mundi plaga?

What seas what shores what grey rocks and what islands
What water lapping the bow
And scent of pine and the woodthrush singing through the fog
What images return
O my daughter.

Those who sharpen the tooth of the dog, meaning
Death
Those who glitter with the glory of the hummingbird, meaning
Death
Those who sit in the sty of contentment, meaning
Death
Those who suffer the ecstasy of the animal, meaning
Death

Are become unsubstantial, reduced by a wind,
A breath of pine, and the woodsong fog
By this grace dissolved in place

What is this face, less clear and clearer
The pulse in the arm, less strong and stronger C
Given or lent? more distant than stars and nearer than the eye
Whispers and small laughter between leaves and hurrying feet
Under sleep, where all the water meet.

Bowsprit cracked with ice and paint cracked with heat.
I made this, I have forgotten
And remember.
The rigging weak and the canvas rotten
Between one June and another September.
Made this unknowing, half conscious, unknown, my own.
The garboard strake leaks, the seams need caulking.
This form, this face, this life
Living to live in a world of time beyond me; let me
Resign my life for this life, my speech for that unspoken,
The awakened, lips parted, the hope, the new ships.

What seas what shores what granite islands towards my timbers
And woodthrush calling through the fog
My daughter.

=x=x=x=x

Tradução de P.F. e Eric Sabinson:

Marina

Quis hic locus,
quae regio, quae mundi plaga?

Que mares que praias que rochas cinzentas e que ilhas
Que água lambendo a proa
E o cheio de pinho e o tordo cantando através da bruma
Que imagens retornam
Ó minha filha.

Aquele que afiam os dentes do cão, significando
Morte
Aqueles que brilham com a glória do beija-flor, significando
Morte
Aqueles que se instalam na pocilga da satisfação, significando
Morte
Aqueles que estão sujeitos ao êxtase dos animais, significando
Morte
Tornaram-se insubstanciais, reduzidos por uma brisa,
Um sopro de pinho, e a névoa da canção do bosque
Por esta graça dissolvida no espaço

Que rosto é este, menos e mais claro
O pulso no braço, menos e mais forte –
Dado ou emprestado? Mais longe que as estrelas e mais perto que os olhos
Sussurros e risinhos entre folhas e pés apressados
Sob o sono, onde todas as águas se encontram.

O mastro da proa rachado pelo gelo e a pintura rachada pelo calor.
Eu fiz isso, esqueci
E me lembrei.
O cordame fraco e as velas apodrecidas
Entre um junho e outro setembro.
Eu fiz isso sem saber, semiconsciente, ignorado, meu próprio.

As tábuas de resbordo fazem água, as juntas precisam ser calafetadas.
Esta forma, este rosto, esta vida
Vivendo para viver num mundo de tempo além de mim; que eu possa
Renunciar à minha vida por esta vida, às minhas palavras pelo não dito,
O desperto, lábios separados, a esperança, os novos barcos.

Que mares que praias que ilhas de granito perto do costado do navio
E o tordo chamando através da névoa
Minha filha.