quinta-feira, 24 de maio de 2012

Relações brasileiras de Eça (Eduardo Prado e outros)

Relações brasileiras de Eça de Queirós

 [Este texto foi escrito para servir de introdução à publicação da correspondência de Eça com brasileiros, nas obras completas do autor, publicadas pela Editora Aguilar em 2000]

 
No conjunto de cartas apresentado a seguir, não são muitos os nomes brasileiros. Deve-se isso, entretanto, mais ao acaso do que à real dimensão das relações brasileiras de Eça de Queirós, que foram sempre, principalmente depois que se instalou em Paris, muitas e variadas. Assim, não há aqui nenhuma carta de Eça a Joaquim Nabuco, que ele conheceu e com quem quase com certeza se correspondeu. Tampouco há aqui qualquer carta endereçada a Olavo Bilac, apesar de sabermos que o poeta brasileiro freqüentou a casa do romancista português e que ambos elaboraram, para diversão da família de Eça, uma jocosa peça de teatro a quatro mãos.
Esses são os nomes mais conhecidos, mas temos elementos para imaginar que não foi pequeno o volume da correspondência trocada entre Eça de Queirós e vários dos muitos brasileiros que, pela mão de Eduardo Prado ou de Domício da Gama, foram levados ao seu conhecimento. Perdidas ou ainda por encontrar, muitas cartas de Eça devem ter cruzado o Atlântico, como extensão e continuidade das sessões de cavaqueira que tornavam a sua casa um centro obrigatório para os intelectuais do nosso país, quando em viagem pela Europa. Das cartas de Eça, quase tudo se perdeu ou está ainda por achar em arquivos espalhados pelo nosso país. Já a grande maioria das que daqui foram enviadas para lá com certeza desapareceu, pois não tinha o autor de Os Maias o hábito de conservar as cartas que ia recebendo. E para constatar que o desaparecimen­to das cartas enviadas a Eça por amigos brasileiros não constitui um caso particular, devido a alguma diferença de tratamento, basta lembrar que, da correspondên­cia mantida com “Santo” Antero ao longo de quase trinta anos, só nos restaram duas cartas. Se Eça não conservou os papéis a ele enviados por aquele de quem se confessou discípulo para toda a vida, que esperar do destino de outra correspondência, certamente muito menos importante para ele tanto do ponto de vista intelectual, quanto afetivo?
Assim, devemos ter muito claro que o material hoje disponível, no que diz respeito ao Brasil, é apenas uma parte muito pequena do que foi de fato enviado e recebido, e que a presença do mundo intelectual brasileiro no quotidiano de Eça, principalmente no período parisiense, foi muito maior e significativa do que a mera identificação dos nomes dos destinatários das cartas e o teor dos textos aqui reunidos poderia sugerir.
Feita essa primeira observação, identifiquemos agora os brasileiros que se incluem na lista dos destinatários desta correspondência. Em primeiro lugar nessa lista vem Eduardo Prado. Amigo do romancista, freqüentador de sua casa, Eduardo Prado foi, sem dúvida, uma presença importante na vida do escritor e da família Queirós.


Eduardo Prado é hoje um autor quase esquecido. No seu tempo, entretanto, ocupou um lugar de grande destaque na vida cultural brasileira. Monarquista, propagandista anti-republicano, historiador empenhado em mostrar o caráter positivo da ação da Companhia de Jesus no Brasil, viajante insaciável desde a mocidade, deixou uma obra extensa, mas em grande parte voltada para os problemas do momento. Seus livros hoje quase que só apresentam interesse para os especialistas e estudiosos da história brasileira dos primeiros anos da República. É certo que ainda oferece atrativos a leitura do seu A ilusão americana, pela amplitude de visão que caracteriza a sua análise das relações entre o nosso país e os Estados Unidos, no momento em que começava a se definir o alinhamento norte-sul que duraria até hoje, e também é certo que o estilo do polemista de Fastos da ditadura militar no Brasil ainda causa impressão. Mas são textos que não oferecem atrativos para o público em geral, e é uma real infelicidade que aquela parte de sua obra que talvez pudesse manter vivo o seu nome na literatura brasileira se tenha perdido ou deixado de ser publicada. É o caso de um romance de juventude, de que temos apenas esparsa notícia, e do livro a que dedicou o melhor de seu talento de historiador e que desapareceu quando da sua morte prematura: uma biografia do Padre Manuel de Moraes. Esse estudo enfocava, em 700 páginas, a curiosa figura de um jesuíta interessado pela natureza americana, que primeiro lutou contra os holandeses, em Pernambuco e depois, renegando a fé e a bandeira, uniu-se a eles, transferiu-se para a Holanda, casou-se, tornou-se teólogo calvinista, para finalmente regressar ao Brasil, onde foi preso pela Inquisição e condenado à morte. Centrado na biografia do padre, procedia Eduardo Prado, ao que tudo indica, a um estudo aprofundado e original da até então quase desconhecida vida colonial brasileira. Composto como um painel, um retrato de época, o volume deveria aproximar-se, pelo escopo, dos que seu amigo Oliveira Martins dedicara, no final da vida, às grandes figuras da dinastia de Avis e que tanto impressionaram Eça de Queirós. Na mesma linha parece ter-se desenvolvido, sem que saibamos hoje se teria sido concluído o livro, ou abandonado ­a meio, um trabalho que lhe consumiu imensa pesquisa: a vida do Padre António Vieira.
Tendo sua obra acabado por se reduzir a algumas conferências mais ou menos eruditas e a muitos textos de intervenção política, Eduardo Prado passou à história principalmen­te como propagandista anti-republicano e diletante intelectual; ­isto é, um homem culto, de vários interesses culturais e políticos que não redundaram num conjunto de textos coeso e realmente significativo do ponto de vista histórico ou literário. Esse é, na verdade, o retrato com que o fixou José Veríssimo e que a crítica posterior não fez mais do que emoldurar ao sabor do tempo: ideologicamen­te, Eduardo Prado teria sido um dos únicos escritores inteiramente reacionários da nossa literatura; literariamente, essencial­mente um jornalista; intelectual­mente, um assistemático “amador das coisas do espírito”.[1]
Do ponto de vista da história da cultura brasileira, a importância de Eduardo Prado vai, entretanto, muito além do que dele nos ficou em letra de imprensa. Sua ação intelectual, como vemos por meio dos depoimentos de seus contemporâneos e pela correspondência que trocou com brasileiros e portugueses, foi bastante ampla, e pode-se dizer que, não só pela sua situação social, mas também pela inquietude de espírito e pela dedicação incansável aos assuntos brasileiros, Eduardo Prado foi uma espécie de centro de irradiação de um esforço de pensar a nossa realidade e um elo de ligação importantíssimo entre os intelectuais portugueses da Geração de 70 e seus contemporâneos deste lado do Atlântico.


Se tivéssemos de definir em poucas palavras os traços centrais da personalidade de Eduardo Prado, tal como o viram os seus contemporâneos, dois deles seriam, sem dúvida, a paixão do documento e dom de fazer amigos. Aliados a uma vivência internacional e a uma intensa curiosidade pelas várias formas de civilização e pelas novas conquistas da ciência, compõem esses traços uma figura destacada no panorama brasileiro finissecular, que só terá talvez par nesse outro dândi, igualmente erudito e igualmente internacional, Joaquim Nabuco.
No que diz respeito ao seu ambiente brasileiro, Eduardo Prado integrou um grupo notável de homens ligados à monarquia do Segundo Império. Tendo-se empenhado intensamente na crítica à República, e não tendo sobrevivido muito a ela, não se pode saber se ele teria, como Nabuco o fez a partir de 1899, dedicado efetivamente a sua enorme capacidade de trabalho ao país. Mas é o que tudo indica que aconteceria, pois quando o mesmo Nabuco, em 1899, recebeu o convite para servir como diplomata o governo do novo regime e o consultou, respondeu Eduardo Prado: “Aceite e, se quiser me levar para secretário, aceitarei também.”[2]  Faltou-lhe talvez tempo, depois de um primeiro período de repúdio e de ostracismo (que no seu caso, dada a violência com que combateu o novo regime seria forçosamente mais longo do que, por exemplo, o de Nabuco), para poder deixar de lado o orgulho e as divergências políticas e colocar em primeiro plano as questões mais amplas de interesse nacional.
Do ponto de vista da história literária, não há uma denominação usual para esse conjunto de intelectuais de que fez parte Eduardo Prado, e é difícil estabelecer, em termos cronológicos, uma denominação geracional que englobe tanto Eduardo Prado (1860-1901), quanto Joaquim Nabuco (1849-1910), Domício da Gama (1861-1925), o Barão do Rio Branco (1845-1912) e ainda Capistrano de Abreu (1853-1927). José Veríssimo, quando tratou do florescimento da crítica e do interesse pela história nacional na segunda metade do século XIX, utilizou, para identificar o conjunto dessa produção, o nome “modernis­mo” e não um rótulo geracional, e o denominador comum que aponta para ele é a influência do grupo de escritores portugueses reunidos à volta de Antero de Quental, no movimento coimbrão de 1865, que a historiografia portuguesa subseqüente identificaria como Geração de 70.
É verdade que a aposta de Veríssimo na profunda influência portuguesa para a constituição do pensamento crítico do “modernismo” dos anos 70-80 tinha como pano de fundo a sua polêmica contra o papel atribuído por Romero à chamada Escola do Recife, e especificamente a Tobias Barreto, como fermento da renovação do pensamento crítico brasileiro. Mas, do nosso ponto de vista, não é prejudicada na sua essência a propriedade da aproximação entre os jovens brasileiros dos anos 80 e os intelectuais portugueses que promoveram as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense em 1871.


De fato, é bem conhecida a relação de amizade que uniu não apenas Eduardo Prado, mas também outros intelectuais do seu círculo de relações a Eça de Queirós, que foi um dos principais expoentes da Geração de 70. Do lado brasileiro, privaram com o escritor português Domício da Gama, o Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco. No círculo de Eça, por sua vez, faziam-se presentes Ramalho Ortigão e, embora por uma única vez em Paris, Oliveira Martins. Por outro lado, ajudando a compor o quadro de uma profunda integração finissecular entre os homens da Geração de 70 portuguesa e o “modernismo” brasileiro, há a vertente republicana e positivista, em que a presença mais decisiva é a de Teófilo Braga.
Entretanto, é importante não exagerar o peso das afinidades ideológicas. No final do século, à volta do eixo formado pela casa de Eça em Neully e pelo palacete de Eduardo Prado na Rua de Rivoli gravitava uma vasta gama de intelectuais brasileiros e portugueses trazidos a Paris por motivos vários -- diplomacia, viagens de formação, turismo cultural -- e de várias extrações políticas e sociais. É verdade que a tônica era intelectual, pois se elaboravam planos de revistas, discutiam-se os rumos do Brasil depois da República, os desastres da economia portuguesa depois do Ultimatum e as grandes questões do tempo, como o atesta a correspondência já publicada de Eça, Ramalho e Martins; mas muito mais do que o debate político ou literário, o que dava a liga do convívio luso-brasileiro em Paris era o prestígio do escritor português e a personalidade cativante de Eduardo Prado, bem como o cosmopolitis­mo que pautou a vida de algumas das personalidades mais notáveis do final do Segundo Império, como Nabuco, Domício da Gama, Rio Branco e o próprio Prado.
Nascido em 27 de fevereiro de 1860, em São Paulo, Eduardo Prado era filho de Martinico Prado e D. Veridiana da Silva Prado. A família Prado, além da riqueza consolidada no negócio do café, possuía grande expressão política não apenas local, mas em nível nacional, sendo o irmão mais velho de Eduardo, Antonio Prado, conselheiro do Império, onde ocupou o ministério da Agricultura e do Exterior. Dos irmãos de Eduardo Prado, destacou-se ainda na política Caio da Silva Prado, que foi presidente do Ceará, e também não foi um desconhecido o Dr. Martinho Prado, promotor público e adepto do regime republicano.
Eduardo Prado, de todos, foi o único que não teve carreira definida. Tendo cursado Direito, bacharelando-se em 1881, nunca exerceu continuadamente qualquer cargo público. Prolongando a sua formação, como os jovens aristocratas ingleses dos séculos XVIII e XIX, assim que obteve a carta de bacharel dedicou-se a uma série de viagens: primeiro pela América do Sul, de que resultam uma série de crônicas publicadas na Gazeta de Notícias; depois, começando em agosto de 1886, fez uma volta ao mundo, em que consumiu mais de seis meses e de que nos ficou um diário um tanto lacunar, recolhido postumamente, em ­­1902, como segunda parte do volume Viagens -- América, Oceania e Ásia.


