segunda-feira, 17 de junho de 2013

Eça de Queirós: A cidade e as serras



A CIDADE E AS SERRAS: TESE CONTRA TESE

[Este texto, que é um trecho da apresentação do romance A cidade e as serras, publicado pela Ateliê Editorial, foi lido no Congresso Internacional O Século do Romance - Realismo e Naturalismo na Ficção Oitocentista , realizado em Coimbra em 2011.]

           Na fortuna crítica de Eça, ocupa lugar importante a afirmação de que o romance defende a tese da superioridade da vida tradicional do campo – das formas de vida e estruturas sociais paternalistas e pré-industriais – sobre a vida moderna. Colorido de patriotismo, o livro teria como proposta o retorno às origens da nacionalidade, no norte agrário português.
           Ora, dizer que a história narrada por Zé Fernandes possui uma tese não é o mesmo que dizer que o romance de Eça de Queirós tenha uma tese e muito menos que a tese da narrativa de Zé Fernandes seja a tese do romance de Eça ou a tese de Eça, de modo geral, nos últimos anos de sua vida.
           João Gaspar Simões, identificando uma coisa com outra, acusou Eça de insinceridade, uma vez que não o julgava disposto a adotar a solução que o livro proporia, ou seja, a trocar a sua vida em Paris pela vida rural portuguesa. Jacinto do Prado Coelho, por sua vez, definiu a obra como “romance reacionário”.[1]
           A questão de se a tese de Zé Fernandes é a tese de Eça não ocupará o primeiro plano desta comunicação. Isso porque não há como chegar a discutir a proximidade entre o ponto de vista de Zé Fernandes e o suposto ponto de vista de Eça sem primeiro entender a construção romanesca no interior da qual Zé Fernandes expõe e defende a sua tese; e também porque da análise dos últimos romances o máximo que se poderia extrair seria uma “ideologia do último Eça romancista”, que não necessariamente coincidiria com a ideologia do escritor, que ao mesmo tempo assinava textos com sentido bastante diferente do que se poderia extrair dos seus romances finais.
           Sobre esse ponto, num ensaio publicado em 1945 – ou seja, no ano de balanço político da obra do autor, no qual a tônica foi a suposta guinada à direita do antigo agitador socialista – Antonio Candido, depois de analisar o “recuo ideológico” que também identifica na obra romanesca do autor a partir de Os Maias, escreve: “com efeito, ao mesmo tempo que acomodava na fantasia e no ruralismo a sua visão literária, ele escrevia alguns dos seus artigos mais avançados politicamente: ao lado de uma crônica vencidista sobre a rainha ou o rei, um julgamento lúcido e destemido sobre o socialismo, ou uma crítica incisiva, mordaz, sobre a burguesia capitalista e o imperialismo econômico.”[2]
   A propósito do estado da crítica nesse importante ano do centenário, e de sua própria contribuição a ele, Antonio José Saraiva escreveu, no seu último livro, uma pungente e lúcida autocrítica:

           Em 1945, comemorando-se o centenário de nascimento de Queirós, o autor da presente obra publicou um estudo sobre As idéias de Eça de Queirós [...] De fato, o lento desenvolvimento da mentalidade portuguesa tornava ainda atual em 1945 a caricatura que Eça fez da nossa sociedade em As Farpas, O crime do padre Amaro e O primo Basílio [...]. Todas as outras obras eram consideradas desvios da sua ‘verdadeira’ rota. As idéias de Eça de Queirós é uma súmula dos clichês então reinantes sobre o escritor. Por isso uma obra-prima como A cidade e as serras era julgada como insignificante, ou como um ‘regresso’ a Júlio Dinis. E não foi só o presente autor que assim apresentou Eça: era a opinião generalizada.[3]