Entre a data da sua formatura e o ano de 1892, foram dez anos fora do Brasil, viajando ou se estabelecendo em capitais européias e americanas. É nessa época que ficou, por algum tempo, como adido à legação brasileira em Washing­ton e, posteriormente, como adido à legação de Londres. E foi também durante esse período que residiu longo tempo em Paris, a partir de 1886, numa mansão ricamente mobiliada e dotada do que de mais novo havia em termos de inovações tecnológicas na Europa. Ainda em Paris, participou da representação brasileira na Exposição de 1889, para a qual escreveu dois textos: L’Art e Immigration.[3]
Como atestam essas publicações, do ponto de vista intelectual os anos em que permaneceu na Europa foram um período muito produtivo, no qual Eduardo Prado coligiu uma enorme quantidade de documentos e informações sobre assuntos brasileiros. E também sua passagem por Washington e Londres, como adido cultural, foi plena de frutos, não apenas porque pôde trabalhar na organização dos arquivos da legação brasileira, na capital americana, mas também porque, durante a estada em Londres, pôde levar adiante suas pesquisas sobre o Brasil colônia, com vistas à elaboração dos das duas biografias em que estava então interessado: a do Padre António Vieira e a do Padre Manuel de Moraes. Data desse primeiro período de sua vida internacional o aprofundamento da amizade com o Barão do Rio Branco, e talvez também, segundo hipótese de Capistrano de Abreu, a paixão pela história do Brasil, em que se tornaria, na opinião nada desprezível desse grande historiador, um dos maiores especialistas.[4]


A grande arte, porém, de que Eduardo Prado era um dos mais destacados cultores do seu tempo é outra: a conversação elegante e intelectualizada, a tertúlia oitocentista. Como Eça, Prado era uma presença cativante e estimulante, e sobejam documentos sobre a sua capacidade de incutir ânimo, idealizar projetos, levar adiante empreendimentos intelectuais e cultivar amizades. Um dos mais conhecidos depoimentos a esse respeito é o que o próprio Eça publicou, em 1888, no número 22 da Revista Moderna. Ali lemos este tocante elogio dessa personalidade que marcou tão profundamen­te o final de século luso-brasileiro: ­“pela inata alegria, pela vivacidade inventiva, pela veia ricamente cômica, pela abundância e delicioso humorismo da anedota, pela simplicidade que se pueriliza permanecendo fina, pelo elegante desdém da ostentação, pela bendita facilidade em se interessar, pela prontidão do entusiasmo, pela inteligente mansidão, pelo apego afetivo, não há mais desejável companheiro”. [5]  Também Maria Amália Vaz de Carvalho registrou, em termos igualmente efusivos, o fascínio que Prado exercia sobre os contemporâneos pela sua conversação culta e inteligente: “Conhecia os traços sociais de todas as civilizações, assim como sabia o que era o instinto primordial de todas as raças. Lera e sentira Ruskin antes de nenhum latino, creio eu, conhecer o hoje tão famoso e citado esteta inglês. Carlyle era-lhe tão familiar como Shakespeare, e Goethe ensinara-lhe tanto como Dante ou Maquiavel. Ao pé dele respirava-se um ar de alta intelectualidade, porque vivera sempre para as idéias e pelas idéias...”[6]
Tal personalidade exerceu sobre Eça de Queirós um fascínio duradouro e que transcendeu o âmbito das relações pessoais, e há quem sustente, com bastante verossimilhança, que o feitio aristocrático do brasileiro, sua história de viagens incessantes pelo mundo todo e sua curiosidade intensa pelos novos rumos da ciência e da tecnologia, informaram, pelo menos parcialmente, a construção de duas bem conhecidas criaturas ficcionais do escritor português: o dândi Fradique Mendes (que inclusive dirige uma de suas cartas ao próprio Prado) e o não menos refinado Jacinto, de A cidade e as serras.[7]
A dizer ainda, para situar melhor o contexto das cartas aqui reproduzidas, que Eduardo Prado voltou ao Brasil em 1892 para aqui combater o novo regime político do país. Fundou para isso um jornal, O Comércio de São Paulo – que foi empastelado pelos republicanos em 1897 – e, além de vários artigos, que se seguiram aos primeiros de 1889, quando ainda estava na Europa, escreveu, no bojo da campanha política o volume A ilusão americana (1893). Nos seus últimos anos, foi reconhecido intelectualmente com a eleição para a Academia Brasileira de Letras e para o Instituto Histórico e Geográfico. Foi para tomar posse neste último que viajou ao Rio de Janeiro, no início de agosto de 1901, local onde contraiu febre amarela, de que veio a falecer no dia 30 do mesmo mês, com 41 anos de idade.

Juntamente com Eduardo Prado, e desfrutando também de grande intimidade com o autor de Os Maias, fez-se presente, principalmente nos últimos anos de Eça, o escritor e diplomata brasileiro Domício da Gama.
Domício conheceu Eça de Queirós em Londres, em 1888, quando foi pela primeira vez à Europa, com o objetivo de cobrir, para A Gazeta de Notícias, a Exposição Universal de 1889, na França. Tendo ido diretamente para Londres, apresentou-se aí ao romancista português, com uma carta de recomendação do proprietário do jornal carioca, em que também Eça escrevia. Daí por diante, serão parceiros em pelo menos três empreendimentos culturais e cultivarão uma amizade na qual estarão incluídos a mulher e os filhos de Eça
 Antes, porém, de referir esses projetos e a relação afetiva entre Domício e Eça, vejamos quem foi esse brasileiro singular, hoje ainda mais esquecido do que Eduardo Prado.


Domício da Gama nasceu em 1861, em Maricá, no Rio de Janeiro, e foi batizado como Domício Forneiro. De família humilde e origem provavelmente negra, teve os estudos custeados pelo padrinho, Sebastião de Azevedo Araújo e Gama, cujo sobrenome adotou posteriormente. Tendo interrompido os estudos superiores na Escola Politécnica, foi primeiramente professor de geografia e, depois, jornalista.
Quando foi designado para cobrir a Exposição, Domício já era conhecido e respeitado como jornalista e como literato. Sua obra propriamente literária, nesse momento, limitava-se a uns tantos contos que, com o apoio de Machado de Assis, publicara na Gazeta Mas parecia então bastante promissora, como atesta o Retrospecto literário do ano de 1888, de Sílvio Romero. Estava aí Domício lado a lado com Raul Pompéia, como representantes de um novo naturalismo, mais amplo e mais humano do que o da escola de Zola. E prosseguia o crítico: “São muito moços, começam apenas, não deram ainda toda a medida de sua capacidade; mas, ou me engano muito, ou este país tem neles dois escritores de altura acima do comum.” A junção desses dois nomes, como destacadas vocações artísticas representativas da nova tendência da prosa brasileira do final do século, também se dá na carta de apresentação que escreveu Capistrano de Abreu, em 1888, ao seu amigo Barão do Rio Branco, recomendando o jovem Domício.
Ao longo dos anos subseqüentes, entretanto, Domício se foi dedicando cada vez mais ao estudo das questões geográficas e históricas vinculadas às negociações dos tratados de fronteiras do Brasil e à diplomacia, e cada vez menos, ao que parece, à elaboração e divulgação de sua obra literária. Entrando para o serviço público em 1891, é primeiro secretário de Rio Branco; depois, diplomata, servindo na Colômbia, no Peru, na Argentina, no Chile e nos Estados Unidos. Finalmente, em 1919, por um breve período, foi ministro da Relações Exteriores, cargo antes ocupado por Rio Branco.
De sua obra literária nos ficaram apenas dois volumes em livro: Contos a meia tinta, publicado em Paris, em 1891; e Histórias curtas, publicado no Rio de Janeiro, pela Ed. Francisco Alves, em 1901. Sem reedições, ficaram praticamente desconhecidos, embora sua leitura sugerisse a José Veríssimo o julgamento de que o autor estava “fadado a ser o nosso Poe”.
A crítica, até o momento, parece limitar-se a repetir, sobre sua obra, a apreciação de Lúcia Miguel Pereira, que via seu estilo como “excessivamente trabalhado” – embora o colocasse ao lado de Raul Pompéia, como a melhor expressão da nossa prosa parnasiana de ficção. Uma leitura desarmada dos seus textos, entretanto, permite afirmar que ainda não se fez justiça ao escritor, que certamente mereceria reedição e reavaliação. E é este, certamente, o momento de fazê-lo, agora que o cânon modernista parece estar finalmente deixando de determinar tão decisivamente a historiografia e a crítica literária brasileiras como o fez nos últimos quarenta anos.[8]


No que diz respeito à sua vida intelectual na Europa, Domício participou de alguns projetos, juntamente com Eça de Queirós, como dissemos anteriormente. A sua primeira colaboração se deu na Revista de Portugal, periódico fundado por Eça, de que saíram 24 números entre julho de 1889 e maio de 1892. O papel principal de Domício nessa publicação foi escolher e contatar os colaborado­res brasileiros. Alguns anos depois, vamos encontrá-lo na Revista Moderna, importante ­publicação custeada e dirigida por um brasileiro de fortuna – Martinho Carlos de Arruda Botelho. Foi na Revista Moderna, que teve 30 números, estendendo-se de maio de 1897 a abril de 1899, que Eça publicou parte de A ilustre casa de Ramires e vários contos e crônicas, além do conhecido texto sobre Eduardo Prado. E foi nela que, no número 10, datado de 20 de novembro de 1897 e dedicado integralmente a Eça de Queirós, Domício publicou um texto de homenagem ao amigo português. Finalmente, um último trabalho conjunto: a pedido de Ferreira de Araújo, proprietário da Gazeta de Notícias, organiza, com Eça de Queirós e Batalha Reis, um suplemento parisiense do jornal.
As cartas aqui recolhidas atestam a amizade entre Eça e Domício, que, além de ser o destinatário de nada menos do que doze cartas, é referido em várias outras. É que, como mostra o conjunto dessa correspondência, foi Domício, juntamente com Ramalho Ortigão e Eduardo Prado, ­um dos amigos mais chegados à família nos anos finais da vida do romancista. De fato, como podemos ver pelas cartas escritas por D. Emília, Domício se correspondia inclusive com ela e com os filhos do casal. E da natureza e profundidade do afeto que o unia a Eça é testemunho este trecho de carta enviada à viúva, logo em seguida à morte do escritor: “Na mesma semana recebo a notícia da morte de minha mãe e da de Queirós. Nem sei dizer qual das duas mais me aflige. Só sinto que desaparece­ram ao mesmo tempo dois dos grandes interesses da minha vida e é um grande desalento a perda dos amparos da aflição que a gente tem no mundo”.

Além de Eduardo Prado e de Domício da Gama, há que mencionar, como pessoa do círculo de brasileiros com quem convivia Eça de Queirós, o nome do Barão do Rio Branco, José Maria da Silva Paranhos Jr. (1845-1912). Paranhos foi, tanto quanto Rui Barbosa, uma das figuras públicas mais destacadas das primeiras décadas da República brasileira. Filho do Visconde do Rio Branco, que foi ministro do Império e chefe do ministério entre 1871 e 1875, começou sua carreira como professor do Colégio Pedro II, onde por alguns meses ensinou geografia do Brasil. Mas logo passou à política partidária, com a ajuda poderosa de seu pai. Seu futuro parecia definido, como herdeiro da história política do Visconde, mas uma ligação romântica com uma atriz belga, de quem teve um filho no começo dos anos 70, dificul­tou a sua vida política na sociedade conservadora do Segundo Império e talvez tenha contado bastante para a sua decisão de iniciar a carreira diplomática. Fosse como fosse, em 1876, depois de um mandato como deputado por Mato Grosso, é nomeado para o consulado brasileiro de Liverpool. Não se adaptando à cidade, acaba por optar pelo deslocamento constante, trabalhando na Inglaterra e residindo em Paris.


Como diplomata, destacou-se pela negociação de tratados de limites com outros países, nos quais, valendo-se dos seus vastos conhecimentos históricos e geográficos, conseguiu sucessos realmente notáveis. Graças a ele, foram definidos pacificamente e a favor do Brasil os litígios territoriais com a Argentina (1895), com a Guiana Francesa (1900), com a Bolívia (1903) e com o Uruguai (1908). Em conseqüência daqueles primeiros sucessos, em 1902 foi convidado a ocupar a pasta das Relações Exteriores e regressou ao Brasil, onde permaneceu, ocupando o mesmo cargo pelos dez anos que lhe restariam de vida.
Além de diplomata, Rio Branco foi também notável pesquisador da história brasileira, tendo escrito, entre outros trabalhos, um “Esboço da História do Brasil”, publicado durante a Exposição de Paris, em 1889, e o verbete Brésil, da Grande Enciclopédia dirigida por Lavasseur, além de uma biografia de D. Pedro II, que as conveniências dos primeiros tempos republicanos fizeram que saísse em nome de um rabino de Avinhão, chamado Benjamin Mossé..
Embora deslocando-se freqüentemente, de acordo com as missões que lhe eram atribuídas, até 1901 – um ano depois da morte de Eça, portanto – Rio Branco está presente na mesma cidade que o autor de Os Maias. Como era bastante ligado a Domício e Eduardo Prado, devia também ser presença usual nas reuniões luso-brasileiras da casa deste último ou na de Eça. Não temos registros epistolares mais amplos, que permitam aferir a real extensão das relações entre o fundador da nova diplomacia brasileira e os seus contemporâneos portugueses, mas sabemos que várias vezes Rio Branco se valeu dos conhecimentos pessoais de Eça de Queirós, quando alguma de suas missões implicava a necessidade de contatos em Portugal, para a localização de mapas e outros documentos. É uma carta dessa natureza, justamente, a única de que dispomos no momento e vem reproduzida nesta correspondência.

Como destinatários de cartas de Eça, cumpre finalmente mencionar dois outros brasileiros, representados com uma carta cada um: Augusto Fábregas (1859-1893) e Machado de Assis (1839-1908).
O primeiro foi teatrólogo, jornalista e redator do periódico O País. Em 1890 levou à cena uma adaptação de O Crime do Padre Amaro, que começou a ser representada no Rio de Janeiro em 25 de abril de 1890, obtendo grande êxito. A carta de Eça a ele destinada trata exclusivamente da questão dos direitos de autor sobre a encenação.
O segundo dispensa apresentações. A carta de Eça a Machado se deve, como é sabido, à publicação, pelo romancista brasileiro, de uma crítica ao romance O Primo Basílio, a revista O Cruzeiro, em abril de 1878, sob o pseudônimo de “Eleazar”.


A crítica de Machado – que na mesma época publicava em folhetins o seu Iaiá Garcia – atacava o romance de Eça a partir de dois ângulos principais. Por um lado, via nessa obra uma realização de uma tendência literária que não merecia a sua aprovação: o realismo de Zola. O Naturalismo, segundo o futuro autor de D. Casmurro, produzia uma literatura sensualista e escandalosa, que atendia ao gosto rebaixado do público contemporâneo. E era por ser uma tradução para o português do receituário da moda que fazia sucesso na França, pensava Machado, que o livro de Eça estava obtendo tão notável sucesso de público. Isso porque, pelo lado da fatura, o livro tinha, de seu ponto de vista, graves defeitos, que iam desde a forma de construir as personagens até a maneira de compor a trama, passando pela própria condução da narração. As personagens, segundo Machado, careciam de densidade moral. Dessa característica, derivava o defeito básico da trama, que era a necessidade de o autor introduzir elementos dramáticos externos, já que não havia drama psicológico ou moral que tensionasse e determinasse a sucessão dos acontecimentos. E uma vez que não era o estudo dos caracteres o que interessava ao autor de O Primo Basílio, a narração não distinguia o essencial do acessório, comprazendo-se muitas vezes na descrição infuncional.
A crítica de Machado parece ter encontrado repercussão em Eça de Queirós. Mas certamente encontrou muito maior repercussão na fortuna crítica de O Primo Basílio –  principalmen­te na sua vertente brasileira – e até agora informa muitas aproximações ao texto de Eça. Hoje, com a distância proporcionada pelos mais de cem anos, podemos ver mais claramente que, empenhado na criação de uma tradição cultural em nosso país, Machado leu o texto de Eça de uma perspectiva muito interessada. De fato, é patente no texto um esforço de combate à narrativa naturalista, que Machado entendia, naquele momento, como uma narrativa que favorecia a descrição e a notação sensual em prejuízo da análise das paixões e da complicação lógica do enredo. A crítica de Machado se processava, assim, a partir de uma concepção de romance que era oposta à que ele identificava no texto de Eça e que ele mesmo tentava pôr em prática no seu Iaiá Garcia: o bom romance era, para ele, naquele momento, o que investia na construção de personagens complexas, movidas por paixões e motivações morais que garantissem o interesse dos desdobramentos da narrativa. O que Machado combatia em O Primo Basílio não era apenas uma específica realização literária, mas também, tendo em mente o sucesso de público do livro de Eça, a possível influência do estilo naturalista sobre a jovem literatura brasileira. Apoiado numa perspectiva marcadamente romântica, Machado tentava mostrar que o perigo da disseminação do Naturalismo era interromper a continuidade histórica da literatura de língua portuguesa, e o objetivo de sua crítica se revelava muito claramente quando ele expressava a esperança de superação do hiato causado pela súbita voga do Naturalismo: terminada a moda – que ele mesmo, com esse texto, se esforçava por combater –,  a “arte pura” voltaria “a beber aquelas águas sadias d’O Monge de Cister, d’O Arco de Sant’Ana e d’O Guarani.” Nessa frase revela-se uma conjunção de sentidos que percorre todo esse texto de Machado, e procede dos pressupostos românticos que ainda eram os seus: a arte pura, as águas sadias e o beijo castíssimo de Eugênia Grandet se opunham defensivamente à arte impura, às águas perversas da maré naturalista e à sensualidade mais ou menos vazia que via no romance de Luísa. Esse poder de corrupção do romance de Eça era claramente tematizado por Machado, que condenava “essa pintura, esse aroma de alcova, essa descrição minuciosa, quase técnica, das relações adúlteras”, e concluía pela afirmação do perigo que ele representava para o público leitor: “a castidade inadvertida que ler o livro chegará à última página, sem fechá-lo, e tornará atrás para reler outras”.[9]


A carta de Eça a Machado revela que o romancista português assimilou a crítica a O Primo Basílio, situando-a como divergência de concepção sobre o papel e o lugar da literatura na vida social. De fato, propõe-se a defender em ocasião futura – que não parece ter-se concretizado – não as realizações particulares que são os seus romances, mas os princípios de que procedem, que são os da “escola que eles representam e que eu considero como um elevado fator do progresso moral da sociedade moderna”. Ou seja: respondendo ao que sentiu como o ponto central da crítica de Machado – a questão moral –, afirma o caráter progressivo, crítico e moralizante da escola naturalista, deixando cair para segundo plano – já que não as traz à discussão – as restrições específicas, estéticas e técnicas, que lhe fizera o romancista brasileiro.
É possível que, com o prosseguimento da pesquisa de fontes no Brasil, em futuro próximo venham a ser acrescentadas às cartas atualmente conhecidas, algumas das muitas que Eça de Queirós certamente endereçou a intelectuais brasileiros. De fato, muito há ainda por fazer em arquivos nacionais ainda pouco explorados. No momento, entretanto, são esses os corresponden­tes brasileiros conhecidos, sobre os quais nos competia aqui alinhavar estas rápidas informações.


[1] José Veríssimo. História da literatura brasileira. Brasília, Editora da UnB, 1963, pp. 292-3.
[2] Apud Paulo Prado, no prefácio a Coelho, Henrique. Joaquim Nabuco — esboço biográfico. São Paulo, Monteiro Lobato Ed., 1922.
[3] Esses dois textos foram escritos para a Exposição Universal e publicados no volume Le Brésil en 1889. Paris, Librairie Charles Delagrave, 1889.
[4] “Dos Estados Unidos passou a Europa, onde se ligou intimamente ao barão do Rio Branco. Talvez desta circunstância se originasse o amor pela história do Brasil; certo é que esse amor se tornou em verdadeira paixão, e nele acabou cedo com o vago diletantismo de que nós todos padecemos; possuía conhecimentos extensos e profundos, e tinha orgulho, muito justo e legítimo, de ser um dos primeiros especialistas no assunto.” ‘Eduardo Prado’. In: Ensaios e Estudos, 1ª série. Rio de Janeiro, Livraria Briguiet, 1931, p. 340.
[5] Repr. in: Eça de Queirós. Obras completas, vol. III. Rio de Janeiro, Ed. Nova Aguilar, F 19XX, p. XXXX. E
[6] Maria Amália Vaz de Carvalho, in: Figuras de hoje e de ontem.  Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1902. Apud: A. Campos Matos (org.). Dicionário de Eça de Queiroz. Lisboa, Caminho, 1988, verbete Eduardo Prado.
[7] A respeito, eis o que escrevia Octavio Tarquinio de Sousa, no capítulo “Amigos brasileiros de Eça de Queirós”, incluído no volume Livro do Centenário de Eça de Queiroz (Lisboa / Rio de Janeiro: Edições Dois Mundos, 1945): “Prado instalara-se bem no coração e no barulho da grande cidade, no amplo e luxuoso apartamento da Rua Rivoli n° 119, mobilado com muito gosto e em que se destacavam os instrumentos e peças de mais recente descoberta – telefone, máquina de escrever, fonógrafo – com criados de libré e um até inglês, que se gabava de ter servido a Darwin. Mais conforto, mais comodidades, pareceria difícil imaginar-se e essa moradia de Eduardo Prado e o seu dono inspirariam a Eça de Queiroz o 202, dos Campos Elísios, de A cidade e as serras e o requintado Jacinto.”
[8] Nesse sentido, vale celebrar o primeiro sinal dessa reavaliação –  uma tese de doutorado, defendida em 1998, em Assis, em que, pela primeira vez, se procede de modo muito sério ao levantamento dos dados biográficos, à consideração da fortuna crítica e à recolha de textos dispersos do autor: Luiz Eduardo Ramos Borges. Vida e obra do escritor Domício da Gama: um resgate necessário. (mimeo.). Foi esse trabalho a principal referência desta parte de nosso texto.
[9] A discussão dos pressupostos críticos e das observações de caráter mais técnico do texto de Machado se encontra mais aprofundada numa “Apresentação” a O Primo Basílio, à qual se remete o leitor interessado nesse tópico específico:  Queirós, J. M. Eça de. O Primo Basílio. Cotia, Ateliê Editorial, 1998.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Jaime Cortesão - esboço de figura

Amar e servir o Brasil é uma das melhores formas de ser português:
Jaime Cortesão – esboço de figura


[Este texto reproduz, com pequenas alterações, o que integra o volume Missão portuguesa – rotas entrecruzadas, organizado por Rui Moreira Leite e Fernando Lemos, publicado pela Editora da Unesp, em São Paulo, em 2003.]