           Hoje o que parece mais razoável não é ler cada romance em busca de índices comprobatórios de uma imagem do autor feita a partir da leitura do conjunto deles, ou a partir de uma leitura seletiva dos textos do autor, elaborada com base nos interesses do momento, mas perceber em cada um a complexidade das vozes e situações. 
           No caso de A cidade e as serras, o mais interessante é perceber como se desenvolve a tese de Zé Fernandes no interior da narrativa, como ela se articula com outras teses ali presentes e quais os efeitos de sentido que derivam desse desenvolvimento e articulação. Com isso não só a imagem de autor seguramente será alterada, mas também a leitura se poderá fazer de forma menos esquemática e mais prazerosa.
           Passemos, então, à tese e sua situação dentro das coordenadas do livro.
           No que diz respeito a Jacinto, a tese sobre as virtudes do retorno à vida tradicional ou de reencontro com as bases da nacionalidade não faz sentido. Jacinto é personagem de mão única: nasceu, cresceu e viveu toda sua vida em Paris; um dia transferiu-se para as serras portuguesas e lá se fixou para sempre, sem jamais retornar à terra natal, isto é, à França.
           A história de Jacinto e de sua família, aliás, é desprovida de regressos. Seu avô, D. Galião, parte com a mulher e o filho para Paris, e de lá nenhum deles retornará a Portugal.
           Jacinto não vê, em momento algum, a viagem às serras portuguesas como retorno às origens; entende-a, sim, como uma excursão arriscada para fora das fronteiras do seu mundo: “É muito grave deixar a Europa!”, exclama, ao despedir-se da paisagem urbana, prestes a mover-se para fora das fronteiras da cidade e da França. Em Portugal, não experimenta efusão patriótica, nem comoção por sentir-se instalado nas terras da família, de onde lhe provêm as rendas.
           De modo que apenas tendo em mente um ser maior do que o indivíduo Jacinto – uma entidade como o clã, a linhagem familiar – torna-se possível falar em retorno e reencontro com as origens, como faz Zé Fernandes, quando grita para o amigo, assim que o trem entra em Portugal: “Acorda, homem, que estás na tua terra!” Para Jacinto, a frase só faria sentido – e ainda assim em registro bem diferente do patriotismo da exclamação de Zé Fernandes – se o trem estivesse a cruzar as fronteiras da sua propriedade de Tormes.
           A proposição de que o livro trata de um reencontro das origens e que a própria trajetória de Jacinto é a de um retorno a essas origens é a tese de Zé Fernandes. Mais do que isso: a tese do retorno deriva diretamente do desenho da vida de Zé Fernandes, que se apresenta como uma contínua viagem entre os dois pólos da vida européia representados no título do romance. Zé Fernandes não é apenas a personagem que regressa, mas ainda a personagem que o faz incessantemente: nasce em Portugal, estuda em Paris, retorna a Portugal e outra vez a Paris. Quando começa a ação do livro, aí o temos e, na seqüência, movimenta-se entre a cidade e as serras, terminando por fixar-se nessas, cuja superioridade afirma e enaltece, por meio do exemplo que é o seu amigo Jacinto.
           No romance, sua única viagem que não é desde o princípio entendida como regresso é o tour pela Europa, relatado com acentuado sabor cômico, por meio da quantificação dos aborrecimentos e das perdas, em um único parágrafo no capítulo VII. Tour esse, diga-se, que proporcionou ao viajante dois únicos prazeres dignos de nota: o encontro, em Veneza, com um estrangeiro que conhecia sua aldeia em Portugal e com o qual pôde evocá-la, e o momento do regresso ao aconchego da casa de Jacinto.
           O retorno à origem como recuperação da felicidade (e da virtude) é assim o tema e a tese de Zé Fernandes. E a demonstração da tese, segundo Zé Fernandes, é a prática de Jacinto. Zé Fernandes, sozinho, não pode afirmar a tese. Ele experimenta como ninguém a sedução da cidade. Sua recusa a ela está sempre a um passo de confessar-se como ressentimento provinciano. Jacinto, o cosmopolita que encontraria a felicidade no campo, é, por isso mesmo, o apoio e a prova isenta da tese de Zé Fernandes.
           Jacinto, entretanto, tem a sua própria tese sobre a felicidade, que aparece logo no começo do livro: a de que ela é o produto da suma ciência e da suma potência. Uma proposição de que a felicidade, portanto, reside na integração ao próprio tempo, no que ele tem de mais avançado.
           A tese sustentada por Zé Fernandes, na medida em que identifica a felicidade com o retorno à vida campestre e pré-industrial (ou que propõe que os remanescentes do mundo pré-industrial sejam lugares possíveis para a felicidade na idade moderna), implica desde logo a demolição da tese de Jacinto.
           Por isso, porque a afirmação de uma depende da destruição da outra, Zé Fernandes se ocupa com vigor de demonstrar a Jacinto (e ao leitor) o erro da perspectiva e das crenças do amigo.
           Desse ponto de vista, Jacinto é tanto o defensor de uma tese incompatível com a do narrador, quanto uma demonstração da tese deste. Ou talvez fosse melhor dizer: Jacinto é o campo de provas de Zé Fernandes, que atua sobre ele e sobre o leitor de modo a tornar o amigo a própria demonstração de sua tese. Ou seja, Zé Fernandes não só precisa destruir a tese de Jacinto, como também convertê-lo à sua própria, torná-lo um exemplo da correção daquilo que propõe como alternativa à tese do amigo.
           Já se observou que a dupla Jacinto/Zé Fernandes reproduz, em certa medida, a dupla matricial D. Quixote/Sancho Pança. A sugestão está dada no próprio romance, em cujo capítulo VIII, se lê:
  
                        Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:
                        – Que beleza!
                        E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:
                        – Que beleza!
          