Não posso dar um depoimento sobre Jaime Cortesão. Afinal, quando ele faleceu, apenas estava chegando, para mim, a hora de aprender a decifrar as letras. E tampouco o historiador foi uma referência próxima como outros exilados portugueses, que tanto contribuíram para a cultura comum, como Adolfo Casais Monteiro e Jorge de Sena. Apenas tardiamente tomei contato com os seus textos e vim a saber da sua vida brasileira. Mas desde que pude conhecer-lhe a obra, foi ela talvez (junto com a de Oliveira Martins) a presença mais constante na minha atividade didática e de pesquisa sobre a cultura portuguesa e brasileira.
Ao perceber que Cortesão tinha estudado de modo tão integrado a história do mundo português dos séculos XVII e XVIII, pareceu-me desde logo estranho que não tivesse ouvido falar dele logo nos primeiros anos de faculdade; depois de conhecer melhor a obra, pareceu-me já descabido que ela tenha ficado tão obscurecida no Brasil a ponto de não haver hoje disponível edição brasileira de qualquer dos seus livros mais importantes.
Talvez o motivo principal de sua pequena difusão na universidade brasileira nas últimas décadas resida naquilo mesmo que julgo sua maior qualidade, pois ao pensar as questões culturais e políticas do período anterior à Independência como questões portuguesas, Cortesão colocou-se na contramão de uma corrente ideológica até hoje muito forte e atuante: a que consiste em repetir a projeção romântica dos ideais nacionalistas e nativistas sobre o passado colonial. Essa corrente que, durante décadas anos, teve força suficiente para praticamente banir da universidade brasileira um pensador nacional de vulto tão grande quanto Gilberto Freyre, parece finalmente estar perdendo lugar na descrição do período colonial. E, na esteira do sucesso da crítica da teleologia nacionalista das principais narrativas de história da cultura brasileira, por certo se desenhará um novo lugar para uma obra tão rica de questões quanto a do autor de Os descobrimentos portugueses.
            Dado o relativo desconhecimento contemporâneo do vulto humano e das principais linhas de articulação da sua obra, optei neste texto de apresentação e homenagem, por apresentar um sucinto panorama da vida e da obra de Jaime Cortesão, de modo a situar devidamente nele a importância da sua fase brasileira. No que diz respeito à análise da obra, concentrei-me, pelos mesmos motivos, no comentário mais amplo, porém não tão aprofundado quanto gostaria de poder fazê-lo, daquele que considero o trabalho mais importante dos seus estudos luso-brasileiros: Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid.

Jaime Zuzarte Cortesão nasceu em Ançã, perto de Coimbra, em 1884 e morreu em Lisboa, em 1960. Formado em Medicina em 1910, depois de ter seguido por algum tempo o curso de Direito e, antes, o de Belas-Artes, exerce a profissão por pouco tempo. De fato, já em 1912, que é também o ano do seu casamento, abandona a carreira médica ao ser nomeado professor de História e Literatura no Liceu Rodrigues de Freitas, no Porto. Só voltará a praticar a ciência em que era diplomado por um breve período e em situação de guerra. Todo o resto da sua vida centrou-se na atividade política, na literatura e, principalmente, no estudo da história.
Desde 1908, Cortesão fora adepto e militante do Partido Republicano, pelo qual tentará ser eleito deputado em 1911, por Coimbra. Posteriormente, quando de sua participação na Renascença, foi diretor do quinzenário A vida Portuguesa -- órgão do movimento -- e um dos mais ardentes defensores das Universidades Populares, onde lecionou graciosamente e proferiu inúmeras conferências.
Durante a primeira Guerra Mundial, em 1915, foi eleito deputado e marcou a sua atuação com a defesa, pela tribuna e pelos jornais, da intervenção de Portugal no conflito, ao lado da Inglaterra. Juntando as palavras ao gesto, alistou-se em 1917 e seguiu para a França como médico. Tendo participado ativamente dos socorros aos feridos na frente de batalha, acabou atingido por gases químicos em 1918. Temporariamente cego, voltou a Portugal e ali foi condecorado com a Cruz de Guerra. Em breve, porém, defrontou-se com a ditadura de Sidónio Pais, que o encarcerou por três meses em incomunicabilidade total. Após o assassinato de Sidónio e a conseqüente alteração do quadro político, Cortesão voltou à ativa, sendo, em 1919, nomeado Diretor da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Foi esse o período mais profícuo da sua vida em Portugal. No cargo em que permaneceu até 1927, liderou o famoso Grupo da Biblioteca (composto por Raul Proença, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Raul Brandão, Afonso Lopes Vieira, entre outros) e cuidou da expansão do acervo. Foi ainda nesse posto que se empenhou na oposição ao regime autoritário surgido do golpe de 1926, integrando a Junta Revolucionária de 3 de fevereiro de 1927. Do ponto de vista da constituição da sua obra, datam dessa época alguns trabalhos fundamentais, como A expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil (1922), e o artigo em que inicia uma das linhas mais conhecidas da sua obra histórica: "Do sigilo nacional sobre os Descobrimentos" (1924).
Com o fracasso do movimento revolucionário de oposição à ditadura militar, começa o longo período de exílio de Jaime Cortesão: segue para a Espanha, e daí para a França, onde permanece de 1927 a 1931. Entre 31 e 39, reside na Espanha, até que a vitória de Franco o obriga a fugir novamente para a França, onde permanece até o ano seguinte.
Durante esses anos, impossibilitado de trabalhar nos arquivos portugueses, desenvolve pesquisa em arquivos estrangeiros e produz outros trabalhos interessantes, entre os quais se destacam, por se vincularem à contribuição mais original de sua obra, L'expansion des Portugais dans l'histoire de la civilisation (1930), os vários capítulos que escreveu sobre os Descobrimentos para a História de Portugal dirigida por Damião Peres (1931-4), e os ensaios "O Franciscanismo e a mística dos Descobrimentos" (1932) e "Os fatores democráticos na formação de Portugal" (1930).
1940 é um ano doloroso na biografia de Jaime Cortesão. É o ano em que volta a Portugal, mas apenas por quatro meses. Preso, é logo banido e sai da prisão direto para o Brasil.
Não era a primeira vez que Cortesão vinha ao Brasil. Em 1922, quando ocorreram as comemorações da Independência brasileira, ele tinha integrado a comitiva de intelectuais que acompanharam o presidente António José de Almeida.
No Brasil, Jaime Cortesão vai viver cerca de 17 anos e escrever alguns dos trabalhos fundamentais da historiografia portuguesa moderna. Aqui, também, encontrará apoio governamental para proceder às pesquisas na área de estudos em que sempre se distinguiu mais: a pesquisa histórica fortemente baseada nos dados científicos relativos à navegação e, especialmente, na evolução do conhecimento geográfico e cartográfico. De fato, desde 1944, o historiador passa a ensinar duas disciplinas no Instituto Rio Branco: História da cartografia no Brasil e História da formação territorial no Brasil.
A lista dos trabalhos de Cortesão escritos durante o seu período brasileiro é bastante grande e os títulos são bem conhecidos. Mas para dar uma idéia real da atividade do historiador português no Brasil, eis aqui uma pequena relação: A carta de Pero Vaz de Caminha (1943), Cabral e as origens do Brasil (1944), Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid (1950), Manuscritos da Coleção de Angelis (Jesuítas e Bandeirantes no Guairá, Tapé, Itatim, Paraguai e Sacramento (1951), A fundação de São Paulo -- capital geográfica do Brasil (1955), “Brasil (hist. do período colonial)”, in Historia de América y de los pueblos americanos (1956), Pauliceae Lusitana Monumenta Historica (1956-60), Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil (1958).
Além desses trabalhos notáveis, Jaime Cortesão foi ainda o curador da grande exposição comemorativa do quarto centenário de fundação da cidade de São Paulo, realizada em 1954. A julgar pela maioria dos depoimentos de época, a exposição, que foi um grande sucesso de público, estava organizada de modo inteligente, equilibrado e didático. Não obstante, houve quem acusasse o curador de ter dado mais destaque à seção dedicada a Portugal e ao período colonial, do que à parte dedicada à vida independente da nação e da cidade.
Foi para responder a um desses ataques, que Cortesão escreveu uma resposta que é uma declaração apaixonada de luso-brasileirismo, e sintetiza todo o seu sentimento de gratidão ao país que o acolhera e onde vivia há já 15 anos. Trata-se destas palavras, que se encontram na p. 17 do prefácio do volume A fundação de São Paulo,  capital geográfica do Brasil (1955):

Quando dizemos que impulsos cívicos nos ditaram esta obra, subentendemos, em primeiro lugar, os deveres de cidadão português e de cidadão brasileiro. Brasileiro, repetimos. E, embora anunciemos separadamente essas categorias, sabemos que, em nossa consciência de homem e historiador, as duas se fundem numa única; e que temos direito, pelo nosso passado, a que os brasileiros assim o reconheçam. Abstraindo, aliás, do nosso caso, entendemos que amar e servir o Brasil é uma das melhores formas de ser português.

Na metade do ano de 1957, Cortesão retorna, finalmente, a Portugal. Não será, porém, pacífico esse retorno. Em 1958 é preso novamente por motivos políticos e só parece ter sido libertado graças à pressão da imprensa brasileira e, talvez, à influência do governo brasileiro.
Será curto esse período de retorno, pois virá a falecer em 14 de agosto de 1960, deixando inacabado o segundo volume de O humanismo universalista dos Portugueses, que será publicado postumamente, em 1965.

Além de geógrafo e historiador, Jaime Cortesão foi também autor de teatro, de vária panfletagem política, prosa de ficção, poesia e até mesmo literatura infantil. A notar, ainda, um livro singular: Portugal, a Terra e o Homem, misto de divulgação geográfica, crônica enternecida, livro de viagens e guia turístico.
O primeiro trabalho de vulto de Jaime Cortesão no campo da historiografia foi o artigo sobre a expedição de Cabral, de 1922. Nele, Cortesão explora a nova tendência da historiografia dos descobrimentos, já inaugurada no artigo "A conquista de Ceuta", que Antonio Sérgio publicara em 1920. Como se sabe, a tese desse trabalho é que Portugal se formara e mantivera pela atividade comercial e portuária decorrente das cruzadas, e que, portanto, a revolução de 1383 e os Descobrimentos se deveram basicamente à ascensão de uma burguesia comercial e marítima. Jaime Cor­tesão, com base no estudo dos mapas e dos documentos do período, aceita que a expansão portuguesa seja produto da ação de uma burguesia de interesses e mentalidade cosmopolita, formada também, mas não só (como logo veremos), a partir da atividade portuária no tempo das cruzadas, e tenta investigar qual a forma específica que teve esse empreendimento, quais os seus pressupostos e estratégias.
Já aqui parece despontar também outra das teses fundamentais da obra histórica de Jaime Cortesão, que se explicita em um artigo de 1924, publicado na revista Lusitânia -- "Do sigilo nacional sobre os Descobrimentos". A idéia central desse texto -- desenvolvida e retomada ao longo de toda a vida de Cortesão -- é a de que houvera uma estratégia de segredo a cercar toda a empresa dos descobrimentos. Estratégia essa justificável por motivos militares e de com­petição inter­nacional, e de que teria resultado, ao longo dos séculos, não só uma historização deficiente, mas também uma avaliação muito parcial da dimensão da cultura portuguesa nos séculos XIV e XV, pois os notáveis progressos científicos e técnicos realizados nessa época ficaram quase desconhecidos.
As idéias desses dois textos serão amadurecidas e sistematizadas em 1930 no trabalho intitulado L'expan­sion des Portugais dans l'histoire de la civilisation, publicado em Bruxelas. Já aqui estão bem desenvolvidas duas teses apenas esboçadas na década anterior, e que irão estruturar praticamente toda a reflexão de Jaime Cortesão sobre os descobrimentos portugueses. A elas se vai juntar uma terceira proposição, aparecida logo depois, em 1932, num artigo da Revista de las Españas, "O Franciscanismo e a mística dos Descobrimentos". Boa parte do trabalho de Jaime Cortesão, no que diz respeito às navegações será a tentativa de afirmar, por meio de grande pesquisa documental, este tripé sobre o qual se apóia o edifício da sua história das descobertas.
Em rápidas linhas, o quadro geral de desenvolvi­mento da nação portuguesa construído por Jaime Cortesão ao longo das décadas de 20 e 30, é o seguinte: a organização social democrática do norte de Portugal permitira, no final da Idade Média, o desenvolvimento de um novo modo de vida nacional, fundamentado no comércio marítimo à distância com base na agricultura. Disso decorreu a formação de uma solidariedade maior entre as populações de beira-mar, a consolidação do desenvolvimento das classes urbanas nos portos e a subseqüente trans­formação de Lisboa -- seu melhor porto -- em empório comercial e metrópole de uma grande nação marítima.
De seu ponto de vista, quando esse movimento desembocou na revolução urbana e popular de 1383‑5, solidificou-se a reorganização social e econômica em função do novo modo de vida nacional.
Dessa mesma revolução triunfante se originaram o plano de defesa da costa, que vai implicar a conquista de Ceuta, e a organização metódica e científica da empresa dos descobrimentos, com o necessário investimento na criação e desenvolvimento dos instrumentos técnicos necessários.
Todo esse desabrochar, no entanto, só poderia tornar-se efetivo graças à existência de um pensamento religioso que lhe fornecesse uma base espiritual e moral adequada. Uma alteração de tal monta, segundo Cortesão, não se poderia fazer sem um novo conjunto de valores religiosos. Tal conjunto era, no caso português, o Franciscanismo.
A tese vem, como vimos, desde 1932, e vai frutificar ao longo da obra de maturidade. Sua melhor exposição em vida do autor é um texto  de 1956, intitulado "O sentido da Cultura em Portugal no século XIV", onde se encontram estas linhas:

Sob o ponto de vista religioso, o que caracteriza a Baixa Idade Média, em Portugal, é o advento da Ordem de São Francisco e a sua fulminante expansão desde os meados do século XIII e, com ela, do conjunto de valores novos, sociais, morais e espirituais, a que conveio chamar‑se o Franciscanismo. Até o advento de São Francisco, a terra para os crentes era apenas um lugar de passagem e de expiação; e o ideal religioso, o isolamento, a inércia contemplativa e a abstenção ascética. A São Francisco e aos seus continuadores se deve a mudança radical desse espírito inibitório da expansão do homem no Planeta." (pp. 190‑191)

Do ponto de vista português, as mais palpáveis conseqüências da difusão do franciscanismo teriam sido a afirmação do gosto natura­lista, que o historiador acredita ser a característica mais marcante da literatura portuguesa dos séc. XIV, XV e XVI; o grande desenvolvimento da teoria do direito natural no séc. XIV, e, finalmente, o fortalecimento da atitude empirista frente ao mundo.
Eis como conclui esse texto de 1956:

Agora podemos definir o sentido da cultura em Portugal no século XIV, como sendo laico, até prescindir da intervenção da Igreja na realização do casamento; civilista, até negar ao Papa o direito da investidura e democratizar a coroação; experimental e expansionista, pelo espírito de dúvida e a negação da autoridade dos Antigos, princípios que presidiram aos primeiros descobrimentos atlânticos ‑‑ enfim, sentido geral e solidário pela mesma tendência da ciência, do direito, da literatura, das artes plásticas e da religião. (p. 201)

Essas idéias, centradas basicamente no período da primeira e da segunda dinastias, ocupam Jaime Cortesão até o final da década de 30. Foi apenas em 1940 que publicou o seu primeiro texto mais longo dedicado à história portuguesa posterior, uma comunicação ao Congresso do Mundo Português, intitulada "A geografia e a economia da Restauração".
Exilado no Brasil, Cortesão começa nesse ano a longa série de trabalhos dedicados à história luso-brasileira, em que justamente o período da Restauração merecerá um estudo monumental. São trabalhos que, não obstante iluminarem a vida do Brasil colonial, têm sua maior importância na revisão que promovem da história portuguesa. Como já se notou, os trabalhos luso-brasileiros de Cortesão representam, desde esse primeiro texto de 1940, a mais radical e bem-sucedida tentativa de superar de vez os valores legados pela Geração de 1870 na apreciação da história dos séculos XVII e XVIII.
Em A geografia e a economia da Restauração, Cortesão discute em primeiro lugar um texto de Antero, em que este afirma que a Restauração só foi possível devido ao abatimento da Espanha, e que o Portugal aí ressurgido nada tem a ver com o outro Portugal, sendo apenas um bastardo, definhado e mal vindo, um "produto artificial da diploma­cia que o seu grande amigo, o Inglês herético, protege, maltrata, diverte, explora," que "pela sua própria força não se manteria de pé..." (p. 65).
No texto de Antero, Jaime Cortesão identifica o paradigma de uma posição mais generalizada, e dominante na historiografia do final do século. Essa posição -- cuja melhor exposição se encontra na História de Portugal de Oliveira Martins -- seria, segundo Cortesão, "em grande parte, falsa", pois esses autores, embora fossem "dois artistas de gênio", teriam feito, ­nos moldes do tempo, história filosofante, preconcebida ideologicamente e sem estudo de fontes.
A essa versão da história, Cortesão vai contrapor a sua própria visão do período, que procura integrar o desenvolvimento da indústria açucareira do Brasil e a situação privilegiada de Portugal no domínio do comércio marítimo numa força única que conduziria às lutas pela Restauração da soberania lusitana.
A hipótese, assim, é que o comércio do açúcar no Brasil foi o que levou Portugal à Restauração, graças ao renascimento das forças nacionais, resultante da retomada do gênero de vida mais próprio ao país, isto é, o comércio marítimo à distância baseado na agricultura. A principal peça de seu esquema argumentativo é o combate, vigoroso e erudito, à afirmação generalizada desde 1870 de que a marinha portuguesa entrara em profunda decadência durante o período filipino. Conseguindo demonstrar convincentemente que, pelo contrário, no início do século XVII, a frota portuguesa e a ciência náutica tiveram uma recuperação muito impressionante, o texto termina por afirmar que foi daí que provieram a força e o dinheiro com que a burguesia empenhada nesse comércio sustentou o movimento da Restauração e a guerra contra Espanha.
Esse esforço programático de combater os preconceitos pessimistas legados pela geração de 70 vai desaguar no grande panorama que traçou da vida luso-brasileira do século XVIII em Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid.
Sem contar os tomos de documentos, que são cinco, têm-se aí, centrados na figura de Gusmão, quatro volumes de texto, ao longo dos quais o historiador se empenha em elevar, na medida do possível, a figura tão denegrida de D. João V, que de Oliveira Martins só recebera como elogio a afirmação irônica de que "não era sempre bolônio".
Pode parecer, a princípio, que tenha existido alguma falta de sentido de proporções nesse estudo. Afinal, por que Alexandre de Gusmão, um relativamente obscuro secretário e favorito de D. João V, mereceria uma empresa tão grandiosa como a que um dos maiores historiadores portugueses deste século lhe consagrou?
No entanto, à medida que se percorrem as páginas do livro, percebe-se melhor o escopo da tarefa: nesse luso-brasileiro de origem humilde, estrangeirado, iluminista e adepto da diplomacia como a melhor forma de resolução dos conflitos, Jaime Cortesão vai representar as virtudes portuguesas tradicionais, como as entendia. Gusmão -- que promove, em pleno século XVIII, uma nova edição da política de sigilo no que se refere aos conhecimentos geográficos -- é também um símbolo do universalismo português (pois era luso-brasileiro e "estrangeirado"), da força patriótica das classes populares (porque era de origem humilde, e chegou ao lugar que ocupou graças aos dotes pessoais) e do espírito da nova religiosidade franciscana (porque Gusmão era, segundo o autor, forte simpatizante da ordem de Assis).
Por contraste, a elevação de seu vulto permite descrever a mesquinharia do ambiente português da época, que termina por originar a ditadura do Marquês de Pombal, cuja figura é franca­mente odiosa a Cortesão.
Lendo Alexandre de Gusmão e o tratado de Madrid, a impressão final é, por isso tudo, muito curiosa. É certo que Cortesão destrói, com sólidos argumentos, o quadro negativo e morto que a Geração de 70 – especialmente Oliveira Martins – tinha traçado do período. Vitorino Magalhães Godinho já notou que esse ponto: nenhum outro trabalho tinha contribuído tanto, até esse momento, para enfraquecer, na mitologia da época, a imagem martiniana da morte do Portugal histórico em 1580. Por outro lado, não há como não perceber que, com esse trabalho, Cortesão efetua uma revalorização da história biográfica e simbólica de Oliveira Martins, que explicitamente condenava.

Deformado pela gota, torcido pelas dores, arruinado e amargado até ao fundo da alma pelo desespero de ver a sua obra do tratado caída em mãos tão más e traiçoeiras, o coração parou-lhe, esfriando para sempre os suores de sua paixão de criador crucificado. [...] Na Gazeta de Notícias, nem palavra. Sarcasmo do acaso e remate lógico do seu drama: no dia 1 de Janeiro, noticiava, a seguir, o órgão oficial que o Cardeal Patriarca celebrara um Te Deum de graças pelos grandes favores que o céu concedera, durante o ano volvido, a Portugal.

É assim que Jaime Cortesão narra o final da vida de Alexandre de Gusmão. Sem conhecer a autoria, não seria possível atribuir o trecho a Oliveira Martins? Como essa, há muitas e muitas outras passagens nesse livro em que não apenas o esforço de construção biográfica, mas o próprio estilo e forma de compor os quadros simbólicos, fazem lembrar imediatamente as últimas biografias do autor de Os Filhos de D. João I.
Finalmente, sem querer levar muito longe a homologia, registro apenas que, além do estilo e do procedimento de simbolização das forças históricas em personagens individuais, aproximam ainda de Martins o último Cortesão a crença na história como lição moral e a coloração apaixonadamente política, que colore este livro tão intensamente quanto a paixão política de Martins, segundo Eça de Queirós, coloria o Portugal Contemporâneo. De fato, se o volume é lido contra o pano de fundo do tempo de sua publicação e da situação biográfica do seu autor, é difícil não ver, no elogio do intelectual de classe humilde, geógrafo estrangeirado, luso-brasileiro, lutando contra a mesquinharia da corte de D. João V para afirmar a sua ampla visão política, e na aversão à figura autoritária de Pombal que na mesma época começa a dominar o horizonte político português, uma projeção das vicissitudes do historiador, exilado há 23 anos do seu país, onde imperava uma ditadura.
Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid é uma das principais obras de Jaime Cortesão. Se não for a mais importante, é, sem dúvida, das mais ambiciosas. Para realizá-la, o historiador recebeu total apoio do Instituto Rio Branco, o que lhe permitiu usufruir de excelentes condições de trabalho, como até então nunca tivera. E foi talvez por dispor dessas condições excepcionais que ele pôde unir aqui, de modo forte e articulado como poucas outras vezes o faria, as duas características principais do seu temperamento de pesquisador: o rigor documental e o gosto pela especulação ousada, nem sempre sustentada por provas conclusivas, como é o caso da que vem no capítulo "Alexandre de Gusmão e a Ilha-Brasil": o mito da "ilha-Brasil" que será recusado como formação mítica e como fator histórico importante, pouco depois, por Sérgio Buarque de Holanda. No geral, qualquer que seja o valor que se dê a reparos como o do autor de Visão do Paraíso, a verdade é que o livro de Cortesão é um monumento imponente, que ilumina o período de que se ocupa com uma luz nova: a luz de uma perspectiva integradora, luso-brasileira, que não teve, depois dele, outro momento tão brilhante.
­            Após Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid, Cortesão publica ainda três trabalhos importantes no campo dos estudos coloniais. São eles os já referidos A fundação de São Paulo – capital geográfica do Brasil, Pauliceae Lusitana Monumenta Histórica e Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil.
Com esse conjunto de obras, com a sua atividade jornalística intensa no Brasil (de que é exemplo a série de 64 artigos, "Introdução à história das bandeiras",  publicados entre 1947 e 1949 no jornal O Estado de São Paulo) e com a sua atividade quotidiana de professor do Instituto Rio Branco, Jaime Cortesão se tornou uma figura da maior importância  na cultura brasileira do pós-guerra.
Sobre os motivos prováveis dessa obra e dessa figura pública não terem recebido ainda a atenção que merecem dos historiadores da moderna cultura brasileira, já disse o que aqui cabia ser dito do ponto de vista acadêmico. Dum ponto de vista mais geral, creio que o reconhecimento pleno do lugar que ocupou se imporá no dia em que a luso-brasilidade deixar de ser o que tem sido desde há cem anos até hoje, isto é, apenas um discurso oficial, que se esgota em jantares e proclamações rodeadas de pompa e se reduz ao transporte subsidiado, para um e outro lado do Atlântico, de um punhado de figurões especializados em celebrações vazias. Nesse dia (que ainda parece longínquo), quando se buscar a sério alguma nova forma de convergência não-colonial para a cultura de língua portuguesa, será provavelmente reconhecido como exemplo de verdadeiro luso-brasileirismo esse homem que, no século XX, serviu à nação comum com a mesma inteligência brilhante e a mesma dedicação e persistência com que o fez o seu herói do século XVIII.