           Mas há pouco de Sancho nesse narrador astuto. Como há pouco de Quixote no seu amigo Jacinto, que, além de ter boa figura, é ainda sobejamente rico, tem excelente saúde, é agradável às mulheres, possui inteligência e grandes dotes sociais, e não possui, a rigor, incompatibilidade violenta com os ambientes nos quais se move.
           De modo que a alusão de Zé Fernandes produz apenas o reforço da imagem de bom-senso chão, que o narrador se arroga, e da caracterização de Jacinto como irrealista, defensor de uma causa fantástica.
           Ou seja, a qualificação das personagens, nessa passagem, integra a estratégia geral de Zé Fernandes, que é sublinhar a fragilidade prática de Jacinto e conseqüentemente enfraquecer o seu lado na disputa pela resposta correta à questão que lhe interessa e que, uma geração antes, foi título de um romance de Camilo Castelo Branco, “onde está a felicidade?”.
           Nesse livro, Camilo respondera a essa pergunta com grande cinismo “realista”: “Está debaixo de uma tábua, onde se encontram cento e cinqüenta contos de réis.” Já no romance de Eça, sendo Jacinto um herdeiro para o qual as necessidades da vida não pesarão nunca, essa resposta está interdita e a demanda da felicidade deverá operar-se tendo a riqueza como pressuposto, o que permitirá a Zé Fernandes apresentar a história do amigo (e a sua, integrada à do amigo) como uma história exemplar, quase um apólogo.
           De fato, Jacinto, abrigado da necessidade pela fortuna herdada, pode livremente entregar-se ao exercício da modernidade e do refinamento da civilização como busca da felicidade, deles colhendo apenas tédio, insatisfação e enfraquecimento da saúde. E também poderá, na seqüência, porque o acaso o trouxe a Tormes, entregar-se às fantasias agrícolas e ao projeto de erradicação da pobreza dentro dos muros da sua propriedade, sem cuidar mais de Paris, que se reduz a etapa encerrada da sua vida.
           Assim, as duas fases de Jacinto são claramente marcadas do ponto de vista da satisfação: a primeira fase é de ausência e a segunda é de plenitude. A primeira é de tédio, a segunda de animação. E o agente da transformação não é a vontade, nem qualquer alteração da sua situação financeira, mas o simples acaso que, de súbito, o deslocou de um ambiente para outro.
           Jacinto resulta, por isso mesmo, uma personagem fora do mundo, no sentido que age em completa liberdade e sequer se dá conta ou se importa com as implicações dos seus atos. É auto-suficiente. Vive, desse ponto de vista, num castelo (perfeitamente isolado e autônomo, porque isento de vassalagem que o obrigue a qualquer ação para fora), num domínio que se faz e se quer independente e alheio ao resto do mundo. O seu alheamento e autocentramento tornam-se evidentes ao longo da narrativa, não só no que diz respeito à economia, quanto no que diz respeito à política.
           Do ponto de vista econômico, o lucro e a otimização dos recursos – princípios elementares de qualquer empreendimento – são para ele assuntos desinteressantes, que não merecem atenção, como se vê no episódio da projetada queijaria, no capítulo IX. Tampouco é um avarento, no sentido pré-capitalista, pois além de não sofrer a paixão de acumular, não tira prazer da contemplação do que possui, já que não manifesta o menor desejo de ao menos conhecer as suas outras terras, de onde lhe vêm, na verdade, os recursos que emprega na reforma de Tormes.
           Do ponto de vista político, embora seja uma espécie de redentor dos campos, não oferece ameaça aos demais proprietários, pois confina a reforma aos domínios da sua terra. Seu gesto reformista, aliás, deixa-se facilmente ler como puro paternalismo, ou melhor, como estratégia de política reacionária, como se vê no capítulo XIII, quando Jacinto é tido como absolutista, parceiro e enviado de D. Miguel.
           Em Paris, Jacinto é um dândi. Nas serras, não parece que o tenha deixado de ser totalmente, já que o motivo principal das suas ações, principalmente nos primeiros tempos de adaptação, nunca é de ordem sentimental ou econômica, mas sim de caráter essencialmente estético. A miséria dos camponeses o deixa horrorizado como um canto mal pintado de um quadro bucólico; os empreendimentos agrícolas, para desespero do administrador, não são encarados do ponto vista dos custos e proveitos, mas como problemas matemáticos ou de decoração.
           Como dândi, Jacinto faz um caminho contrário ao modelo do gênero, o herói do romance Às avessas (1884), de J.-K. Huysmans. O romance inteiro – mas principalmente, desse ponto de vista, a sua primeira parte – pode ser lido como uma espécie de às avessas de Às avessas. De fato, Des Esseintes, no livro de Huysmans, é, como Jacinto, um homem muito rico. Mas enquanto Des Esseintes usa seus recursos para construir uma casa e uma vida a contrapelo do caminho burguês, utilizando o máximo da técnica moderna para poder isolar-se por completo tanto da natureza quanto da vida social, Jacinto utiliza sua riqueza, em Paris, para viver em total integração com o mundo e para exibir essa integração como ideal de vida, como o demonstram o escritório provido de tubos, a biblioteca de ambições enciclopédicas e a intensa vida social. A ciência e a técnica, para ele, são não apenas instrumentos de ampliação da potencialidade natural dos sentidos e das capacidades humanas, mas também matéria de espetáculo, afirmação de fé no progresso e elemento de decoração - o que faz da sua casa uma espécie de museu do contemporâneo.[4]
           Mas se Jacinto, no campo, continua em certo sentido um dândi, o registro do seu dandismo abrandado é agora outro: o do isolamento senhorial. Por isso, altera-se o lugar da técnica. Rebaixada ao caráter puramente instrumental, ela tem agora função oposta à que desempenhava na casa parisiense: não mais serve para compor o ambiente da mundanidade moderna ou para integrar o proprietário no movimento geral da época; reduzida a um telefone, tem sinal oposto, pois permite que Jacinto permaneça o maior tempo possível sem locomover-se da ilha de bem-aventurança que é o seu domínio serrano.
           No episódio do telefone, aliás, a conduta de Zé Fernandes demonstra o seu interesse em que Jacinto não fuja ao papel exemplar, fundamental para garantir a tese que o seu livro apresenta e defende. De fato, alarmado com a notícia da chegada da novidade a Tormes, Zé Fernandes põe-se logo em campo para impedir o pior: uma recaída do amigo na doença do progresso e do pessimismo. Desconfiado, assume o papel de terapeuta vigilante, que não confia nos propósitos de Jacinto e só entra em sossego quando constata, com o passar do tempo, que o amigo persistirá no caminho da felicidade rural. Ou seja, Zé Fernandes precisa vigiar Jacinto, para que este continue a ser a demonstração viva, o exemplo perfeito da tese da superioridade do campo como lugar da felicidade. Para isso Jacinto precisa manter-se firme na recusa à máquina e à tecnologia, que tanto ele quanto o narrador identificam com a idéia de progresso e de cidade.
            Do que ficou dito deve ter ficado claro que A cidade e as serras não é apenas a história de Jacinto. É a história de Jacinto contada por um narrador complexo, que tem uma tese pela qual se esforça desde a primeira linha do romance. Um dos elementos desse esforço é a busca da cumplicidade do leitor; outro é a produção da caricatura enternecida (tingida sempre de condescendência paternalista) do seu herói, contra a qual afirma a sua qualidade de homem realista e razoável. Um efeito da conjugação de ambos dá a graça maior do livro, que procede justamente da dificuldade do narrador sustentar a sua tese, já que ele mesmo não se mostra, na maior parte do romance, convencido de que o percurso de Jacinto seja de fato um exemplo digno de imitação. Nem mesmo por ele, que, até a última viagem a Paris, parecia não querer para si a felicidade acomodada do amigo, imerso no isolamento rural.
            E este é outro ponto que merece atenção: Zé Fernandes não é apenas o narrador e a testemunha da história e da mudança de Jacinto, é também uma personagem que se transforma sob o efeito da mudança que narra e testemunha. Recapitulemos: a princípio, Zé Fernandes não sofre de tédio em Paris; ao mesmo tempo, não tem, na sua terra, a ilusão ou os recursos para construir para si um mundo à parte, como o Castelo da Grã-Ventura de Jacinto. Pequeno proprietário, fascinado pelo desregramento da civilização, Fernandes tem no amigo um espelho no qual se reconhece em negativo, um espelho que lhe devolve uma imagem algo diminuída: na cidade, deixa-se ver e se reconhece como provinciano ávido de deleites sensuais, com uma dose aproximadamente igual de volúpia e repulsa ressentida perante o grande mundo parisiense; no campo, exibe prudência e consciência culpada da exploração que embasa a vida tradicional, ao mesmo tempo em que experimenta não só a nostalgia da vida parisiense, mas também a nostalgia de ter Jacinto como contraponto a reafirmar as suas convicções. De fato, diz ele: “é até monótono, pela perfeição da beleza moral, aquele homem tão pitoresco pela desinquietação filosófica [...]. Quando ele agora, bom sabedor das coisas da lavoura, percorria comigo a quinta, em sólidas palestras agrícolas, prudentes e sem quimeras – eu quase lamentava esse outro Jacinto que colhia uma teoria em cada ramo de árvore” (p. 231).
           Sob o efeito da mudança operada em Jacinto, há um momento em que os papéis se invertem: Zé Fernandes se entedia no campo, depois da perda da amante e da morte da égua, e, sentido “uma pontinha de bolor” na alma, embarca para Paris. Lá, o tédio não o abandonará por completo. Será, na verdade, apenas sufocado pelo sentimento maior de desamparo e horror, que ele compara ao que Jacinto experimentara na primeira vez que fora ao campo.[5]
           Dessa maneira, Zé Fernandes não só encena a indissociabilidade entre ele e Jacinto, reforçando a relação especular ante ambos, mas ainda mostra como a conversão de Jacinto acentuou nele as suas próprias características, tornando-o mais visceralmente do que nunca o homem do campo. Mas a simetria pára por aí, pois enquanto Jacinto superou o medo e o desconforto e se adaptou ao ambiente que não era o seu – isto é, ao ambiente rústico –, tornando-se perfeitamente integrado à vida saudável das serras, Fernandes não superará as sensações ruins experimentadas na última visita a Paris, que apenas o levarão de volta à sua quinta, reafirmando a excelência do lugar de origem. Nessa derradeira estada, Zé Fernandes assume o papel de Jacinto, tal como ele o via antes da transformação: aquele que poderia ter, mas não queria ter, todos os prazeres da cidade; que poderia ceder, mas não cede – por inapetência ou simples tédio –, a todas as tentações (que ainda enfeitiçam Zé Fernandes, como se vê pela passagem em que se lembra da amante, ou pelo maço de revistas que traz a Tormes).
           O lugar de Jacinto na economia interna de Zé Fernandes, assim, é mais do que o de uma tese demonstrada. Jacinto é uma escora, um antídoto que permite a Zé Fernandes construir uma zona de “realidade”, na qual se sinta em segurança. E, ao mesmo tempo, é o modelo para a sua solução do conflito entre a cidade e as serras: “o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura”.
           Jacinto teria obtido esse equilíbrio, segundo o narrador, por meio de uma controlada concessão à tecnologia moderna. De fato, muito controlada, pois não haverá máquinas agrícolas em Tormes, nem qualquer rudimento de industrialização rural. O progresso tecnológico se restringirá à incorporação, à rotina da casa senhorial, de um telefone, e do conforto moderno serão aproveitados apenas alguns móveis e tapetes, destinados a melhorar o quotidiano da família. No que toca à propriedade como um todo, anunciam-se alguns projetos que envolvem a informação e a técnica modernas: uma biblioteca de livros de estampas e uma sala de projeção de lanterna mágica, para instrução dos camponeses. Nesse sentido, a modernização que Jacinto opera nos seus domínios é conservadora: a recusa ao uso da tecnologia para a produção agrícola, a reforma das casas dos rendeiros e a farmácia (bem como a escola, a creche, a biblioteca e a sala de projeção planejadas para o futuro) produzem a melhoria das condições de vida dos pobres, sem alteração significativa, seja na forma de produção, seja na dependência dos camponeses em relação ao senhor da terra.[6]
           Zé Fernandes terá, ao final do livro, a sua própria solução para obter “o equilíbrio da vida, sem contudo partilhar do ímpeto reformista e caridoso de Jacinto. Sua solução consistirá no simples afastamento da matéria corrupta da cidade e na preservação do espírito dela, por meio da importação, para as serras, dos livros e revistas parisienses: “Pois adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da tua vaidade, outra vez, não me pilhas! O que tens de bom, que é o teu gênio, elegante e claro, lá o receberei na Serra pelo correio.”
           Dessa maneira, o percurso de Fernandes se revela mais conservador e individualista do que o de Jacinto, o que reforça o sabor burguês das suas ressalvas, em Paris como em Tormes, ao comportamento e às idéias do seu “príncipe”. E é provavelmente desse caráter da personagem narradora, da sua perfeita caracterização, que decorre a tentação, por muitos experimentada, de fugir à ironia constitutiva do romance e atribuir ao autor, ou à sua intenção, o caráter conservador que o romance – de Zé Fernandes, não o de Eça – traz à evidência.



[1] Jacinto do Prado Coelho, “A tese de ‘A cidade e as serras’”. In A letra e o leitor. Lisboa: Moraes Editores, 1977, pp. 169-174. A primeira edição do livro é de 1969.
[2] Antonio Candido. “Eça de Queirós entre o campo e a cidade”. Livro do centenário de Eça de Queirós. Reproduzido com o título “Entre campo e cidade” em Tese e antítese. São Paulo: T. A Queiroz, 2000.
[3] Antonio José Saraiva. A tertúlia ocidental – estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e outros. Lisboa: Gradiva, 1995.
[4] O caráter de museu ou sala de exposição que possui o apartamento de Jacinto é evidente ao longo do livro. No final, quando Zé Fernandes o visita, esse caráter explicita-se, agora em negativo, quando o narrador observa as coisas desusadas, como já dispostas num museu, para exemplificar a instrumentação caduca dum mundo passado”, p. 243.
[5] Miguel Tamen já notara a estrutura em quiasmo, que faz equivaler, nesta passagem “Zé Fernandes-da-cidade a Jacinto-das-serras”, por meio da “vaga tristeza da minha fragilidade”. “Fazer Arcádia”. In A cidade e as serras – uma revisão, pp. 31-2.
[6] É provavelmente a essa forma de compreender a reforma das condições de vida dos pobres nos seus domínios que Jacinto se refere, quando, no capítulo XIII, depois de ser confundido com agente miguelista, declara ser socialista.