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Nota bibliográfica:
Todas as citações de textos do autor foram feitas segundo a edição das Obras completas de Jaime Cortesão feita em meados dos anos de 1980 pela editora Livros Horizonte, de Lisboa. A única exceção é o trecho retirado de A fundação de São Paulo, capital geográfica do Brasil. Nesse caso, utilizei a primeira edição, realizada no Rio de Janeiro, em 1955, pela editora Livros de Portugal.
O estudo de Vitorino de Magalhães Godinho a que aludo no corpo do trabalho é o que veio como introdução a Os factores democráticos na formação de Portugal. Intitula-se "Presença de Jaime Cortesão na historiografia portuguesa" e foi escrito em 1964.
Embora não o refira explicitamente, está presente em todo o texto o capítulo em que Óscar Lopes estuda o sentido da obra histórica de Jaime Cortesão em Entre Fialho e Nemésio (Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987): "Panorama geral dos doutrinários - 1910-1925", pp. 239-247.
Um último registro se faz necessário, para completar a bibliografia crítica essencial aqui utilizada: o do estudo de Jorge Borges de Macedo, "A teoria da história de Jaime Cortesão", publicado no número especial da revista Prelo dedicado ao historiador (Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, dez. de 1984).

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Martins, Pessoa e o herói na Mensagem

OLIVEIRA MARTINS, FERNANDO PESSOA E A FIGURA DO HERÓI EM MENSAGEM

 [Referência do texto: 
Anais do XXIII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa -
 http://www.abraplip.org.br/wp-content/uploads/2015/01/Anais-XXIII-Congresso-2011.pdf ]


            A História de Portugal e a História da civilização ibérica são livros que marcaram profundamente o imaginário português dos últimos anos do século XIX e das primeiras décadas do XX. A partir desses li­vros, e dos que se seguiram na pena de seu autor, ganha corpo e expressão uma espécie de “complexo nacional” frente ao qual (em apoio ou contraposi­ção) se vai situar a in­teligência portuguesa contemporânea e subse­quente. Antero, Eça e Junqueiro, no momento, António Sérgio, Jaime Cortesão e Fernando Pessoa, posterior­mente, são apenas os nomes mais notáveis que tratarão de incorporar, combater ou transformar as principais teses e conclu­sões surgidas nesses trabalhos.
            A maior parte do primeiro livro gira à volta do tema da decadência portuguesa. Tudo o que sobreveio depois de 1580 é visto apenas como um longo estertor, em que se debate inutil­mente um indivíduo con­denado, seguido da decomposição do corpo social já sem vida própria. E mesmo antes, desde D. Manuel, longos trechos dos capítu­los trazem prefigurações da desgraça, de que Alcácer-Quibir é apenas o desenlace formidável.
            Como já tentei mostrar em outra parte, o procedimento básico e recorrente ao longo da obra histórica de Oliveira Martins consiste em descrever e analisar acontecimentos particulares como símbolos das grandes tendências ou transfor­mações de um universo mais amplo, classista ou nacional. [i] Todo o seu livro da História de Portugal é montado sobre esse procedi­mento. O ter­remoto de Lisboa são as reformas do Marquês de Pombal. Cabral e o Gama são a exploração material e pérfida da Índia. Albuquer­que e D. João de Castro, a sua face genial e correta, embora inadap­tada à realidade do tempo. E D. João VI, “sujo, gorduroso, feio e obeso”, é o emblema de 200 anos de decadência praticamente ininterrupta, “representante quase póstumo de uma dinastia (...) de reis doidos ou ineptamente maus”.[ii] O segundo é a recorrente explicação da decadência como expiação dos crimes anteriormente cometidos.[iii] É certo que coexiste em Oliveira Martins pelo menos mais uma interpretação da necessidade da decadência em Portugal, mas, no mecanismo narrativo da História, a expiação é o que mais impressiona. A outra interpretação da decadência, que com essa faz pendant, se encontra na História da Civilização Ibérica. E é esta:

Caímos, passamos, porque é da natureza de todas as cousas vivas – e uma sociedade é um organis­mo – nascer, crescer e morrer.[iv]

            No texto há pouco referido, tratei também dos desdobramentos da metáfora organicista no pensamento de Martins e, sobretudo, na organização da sua narrativa. Assim, não vou abordar agora um dos seus mais notáveis desdobramentos, que é a oposição entre nação e nacionalidade, embora tenha sem dúvida interesse para a compreensão de Mensagem. Aqui, o foco estará na constituição da figura do herói.
            Essa é uma denominação curiosa, na História de Portugal. Por exemplo, Afonso Henri­ques é sem dúvida um herói, a quem cabe um papel central. Mas um papel que cumpre apesar de si mesmo: “Afonso Henriques foi quem verdadeiramente consumou a separação de Portugal, não pelos méritos próprios apenas, mas porque a direção política do reino começou no seu tempo a ser encaminhada pelos fatos no sentido de definir de um modo positivo a independência da nação”.[v] Quanto aos méritos próprios, eis como o define o mesmo historiador: “valen­te, medíocre, tenaz, brutal” e de “pérfido caráter” – quase um bandido, em suma.[vi] O outro grande herói do período de formação é, para o historiador, Pedro I – que ele descreve como louco, gago, furioso na aplicação de uma justiça passional. Todos os demais reis são figuras pálidas, sem expressão frente a esses dois, que, em suas próprias palavras, eram os “in­divíduos tipos, os dois loucos – um, frenético, brandindo o punhal mortífero; outro, carrancudo e fero, empu­nhan­do o látego do algoz e a vara de juiz, ou risonho e folgazão, dançando e cantando nas ruas no meio da sua família, como um pai”.
            Mais do que indivíduos, vê-se, são eles símbolos da construção de um organismo que os transcende, de que eles são ao mesmo tempo os criadores e os instrumentos. Por isso, por buscar nos heróis a encarnação de uma ideia coletiva, além desses dois “loucos”, nenhum outro rei da casa de Borgonha merece maior atenção na História de Portugal. Nem mesmo D. Dinis merece algum elogio muito maior do que “já não é anal­fabeto, e mede bem o valor da ciência”. E se o fundador da Universidade recebe algum destaque na dúzia e meia de linhas anódinas com que comparece na História é apenas porque Martins lhe reconhece “uma intuição dos caracteres modernos das nações”. De modo geral, a atenção do historiador se fixa apenas naquelas personalidades que fogem da mediocridade ou do esperado, naqueles caracteres que funcionam como símbolos de uma ideia que ainda não cabe neles, que não ascendeu ao nível da sua consciência e por isso se manifesta neles sob o aspecto da loucura e do grotesco.
            Para o historiador, era bem determinado o momento em que se estabelece a consciência nacional e começa a vida da nação como um indivíduo completo e equilibrado: a Revolução de 1383.
            Na História e no Camões, a revolu­ção equivale a uma metamorfose:

Na crise de 1383, Portugal aparece outro. Fundidos e assimila­dos, os elementos constituti­vos da nação tinham adquirido já o poder de organização bastante para ganhar uma consciên­cia; e é por isso que o movimen­to fundador da segunda dinastia se nos apresenta como um ato popular ou coletivo, uma ex­pressão positiva da vontade nacional, enquan­to as agitações anterio­res não passavam de atos pessoais ou de classe, revoltas de indivíduos.[vii]

Aí temos a extensão máxima da metáfora organicista, dentro de uma perspectiva evolucionista. E, para tornar mais claro o ponto, leia-se o que escreveu na História da Civilização Ibérica:

As nações são, com efeito, seres coletivos, e o seu desenvol­vimento é em tudo análogo ao dos seres in­dividuais. A biologia, ou ciência da vida, abraça também a história dos povos. Os órgãos do corpo social apresentam‑se, primeiro, como esboços rudimen­tares: e o conjun­to possui apenas o caráter de agregação. À medida que a ação e reação dos diversos elemen­tos obriga cada um deles a definir‑se e a especializar‑­se, vai aparecendo o prin­cípio de coor­denação comum, espécie de prin­cípio vital social.[viii]
           
            Ao que acrescenta:

            Logo, porém, e à maneira como se desenvolve e tende a atingir a perfeição típica, a sociedade gera em si um pensa­mento que é ao mesmo tempo o norte que dirige e a mola interior que move o ser orgânico no seu desenvolvimento e afirmação (...)

            E, por fim:

Quando as nações, depois de uma lenta e longa elabo­ração, atingem esse momento culminante em que todas as forças do organismo coletivo se acham equilibradas e todos os homens compene­trados por um pensamento, a que se pode e deve chamar alma nacional – porque o mesmo caráter tem nos indivíduos aquilo a que chamamos alma – é então que se dá um fenômeno a que também chamaremos síntese da energia coletiva. A nação aparece como um ser não apenas mecânico, quais são as primei­ras agrega­ções; não somente bioló­gico, como nas épocas de mais complexa e adian­tada organização; mas sim humano – isto é, além de vivo, animado por uma ideia. Nestes momentos sublimes em que a árvore nacional re­benta em frutos, o gênio coletivo já definido nas cons­ciências, realiza esse mistério que as religiões sim­bolizaram na encarnação dos deuses. Encarna, desce ao seio dos indivíduos privilegiados; e dessa forma, adquirindo o que quer que é de forte que só no coração dos homens existe, atua de um modo decisivo e heroico.[ix]

            Chegamos assim à concepção básica do movimento da história e da função do historiador, segundo Oliveira Martins:

Todas as grandes épocas das nações se afirmam por uma plêiade de grandes homens em cujos atos e pensamento o historiador encontra sempre o sistema das ideias nacionais, anteriormente elaboradas de um modo coletivo, atualmente expressas de um modo individual. O herói vale pela soma de espírito na­cional ou coletivo que encarnou nele; e num dado momento os heróis consubstanciam a totalidade desse espíri­to.

            A ideia é clara e, lendo isso, fica evidente que os heróis da história não têm, na composição de Martins, apenas o estatuto de recurso dramático, como já se julgou.[x] Nem sua história é uma narração que se apoia nos heróis como concessões ao didático ou ao exemplar.         No entender de Oliveira Martins, se é verdade que para conhecer a história de uma nação é preciso acompa­nhar a história das suas condições geográficas e das suas instituições e classes, isto é, a história material e anônima, é também verdade que apenas no “sistema dessas manifes­tações indivi­duais poderemos encontrar o fio histórico. Tudo era anônimo: tudo agora é pessoal; e na tragédia his­tórica, prelu­di­ada por coros numero­sos, ouvem‑se já as vozes das per­sona­gens”.[xi]
            O papel das individualidades heroicas que representam a vontade, o propósito social, precisa, para ser mais bem compreendido, ser projetado contra o pano de fundo de uma outra questão central na concepção de história de Oliveira Martins: que lugar tem o impre­visto, o fortuito, na ordem e na deter­minação dos aconte­cimentos his­tóricos? O que implica uma discussão sobre a possibili­dade de previsão dos rumos futuros de uma dada sociedade. Uma discussão, portanto, em última instância, acerca do caráter da his­toriografia enquanto ciência.
            Numa época em que o fortuito era ou uma manifestação indireta da vontade ou providência divina, ou um “adjetivo inventado para consolar a vaidade humana de ignorar a cada passo a genealogia dos fatos e dos acontecimentos”, como pensava Herculano, Martins vai tentar afirmar simultaneamente o caráter científico da história e a existência do casual, do imprevisto na determinação do devir histórico.[xii] Nesse ponto, percebe-se a importância que teve, para o seu pensamento sobre a História, a leitura da obra de Antoine-Augustin Cournot (1801-1877), de quem herda inclusive a concepção de que o final do século iniciava um novo período na vida das sociedades humanas: a pós-história.[xiii]
            Nessa linha de reflexão, para Oliveira Martins não havia dúvida, já em 1878, de que a História era uma disciplina cien­tífica, como a Biologia ou a Química. Sucedia que, por ser uma ciência de categoria supe­rior, o seu campo de trabalho recobria fenômenos que pertenciam a múltiplas e variadas “séries” de desen­volvimen­tos. Daí que a previsibilidade – que se apoia na distinção entre o que é acidental e o que é necessário ao longo de um determinado processo – fosse menor na ciência histórica do que nas ciências inferiores. Nas suas palavras:

...o fortuito (...) cresce em razão direta da categoria ou complexi­dade das ciências, e é por isso maior na história do que na biologia, na biologia do que na física.[xiv]

            Logo a seguir, para exemplificar como a interferência das séries dificulta a previsão histó­rica, escreve, no mesmo texto:

O inverno excepcionalmente frio, que gelou o exército de Napoleão na Rússia, sem ser um milagre, é, porém, um caso fortuito que veio impor uma marcha diferente daquela que as previsões da ciência his­tórica e militar tinham o direito de prescre­ver. (...) Nem só o encontro inopor­tuno ou intempes­tivo de duas séries indepen­dentes se deve considerar fortuito, porque a espécie de influên­cia que esse encontro exerce sobre a marcha normal das leis naturais não tem virtude para lhe alterar a natureza de incidente. Os acon­tecimentos fortuitos tanto podem embaraçar como auxiliar a história normal; e se o frio inverno de 1813, des­truindo o exército de Napoleão é um caso fortuito, igual­mente fortuito seria um inverno ex­cep­cional­mente temperado que o levasse a S. Petersburgo mais fácil e rapidamente do que fosse lícito esperar da marcha ordinária de tais empresas. (...) Os casos fortuitos são na história infinitamente mais numerosos do que em qualquer outra ciência, porque o número de séries que independente­mente se desen­volvem dentro do seu domínio (e por isso seus encontros, cuja repetição é progressiva e não pro­por­cional), além de conter o das que se dão dentro das ciências in­feriores, contém o das que se dão pró­prias das raças, das sociedades e dos indivíduos como seres morais e naturais.[xv]

            A expressão “história normal” decorre da postulação de que haja um vetor previsível de desen­volvimen­to da história, cuja direção, em linhas gerais, é possível determinar com base em considerações objetivas, tais como a deter­minação geográfica e rácica do grupo social, o estágio evolu­tivo de sua economia, seu poderio bélico etc.      
            Já se escreveu bastante sobre o hegelianismo de Martins, bem como sobre o seu proudhonismo. E é certo que a sua postulação de um herói coletivo, que encarne e expresse a vontade coletiva, é de matriz hegeliana.     Seu Júlio César, como observou A. J. Saraiva, é o de Hegel. No entanto, também se percebem claramente outras influências, já igualmente iden­tificadas pela crítica, anteriores ao conhecimento do filósofo alemão, de que o pensamento de Spencer, de onde tomou a analogia organicista, é das mais notáveis.            Falta estabelecer as diferen­ças, aquilo que parece específico ou central na estrutura do pensamen­to de Martins em relação aos autores cujo pensamento incorporou e transformou ao longo dos seus trabalhos.
            Um dos pontos fulcrais da obra martiniana, que lhe permite de alguma forma acomodar as várias e talvez inconciliáveis fontes teóricas que orientam seu discurso, é o seu particular conceito de heroísmo. Para ele, são insatis­fatórias as duas concepções de herói correntes no tempo: não aceita nem a ideia de que esses in­divíduos sejam “espontânea e natural emanação das condi­ções da sua época, porque amiúde encontramos exemplos do contrá­rio”; “nem tampouco (...) a teoria oposta que vê nos grandes homens indi­vidualidades inteira­mente livres e indepen­dentes que atuam subje­tivamente na socieda­de”.[xvi]
            Na sua concepção, os heróis podem ser basicamente de dois tipos, conforme se coloquem a favor ou de algum modo contra a corrente do tempo. Os que se colocam a favor e resumem as tendências da época – os conquis­tadores e os grandes estadis­tas – ficam sendo emblemas do momento porque são intérpretes – conscientes ou não – da his­tória. Os exemplos mais típicos dessa categoria seriam César e Filipe. Por outro lado, e aqui está o ponto, há personagens que têm outro estatuto: os inovadores e revolucioná­rios, que são marcados pela predomi­nância do “espírito subjetivo” e pela luta – nesse caso, haveria um choque entre a série em que esse tipo se envolve e a série que domina a sociedade naquele momento. O exemplo que nos fornece desse segundo tipo é o romano Graco. A individuali­dade de uma personagem do primeiro tipo, diz Martins, “é, sob o ponto de vista das leis da história, uma in­dividualida­de, se é lícito dizer assim, coletiva; porque a sua ação não altera nem desvia o caminho neces­sário da história, e a esfera do fortuito cir­cuns­creve‑se à maior ou menor rapidez com que o movimento se efetua, e às condições espe­ciais que o caracterizam e acompanham”.[xvii] Esses heróis são “propria­mente símbolos: e por isso tantas vezes a erudição tem descoberto o pequeno valor pessoal daqueles a quem as circunstân­cias tornaram para o povo a encar­nação do seu pensamento, e o ins­trumento inconsciente das leis histó­ricas”.[xviii]
            Já a individualidade do segundo tipo é sempre muito rica, tem “altos merecimentos indivi­duais; e é natural que seja assim, uma vez que só uma energia excepcional de pensamento subjetivo é capaz de arrostar de frente contra o majestoso sistema do organismo social”.[xix]
            Desse quadro em que se destacam, por um lado, a multipli­cidade das séries implicadas no objeto da história e, por outro, a neces­sidade de entender a que tendências pessoais ou coletivas corres­pondem os heróis, resulta uma postulação de grande impor­tância para o método de Oliveira Martins: a de que o herói é praticamente o princípio inteligível do desenvol­vimento histórico, porque é do seu destino que se podem deduzir com segurança as forças reais em ação numa dada sociedade. Daí que ao historiador ­não bastem os procedi­mentos normais das ciên­cias, a saber, e, nas suas palavras, “a observação e o sistema classi­fica­dor” – do mesmo modo, à linguagem do historiador “não bastam a precisão e a clare­za; é mister sentir e adivinhar, e pôr no estilo a vida e calor próprios das causas morais e animadas”.[xx] Mais do que um obser­vador isento ou um narrador imparcial, portanto, o historiador é um escritor inspirado, que busca identificar os heróis e transmitir ao seu leitor uma inter­pretação em certa medida pessoal do seu objeto, pois se a valorização dos heróis triunfantes não oferece problemas, o herói fracassado é em grande medida “descoberto” ou valorizado em função de um julgamento da sua grandeza subjetiva – o que quer dizer moral.
            Se há um traço constante e dominante ao longo de toda a obra de Martins, creio que é esse de apreciar os heróis como o princípio de inteligibilidade da história. E como os heróis não estão apenas sujeitos às tendências triunfantes ou derrotadas no percurso histórico, mas evoluem também e dramaticamente contra o pano de fundo do fortuito e do imponde­rável, é a reflexão sobre o seu destino que permite que o historiador não só afirme a necessidade do que foi, mas também especule, ou mesmo se lamente, sobre o que poderia ter sido.[xxi]
            Ou seja: utilizando amplamente os recursos da alegoria e do emblema, Oliveira Martins consegue ler, na trajetória da vida pública das suas personagens, uma dimensão cósmica. Movem-se com elas muito mais do que os interesses de determinadas famílias, grupos ou classes sociais: há um destino fatal, uma espécie de moira, pairando sobre as suas cabeças; há um obscuro sentimento de que a justiça se cumpre, ao longo do tempo; e há nos seus grandes heróis uma espécie de transe que preside as decisões e os atos mais relevantes do ponto de vista coletivo. A história de Portugal adquire assim uma dimensão cósmica, como antes só a tínhamos visto em Camões e que depois reencontraremos na Mensagem de Fernando Pessoa.
            António José Saraiva percebeu muito claramente essa dimensão da História de Portugal e em seu último trabalho sobre Martins atribuiu a esse livro “um caráter único que nós só podemos definir dizendo, paradoxal­mente, que é uma obra de introspecção”. Para explicar o que fosse esse “retrato introspectivo de uma nação”, escreveu o ensaísta:

Ele entendeu que a realidade se processa de dentro para fora, da semente para a flor, ao passo que os his­toriadores comuns, julgando-se cientistas, procedem de fora para dentro, como é habitual na análise cien­tífica, mas afastando-se cada vez mais daquilo que pretendem explicar. (...) É por isso que, em com­paração com esta História de Portugal, as outras, à sua luz, nos aparecem como sombras imperfeitas.[xxii]

            A presença do pensamento de Oliveira Martins na Mensagem, de Fernando Pessoa, já foi apontada, entre outros, por Helder Macedo, numa conferência pronunciada no centenário de Pessoa, na Unicamp.[xxiii] E alguns anos depois, António José Saraiva, em A tertúlia ocidental, escreveu: “os três grandes livros sobre Portugal são Os Lusíadas de Luís de Camões, a História de Portugal de Oliveira Martins e Mensagem de Fernando Pessoa”[xxiv] – ao que acrescentou: “Quanto ao terceiro livro, a Mensagem, é a condensação em mitos da narrativa de Oliveira Martins, principalmente. Não pertence ao gênero historiográfico como as outras duas obras; é um conjunto de odes inspiradas por elas”.[xxv]
            Nessa formulação radica-se a minha hipótese de leitura: a de que o pensamento de Oliveira Martins está profundamente entranhado na Mensagem, não apenas lhes dando a conformação geral do tema e o desenho de cada personagem, mas ainda (e nisso residirá, se tiver sucesso, a minha possível contribuição à leitura) determinando a distribuição dessas personagens ao longo do poema, bem como a constituição do discurso de cada uma das “odes”.
            Antes de prosseguir, porém, vejamos a estrutura básica do poema, no que diz respeito à escolha e à distribuição das personagens da história nacional.

MENSAGEM


Primeira parte – BRASÃO

I.          OS CAMPOS

1o Os Castelos
2o O das Quinas

II.         OS CASTELOS

1o Ulisses                                                    (3)
2o Viriato                                                     (2)                   (? -140 a.C.)
3o D. Henrique                                            (2)                    (1057?-1112)
4o D. Tareja                                                 (2)                    (1091-1130)
5o D. Afonso Henriques                              (2)                    (1109?-1185)
6o D. Dinis                                                  (3)                    (1261-1325)
7o (I) D. João o Primeiro                             (2)                    (1357-1433)
7o (II) D. Filipa de Lencastre                      (2)                    (1360-1415)

III.        AS QUINAS

1o D. Duarte, Rei de Portugal                    (1)                    (1391-1438)│
2o D. Fernando, Infante de Portugal          (1)                    (1402-1443)│
3o D. Pedro, Regente de Portugal              (1)                    (1392-1449)│
4o D. João, Infante de Portugal                  (1)                    (1400-1442)│
5o D. Sebastião, Rei de Portugal                (1)                    (1554-1578)

IV.       A COROA

Nun’Álvares Pereira                      (2)                    (1360?-1431)

V.        O TIMBRE

A CABEÇA DO GRIFO
O Infante D. Henrique                   (3)                    (1394-1460)│

UMA ASA DO GRIFO
D. João o Segundo                        (3)                    (1455-1495)

A OUTRA ASA DO GRIFO
Afonso de Albuquerque                (3)                    (1462?-1515)

Segunda parte – MAR PORTUGUÊS

I.          O infante                                                          (2)
II.         Horizonte                                                                    
III.        Padrão                                                             (1)        Diogo Cão (séc. XV)
IV.       O mostrengo                                                     (3)
V.        Epitáfio de Bartolomeu Dias                             (3)        (?-1500)
VI.       Os Colombos                                                                (1451?-1506)
VII.      Ocidente                                                                       (1500)
VIII.     Fernão de Magalhães                                       (3)        (1480?-1521)
IX.       Ascensão de Vasco da Gama                            (3)        (1468?-1524)
X.        Mar português                                                             
XI.       A última nau                                                                   (1578)
XII.      Prece                                                                          



Terceira parte – O ENCOBERTO

I.         OS SÍMBOLOS

1o D. Sebastião                                     (1)
2o O Quinto Império                                         
3o O Desejado                                      
4o As Ilhas Afortunadas                         
5o O Encoberto                                                

II.        OS AVISOS

1o O Bandarra                                       (3)        (1500-1556)
2o António Vieira                                  (3)        (1608-1697)
3o                                                           (1)        (1888-1935)

III.       OS TEMPOS

1o Noite
2o Tormenta
3o Calma
4o Antemanhã
5o Nevoeiro


            Como se pode constatar, a ordem de apresentação das personagens históricas é, no geral, cronológica, com duas alterações: o deslocamento de Nun’Álvares para depois dos filhos de D. João I e a mais violenta infração da cronologia, que consiste na inclusão de D. Sebastião junto aos príncipes da Ínclita Geração e no consequente deslocamento do infante D. Henrique de junto dos seus irmãos.
            Observa-se também, quando se consideram as personagens e as datas, que a dinastia de Bragança está praticamente ausente do poema. Nenhum príncipe, nenhum agente histórico que não sejam os profetas da ressurreição nacional (o Bandarra e o Padre António Vieira).
            Por fim, observa-se uma interessante forma de articular as “odes” nomeadas segundo os atores históricos: dividem-se entre aquelas que trazem o discurso em primeira pessoa (dizem “eu” as Quinas, Diogo Cão, D. Sebastião – que aparece duas vezes no poema – e o 3o Aviso) e as que trazem o discurso em terceira ou segunda pessoa. Mais especificamente, entre aquelas em que a personagem histórica assume o discurso e explicita o seu papel na história ou a sua consciência da implicação dos seus atos, e aquelas em que a personagem é descrita de fora ou interpelada pela voz poética.
             Minha percepção é que a forma da distribuição das personagens e, principalmente, a forma de articulação do seu discurso têm relação íntima com a teoria do herói de Oliveira Martins. Como na obra de Martins, são aqui os heróis o princípio de inteligibilidade da história. E, como lá, há os que triunfam e os que fracassam.[xxvi]
            É certo que a leitura de Mensagem não pode ignorar o paradigma crístico, definido pelo poema que diz:

Foi com desgraça e com vileza
         
  Que Deus ao Cristo definiu:
         
  Assim o opôs à Natureza
         
  E Filho o ungiu.