sábado, 15 de junho de 2013

Eça: A Ilustre Casa de Ramires



Um patife encantador?


 [texto publicado no volume  A ilustre casa de Ramires - 100 anos. org. por Beatriz Berrini.São Paulo: PUC-SP, 2000]



Gonçalo Mendes Ramires, o “protagonista absorvente, em redor de quem giram as demais personagens e tramas” do romance A Ilustre Casa de Ramires é, segundo Beatriz Berrini, “uma das mais felizes criações de Eça de Queirós, uma de suas personagens mais bem delineadas” e “uma das figuras mais bem trabalhadas do ponto de vista psicológico”.[1] Esse é também o pensamento de Álvaro Lins, que julga Gonçalo “a mais analisada e a mais conhecida” de todas as personagens queirosianas, a que melhor se oferece à contemplação do leitor.[2] E Carlos Reis por sua vez anota que é “n’A Ilustre Casa de Ramires e no processo de análise psicológica de Gonçalo Mendes Ramires que a focalização interna atinge o ponto mais elevado de uma curva evolutiva que tem como forçosa contrapartida a desvalorização da onisciência do narrador”.[3]
Mas quem é Gonçalo Mendes Ramires? Como poderíamos definir essa personagem cuja perspectiva “comanda a representação narrativa ao longo da quase totalidade do discurso”?[4]
Para António Sérgio, era uma criatura ficcional caracterizada pela “inércia psíquica”. Uma criatura cujo perfil psicológico e moral traçou nestas palavras: “ante as inclinações fisiológicas do seu ser orgânico e as forças exteriores que sobre ele atuam, o desgraçado é uma coisa que se deixa ir.”[5]
Já para João Gaspar Simões, Gonçalo parecia psicologicamente inconvincen­te: “em toda a obra do romancista não há maior títere que este Gonçalo Ramires”.[6]  E o mesmo pensava, em 1945, António José Saraiva, para quem o protagonista de A Ilustre Casa era uma personagem sem “personalidade própria”, que apenas obedecia a um “esquema preconcebido”.[7]
Em termos morais, o resultado da análise a que a personagem é submetida produz, segundo Simões, um ser algo desprezível, senão mesmo incongruente:

quando é bom, generoso e humano, Ramires não dá por isso; age naturalmente. (...) Pelo contrário, quando é cobarde, acomodatício ou torpe, é-o de forma tão refletida, tão ponderada, tão consciente que, a não ser um novo Maquiavel, só poderá ser um cretino.[8]

E Beatriz Berrini, que o descreve como “um ambicioso de poder, que tudo sacrifica para conseguir subir politicamente ou para obter a sonhada fortuna, inclusive a honra, sua e da irmã”, também o considera “um covarde, que pelo romance afora, quase até o final, é alguém dominado pelos outros, temeroso de tomar esta ou aquela atitude”.
O retrato moral de Gonçalo não é melhor em outros textos importantes da bibliografia sobre o romance: trata-se sempre, em medida variável, de um patife. A divergência única diz respeito à extensão temporal da sua canalhice. Para alguns, a história de Gonçalo é a de uma metamorfose e a personagem finalmente se redime e reforma; para outros, não há qualquer transformação profunda. Entre os primeiros está a maior parte da fortuna crítica, que seria, por isso mesmo, ocioso referir; entre os segundos, o caso mais ilustrativo é o de Marie-Hélène Piwnik, que não precisa senão de um texto muito breve para demonstrar de forma muito convincente que, sob todos os aspectos, Gonçalo é um “degenerado”, sem nenhum momento de grandeza, nem perspectiva de regeneração.[9]
Esse conjunto de defeitos torna Gonçalo, como reconhece Beatriz Berrrini, “alguém que deveria merecer a nossa reprovação moral e não o nosso apreço”.[10] Sem dúvida. Mas o modo verbal da frase já deixa ver que essa personagem, apesar de toda a sua configuração moral negativa, pode ainda receber o apreço do leitor. E é de fato o que ela afirma, logo em seguida:

Todavia, Gonçalo é uma personagem encantadora, dotado de extrema sedução, que nos conquista justamente pela sua fraqueza, que ele não deixa de reconhecer e que o leitor acompanha graças ao monólogo interior. Como não perdoar e amar este jovem fidalgo, consciente e arrependido, enredado nas preocupações de uma carreira político-social e, simultaneamente, apegado ainda aos códigos de sua classe? Fidalgo de uma nobreza genuína, mais antiga que o reino, aparece ao mesmo tempo muito próximo dos pequeninos, dos humildes, dos subalternos. Como escapar ao seu peculiar encanto?[11]

É claro, portanto, que há aqui um problema. Depois de traçado o retrato psicolológico e moral de Gonçalo, o que exatamente significa o movimento de adesão emocional que a autora descreve neste trecho? Que ele existe, fica evidenciado porque esse trecho foi escrito. Que não é idiossincrático revela-o sem lugar para dúvida a leitura da fortuna crítica do livro. De fato, não só a ‘metamorfose’ de Gonçalo, a sua ‘regeneração’ é descrita em vários textos de forma muito positiva, quando não entusiasmada, mas ainda se viu muito reiteradamente em Gonçalo uma personificação do próprio Eça de Queirós – o que seria inimaginável se a personagem fosse univocamente canalha ou irresponsável.[12] Esses testemunhos atestam a aura sedutora de Gonçalo. A pergunta a responder é, portanto: o que é que, no livro, produz ou estimula a adesão do leitor à personagem Gonçalo?