Ou seja, não se pode ignorar o modelo sacrificial na escolha da forma do discurso: as personagens das Quinas são mártires e, portanto, conscientes do seu destino. Consciência esta que as torna verdadeiramente mártires (isto é: testemunhas) e não apenas vítimas.        É a consciência que distingue, por exemplo, D. Fernando, o Infante Santo, do animal que vai para o sacrifício pagão, aludido no ato de dourar a fronte:

Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
         
  A fronte com o olhar;

            Mas uma observação atenta do destino histórico das personagens que se expressam em primeira pessoa mostra que são os desgraçados ou fracassados que assim o fazem. São os que foram pagos como preço da glória, e também o que teve nele uma certeza que o transcendia.[xxvii] Já entre os que não se expressam em primeira pessoa, há dois tipos: aqueles cujo sentido na história o poeta expõe e aqueles para os quais o poeta desvela o sentido da ação ou invoca como figuras tutelares da obra de ressurreição nacional, cuja hora o poema anuncia. Trata-se, na verdade, de importante modalização, pois os que são descritos em terceira pessoa têm uma interpretação comum, pacífica – tal como foram fixados pela tradição histórica (e, no caso, não só na História de Martins); já os que são interpelados em segunda pessoa são redimensionados, no poema de Pessoa, que lhes desvela o sentido oculto ou iniciático da presença e da ação.
            Portanto, se Pessoa aproveita de Martins a teoria do herói – dividido entre o fracassado de grandes merecimentos individuais e o triunfante, que é encarnação das forças sociais majoritárias –, ao mesmo tempo promove uma subdivisão na tipologia do herói triunfante, que lhe permite reinterpretá-los (contra, por exemplo, a leitura camoniana e martiniana, no caso de D. Tareja) em função de uma leitura iniciática da história, na qual ela aparece como a matriz carnal e instintiva (“nela o sensual era maior”, disse Camões) do reino que depois se transformará em império, cuja madrinha já será D. Felipa.
            Essa leitura iniciática também parece responder pela diferente seleção das personagens, em relação à História de Portugal. D. Pedro I, por exemplo, está ausente do poema. Como o destino histórico da nação, segundo Pessoa, está no descobrimento, no desvendamento – na decifração do mundo, primeiro materialmente e depois espiritualmente, conforme se lê já no texto de A Águia[xxviii] – e não na celebração do amor ou na aplicação da justiça, está ausente esse rei que, segundo Martins, tão bem resumia os primeiros tempos da nação.
            E é a essa leitura iniciática que se deve a enorme valorização de D. Dinis – destoante seja em relação ao lugar que ele ocupa em Os Lusíadas, em que aparece achatado pela ausência de feitos guerreiros, seja em relação à História de Portugal, onde aparece como vimos. Aqui, D. Dinis, embora triunfante e descrito desde fora, exibe a consciência do seu papel histórico, de fundador da língua e do corpo das navegações: o rei lavrador transforma-se no plantador do futuro trigo do Império.
            Ao mesmo tempo, a inclusão de D. Felipa de Lencastre nos castelos, por meio do artifício do desdobramento do sétimo, é um momento de confluência entre a perspectiva iniciática de Pessoa e a narrativa histórica do nascimento da consciência portuguesa, tal como a descreveu Oliveira Martins, pois foi este que praticamente a definiu como madrinha de Portugal, em Os Filhos de D. João I, ao propô-la como elemento de ligação entre a tradição da cavalaria inglesa e o heroísmo português. Como se vê nestas passagens, a segunda das quais ecoará ainda no famoso artigo de A Águia:

            Foi o seu último filho. D. Filipa acabou por gerar um santo, ela em cujo ventre se formara a semente de tão grandes homens. Quinze anos (1387 a 1402) de um procriar incessante: abençoadas entra­nhas! E durante este período, no vigor da vida, entre os trinta e os quarenta e cinco, o rei não teve um bastardo. Que singular mudança houvera nos costumes da corte: dessa corte que vinte anos antes aclamara Leonor Teles.[xxix]

            O espírito generoso da cavalaria, importado de fora, toma entre nós feições e objetos indígenas. A empresa consiste num franco navegar para o bem, com as velas cheias pela viração da ciência e da fé, que ainda sopravam acordes.[xxx]

            A moda das divisas e motos, introduzida, com outros inglesismos, pelo casamento de D. João I (...) essa moda importava pouco em si, mas significa muito porque as divisas da família de Avis exprimem todas a nova ordem de ideias que a corte respirava e de que vivia. Fato é, porém, que o formalismo ritual da cavalaria veio dar corpo, e portanto consciência e consistência, aos sentimentos de galhardia e lealdade portuguesas, expressos em numerosas lendas históricas, e encarnados no vulto épico do condestável (...) O mestre de Avis, todavia, primeiro rei estrangeiro que entrou na “santa confraria da Garrotea”, abriu um lugar à fidalguia nacional nas legiões da cavalaria europeia.[xxxi]


            Finalmente, cumpre aplicar a hipótese ao terceiro aviso, costumeiramente identificado à figura do poeta. Ele fala em primeira pessoa, e é, portanto, dentro das coordenadas que vimos traçando um herói fracassado. O que não quer dizer, no caso, que já tenha fracassado: é apenas alguém que tem, nos termos de Martins, acima transcritos, “energia excepcional de pensamento subjetivo [e] é capaz de arrostar de frente contra o majestoso sistema do organismo social”. A voz dissonante do presente, cujo destino se decidirá no atendimento à sua mensagem, isto é, à convocação para a virada, com a qual saúda os possíveis irmãos.
            E com isto se fecha esta comunicação. Não posso ir aqui mais longe no comentário do poema, enfatizando a relação que outros elementos seus mantêm com o pensamento e a obra de Oliveira Martins. Mas espero, com estas breves indicações, ter sugerido com alguma coerência que se trata de uma impregnação muito mais ampla e muito mais profunda do que se tem até aqui considerado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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[i] Franchetti, 1995.
[ii] Martins, 1991, p. 411.
 [iii] A ideia está também em Antero de Quental. Comparece, p. ex., na famosa conferência do Casino e no final da vida do poeta, quando, por ocasião do Ultimatum, Antero publica um texto intitulado justamente “Expiação”.
[iv] Martins, 1909, p. 43.
[v] Martins, 1991, p. 61.
[vi] Martins, 1991, p. 67: “A separação de Portugal foi um fato consumado, graças ao valente, medíocre, tenaz, brutal e pérfido caráter de Afonso Henriques”.
[vii] Martins, 1991, p. 303.
[viii] Martins, 1909, p. 234.
[ix] Martins, 1909, p. 235.
 [x] Cf. António Sérgio, 1973. O estudo de Sérgio se constrói sobre o estabelecimento de cisões dicotômicas na obra de Martins, segundo o mesmo esquema com que o ensaísta abordara a de Antero. Também Martins teria uma “alma essencialmente mórbida e contraditória”. De um lado, republicana e antimonarquista; de outro, cesarista; no plano da escrita, uma face da moeda seria o artista e a outra, o historiador. A predominância do artista sobre o historiador faria com que, no quadro da História de Portugal, como nem sempre a per­sonagem mais adequada ao estilo (isto é, a mais dramática) fosse a mais típica ou a mais importante de um dado período, a verdade fatual do texto histórico ficasse prejudicada.
 [xi] Martins, 1909, p. 236.
 [xii] A frase de Herculano se encontra na carta a OM datada de 25 de dezembro de 1872, repr. in: Herculano, s/d. Na sequência do texto, Herculano discute exatamente o caso do inverno russo de 1812, que comparece na passagem adiante citada de Oliveira Martins. A propósito desta passagem, escreve Vitorino de Magalhães Godinho: “ele não via, como viu um Oliveira Martins, que o encontro de duas séries deterministas é que não é determinado, porque dependem de sistemas e referências diferentes” (apud Carvalho, 1992, p. 508).
[xiii] Quanto às ideias de Cournot, ver: Cournot, 1975, pp. 33-45 e Cournot, 1982. Há uma interessante introdução às ideias de Cournot e das suas implicações para a teoria da história em Anderson, 1992, capítulo 2, pp. 28-48. Quanto à concepção martiniana de que se aproximava o fim da história, ver a “Advertência” de 1891 a Martins, 1958: “Não existe matéria de história, quando não há caracteres acentuados: assim sucede nos tempos obscuramente primitivos das civilizações, e também nas épocas não mais claramente coletivas dos nossos dias, em que tudo volta a ser anônimo, como no princípio. Há então apenas fatos e matéria própria para escritos didáticos, análogos aos referentes à natureza inorgânica ou animal (...)” (p. 2).
 [xiv] Martins, 1928, p. xiii.
[xv] Martins, 1928, p. xiii e p. xiv.
[xvi] Martins, 1928, p. xv.
[xvii] Martins, 1928, p. xvi.
[xviii] Martins, 1928, p. xvi.
[xix] Martins, 1928, p. xvi.
[xx] Martins, 1928, p. xv.
 [xxi] O desaparecimento progressivo dos heróis entre o final da segunda dinastia e todo o período da terceira reflete-se em todos os aspectos da narrativa e é evidente na forma de intitular os capítulos, como mostra Isabel de Faria e Albuquerque, 1988, p. 121.
[xxii] Saraiva, 1995, p. 111.
[xxiii] Trata-se de Macedo, 1988.
[xxiv] Saraiva, 1995, p. 122.
[xxv] Saraiva, 1995, p. 103.
[xxvi] É essa, do ponto de vista que ensaiamos aqui, a explicação para o deslocamento do Navegador para depois dos seus irmãos. A propósito do D. Henrique, vale a pena referir uma passagem de Os Filhos de D. João I, na qual o caráter do herói como encarnação da vontade coletiva aparece plenamente. Trata-se da reunião do conselho em que D. Henrique defendeu e fez prevalecer a tese de que Tânger deveria ser tomada: “– Bem sei que a gente é pouca, mas Deus ordena! Ainda que fosse menos, iria por diante. E saiu como um Fado, automaticamente. Sempre que o Inconsciente, apossando‑se de um homem, faz dele o veículo da alma de um povo, criando‑o herói, a humanidade que se compõe de inteligência e amor sofre. D. Henrique era um destino: por isso era cego e desapiedado”  (Martins, 1958, p. 225).
[xxvii] De fato, os presentes nas Quinas tiveram destino triste e sofrido. E Diogo Cão, após a glória das primeiras descobertas, caiu em desgraça junto à corte.
[xxviii] Pessoa, 1912.
[xxix] Martins, 1958, p. 15.
[xxx] Martins, 1958, p. 23.
[xxxi] Martins, 1958, p. 20.