1. Primeira tentativa de resposta: o meio.


Uma das maneiras de o romance produzir a adesão do leitor à personagem Gonçalo poderia ser o acentuado contraste que nele se estabelece entre o protagonista e o seu ambiente. Gonçalo é moralmente fraco; é mesmo bastante cínico e calculista; e também não resta dúvida de que ele não se destaca nem pela cultura, nem pelas realizações pessoais. Tem, entretanto, pelo menos um momento de bondade desinteressada e suas crises de arrependimento denotam alguma consciência do seu caráter miserável. Para gostar dele parece ser preciso, como anota Beatriz Berrini na frase citada no início deste texto, “perdoá-lo”. Uma das formas de perdoá-lo é justificá-lo. E um dos caminhos para isso é a constatação de que as demais personagens do romance não são melhores do que ele. E não o são porque, ou são inferiores a Gonçalo em caráter, ou nem chegam a ter qualquer densidade psicológica. André Cavaleiro, por exemplo, é uma figura vulgar, quase repelente na sua prepotência. Barrolo é um rústico pouco elegante e ainda menos inteligente do que elegante. As irmãs Lousadas são desprezíveis moralmente, além de muito feias de corpo e de caráter. Graça não tem muita substância anímica: nem sequer parece ter dúvidas íntimas ou remorsos. As demais personagens, mesmo as mais simpáticas como o Padre Soeiro, não aparecem retratadas de corpo inteiro, mas são apenas perfis fixos, com valor imutável.
Essa percepção é, evidentemente, produzida pela específica conformação do foco narrativo do romance. Durante quase todo o livro, o mundo é, direta ou indiretamente, avaliado pelo olhar de Gonçalo, e até o final do penúltimo capítulo, o leitor sabe o que Gonçalo sabe, e pouco mais. Por estar tão colado o foco narrativo à perspectiva da personagem, é muito freqüente o trânsito do discurso indireto livre para o monólogo interior. De modo que as informações que o leitor tem sobre o ambiente de Gonçalo são mediadas pela sua consciência, apresentadas em função dos seus interesses e expectativas.
Cabe assim à ‘focalização interna’ o papel principal na captação da simpatia do leitor. E ela o faz não apenas porque lhe dá uma visão muito rebaixada do meio em que se move a personagem, mas também porque lhe representa os vários movimentos mentais da personagem. Vendo pelos olhos de Gonçalo, o leitor participa da sua repulsa pelo ambiente provinciano, desprovido de dignidade, inteligência e densidade moral. Junto com ele, anseia pela tal fenda no muro que empareda no “buraco rural” um homem que, apesar de tudo, reúne algumas poucas qualidades e tem um par de gestos dignos. E por isso mesmo é levado a entender todos os gestos mais ou menos ignóbeis de Gonçalo como uma tentativa de jogar segundo as regras do jogo do ambiente do qual procura se evadir. Contrariamente ao que parece ter sentido João Gaspar Simões, essa personagem que é boa quando segue o instinto e má quando segue os cálculos racionais – mais que isso: que se dá bem quando segue o instinto e se dá mal quando age calculadamen­te – nada tem de maquiavélica, e só é cretina enquanto tenta se adaptar a um meio que é apresentado ao leitor como inferior a ela. Ou seja: é uma personagem de extração romântica, e, sem ter grandes qualidades pessoais, ainda assim se constitui, por causa do meio em que se situa, como mais um agrilhoado que anseia – e o leitor com ele – por libertação.
Mas não é apenas a “focalização interna” que sublinha o contraste entre o protagonista e o seu ambiente. Em vários momentos da narrativa, o ponto de vista se inverte, e o que é oferecido ao leitor é a representação que, de Gonçalo, têm algumas personagens representativas do meio em que ele vive. A cena em que se dá essa inversão de perspectiva de modo mais forte e evidente é a que encerra o romance. Mas há várias outras, mais ou menos filtradas pela consciência de Gonçalo, como, por exemplo, o encontro de Gonçalo com Cavaleiro na sede da Administração ou os vários relatos indiretos das manifestações populares por ocasião das eleições.
O resultado desse contraste é um argumento deste tipo: ainda com toda a sua canalhice, Gonçalo parece mais digno (ou pelo menos mais completo, e, por isso, mais humano) do que as personagens com as quais convive.
Mas há ainda um aspecto a considerar nas relações do protagonista com o seu meio: o espelhamento dos olhares. Em várias ocasiões, principalmente no final do romance, esse olhar de fora é contemplado pelo próprio Gonçalo, que se surpreende por ser alvo de tanta admiração e amor. Desses momentos de gratificação, o mais forte é a apoteose da eleição, em que Gonçalo é celebrado com foguetes e seu retrato é levado como uma bandeira por uma procissão. No que diz respeito à imagem que têm do protagonista as demais personagens, não há como o leitor não reparar em como são pequenos os atos de Gonçalo que lhe granjeiam afeto e respeito tão grandes. Abrigar da chuva uma criança cujo pai traíra e mandara para a cadeia torna-o quase um anjo. Uma cesta de flores que envia a uma menina, torna-o um primor de gentileza e boa educação. E ceder a sua montaria a um homem ferido é um ato de tal maneira inaudito que produz uma espécie de santificação popular. Os atos são irrisórios, mas não os efeitos que produzem. Daí que possa parecer necessário buscar uma explicação para a desproporção entre eles. É certo que entre Gonçalo e Cavaleiro se estabelece um contraste muito claro: de um lado, o fidalgo de velha cepa, decadente, porém elegante e paternal para com os humildes; de outro, o fidalgo recente, arrogante e brutal no trato com os inferiores. Dessa oposição, o leitor poderia retirar uma explicação para a repercussão dos gestos gentis de Gonçalo: eles seriam apenas catalisadores que poriam em ação o amor incondicional do povo pelos fidalgos velhos de Portugal. Embora já se tenha lido assim, não parece que seja a leitura mais verossímil. Outra forma de entender o sucesso popular de Gonçalo seria esta: a reação muito positiva aos seus gestos gentis indicaria apenas que era muito pouco, ou quase nada, o que se poderia esperar de um fidalgo português no final do século XIX, fosse ele de família velha ou de família nova. Seja como for, num ambiente que é sempre mesquinho, o fidalgo Gonçalo pelo menos tem a qualidade de ser sentimental e, vez por outra, generoso.
O olhar externo, assim – seja o olhar mais ou menos anônimo do povo que promove a apoteose de Gonçalo, seja o olhar do Padre Soeiro no final do livro –, só parece reafirmar, no romance, a qualidade fundamental e talvez única do caráter de Gonçalo: a bondade, que o torna amorável apesar dos graves defeitos que possui.
Ao lado desse olhar externo, ou melhor – precedendo esse olhar externo – há o olhar introspectivo do próprio protagonista, que se desnuda e se acusa perante o leitor. Do ponto de vista dos ângulos pelos quais é visto Gonçalo, a história desse romance é a história da incorporação do ponto de vista externo pelo ponto de vista interno. O destino da personagem está completo quando ela compreende como era olhada pelos outros. Ou melhor, quando consegue olhar para si mesma da forma como era e é olhada pelos outros; quando vê que é espontaneamente amada e não necessitava dos subterfúgios torpes para conseguir o que queria conseguir. Nesse momento, interrompe-se a focalização interna, e Gonçalo passa a ser apenas matéria de relatos de terceiros.
Acompanhando, de um lado, o olhar introspectivo auto-referenciado e, do outro, o olhar externo mais ou menos anônimo (que desde o começo se carrega de expectativas que aparentemente se vão realizando até terminar em apoteose), está o olhar do leitor. O que ele vê é o sentido da incorporação de um no outro, o sentido da realização das expectativas. E esse sentido é um só: promover a coincidência das espontaneidades. É essa coincidência que se desenha ao longo do texto como desejo difuso de restauração da ordem. E é a bondade espontânea de Gonçalo, assim promovida a princípio de ordenação ou reordenação do mundo, que permite que um acontecimento boçal como uma eleição provinciana possa ser credivelmente apresentada como um momento de apoteose que produz a única reflexão elevada da personagem Gonçalo, que é a meditação a que se dedica no alto da Torre.


2. Segunda tentativa de resposta: raça e paisagem.


Logo no início do romance, o narrador traça a história dos Ramires, que é homóloga à de Portugal. Entretanto, os Ramires não são, como os heróis de Oliveira Martins, hegelianas encarnações de forças coletivas. Não são símbolos ou singularizações de forças existentes no corpo político da nação. Por isso se afirma tantas vezes que a sua Casa é anterior Portugal, e por isso também na sua história está escrito: “Já, porém, como a nação, degenera a nobre raça”. Não por causa da nação. Nem mesmo junto com a nação. A relação é de homologia, e não de causa/efeito ou de identidade. Os Ramires são alguma coisa de mais antigo do que a constituição política do reino: são a encarnação do fundo primitivo, da raça portuguesa.
Gonçalo é o último representante dessa família. A sua história pessoal pode ser compreendida como uma história de recuperação das origens, de recuperação da vitalidade da raça. Nesse enredo, o momento da virada é a recusa do título de Marquês de Treixedo que lhe é oferecido pelo rei, por intermediação de André Cavaleiro. Na sua resposta, diz Gonçalo: “ainda não havia Reis de Portugal, nem sequer Portugal, e já meus avós Ramires tinham solar em Treixedo”. E baseado no privilégio da antigüidade, propõe-se, ao invés de aceitar o título, a conceder um semelhante ao rei de Portugal. Na seqüência, vem a eleição triunfante e a meditação noturna, em que Gonçalo sente “como se a energia da longa raça, que pela Torre passara, refluísse ao seu coração”. E por fim, no fecho do livro, depois de Titó afirmar que Gonçalo tem vários defeitos , mas também “tem a raça que o salva”, Gouveia ainda reitera, como traço que identifica Gonçalo a Portugal, “aquela antigüidade de raça, aqui pegada à sua velha Torre, há mil anos...”
Tudo isso quer dizer apenas que, se Gonçalo é uma alegoria de Portugal, é uma alegoria fundada numa identificação que não se faz no nível da nação, das forças políticas e sociais, mas no nível da raça, do substrato étnico ou emocional que Eça reconhecia sob esse nome. Assim sendo, o sentido apoteótico da eleição pode ser entendido como uma renovação do clã primitivo, uma celebração da atualização da energia da velha e longa raça portuguesa.
Vendo por esse ângulo, não seria possível que, para um certo tipo de leitor, um convite à adesão emocional estivesse justamente na encenação de uma recusa ao mundo político e moderno, e de uma concomitante revivescência do laço profundo, do afeto que solda, na imaginação romântica, as pessoas de um mesmo sangue? Na trajetória de Gonçalo não se passa do mundo da humilhação frente aos poderes constituídos ao mundo do afeto desinteressado, ao mundo menos racional, em que ainda está latente a antiga vassalagem ao representante mais legítimo da raça? No momento do ‘triunfo’ político de Gonçalo, a história também não se deixaria ler como alegoria do afeto irracional que une o líder do clã e os seus seguidores? Nesse caso, a eleição de Gonçalo pode ser vista como a afirmação do mesmo tipo de valores que ele tentara recuperar na sua novela sobre os antepassados. Talvez não seja esse um grande apelo à simpatia do leitor em geral, mas sem dúvida é um convite à adesão emocional de leitores sensíveis ao anseio regressivo e romântico à ordem feudal, pré-moderna: à ordem “natural”.
Seguindo essa linha de leitura, seria preciso destacar a maneira como é construída a frase final do romance. Nela, Padre Soeiro, voltando à Torre, a esse lugar-símbolo da ordem feudal e da raça antiga, ergue uma prece (nesta ordem) para Gonçalo, todos os homens, os campos e casais e “para a terra formosa de Portugal, tão cheia de graça amorável”. A prece de Padre Soeiro, que pouco antes destacara entre as qualidades de Gonçalo a de ser “amorável”, reitera assim a identidade dos Ramires e Portugal, estabelecida no início do romance e reforçada na fala de Gouveia. Mas reitera a reversibilidade afetiva entre um e outro. Como se gostar de Gonçalo e gostar de Portugal fosse mais ou menos a mesma coisa.
A cena final tem grande impacto sensório. Gonçalo, com a sua elegância mundana, seu casamento por interesse, seu destino incerto como fazendeiro na África é apenas uma imagem ao fundo. Desde a meditação na torre, no final do capítulo XI, ele deixa de ser comandar a perspectiva narrativa. Na verdade, desaparece praticamente do romance, e dá lugar à narração dos quatro anos da vida de Gracinha, desde a partida do irmão. São anos vazios, e a focalização na irmã do protagonista acentua o caráter melancólico de uma vida que se reduz, como o divã queimado, a lembranças e a cinzas. Ou seja: sem Gonçalo, a mediocridade da vida provinciana de Gracinha vem subitamente para primeiro plano. A primeira parte do capítulo final é, por tudo isso, uma quebra brutal de ritmo. Um momento deceptivo, após a apoteose da meditação na Torre, mas que por isso mesmo deixa na sombra que Gonçalo esteve, como deputado, e está, como possível ganhador de um grande dote, muito longe de se tornar tudo o que naquela noite sonhou ser. Na seqüência, narram-se os preparativos para receber Gonçalo, as melhorias na quinta. É o ressurgir da vida na velha Torre. Daí a poesia intensa daquele entardecer em que o leitor reencontra três personagens bem conhecidas e sente que, de alguma forma, o ambiente do romance se está de novo recompondo. Que seja Gonçalo o ponto de fuga dessa composição bucólica que termina em piedade e oração pode ser visto como o arremate de uma longa estratégia de sedução, montada ao longo dos onze capítulos precedentes.


3. Terceira tentativa de resposta: o conjunto incongruente.

A Ilustre Casa é um romance de personagem. Em certo sentido, é mesmo um ‘romance de formação’.[13] Assim sendo, a forma como se compreende o sentido da história da figura central, e o que com ela se formou, tem grandes implicações na apreciação do romance como um todo.
Num texto já referido aqui, António José Saraiva, depois de afirmar que Gonçalo é uma personagem que “obedece a um esquema preconcebido”, completa a crítica com esta frase que, dita por ele, equivale a uma reprovação: “é um personagem simbólico, quase alegórico”.[14] Do seu ponto de vista, o desenho “simbólico” não distingue A Ilustre Casa do conjunto da obra de Eça, pois esse modo de construir personagens, situações e enredos é, na sua opinião, que tem a preferência do escritor. O que diferencia este romance e lhe parece francamente intolerável é o que aqui designa como “quase alegórico”, isto é, o “esquema” que torna esse romance ainda mais distante da perspectiva realista:

A Ilustre Casa de Ramires vai até o ponto de conter uma explicação final do simbolismo do protagonista posta na boca de um dos personagens – exatamente como se este fosse uma figura alegórica acompanhada de uma tabuleta com o respectivo nome e explicação.

Não foi apenas A. J. Saraiva que condenou veemente essa ‘tabuleta’, que é a fala de Gouveia. Álvaro Lins julgava-a “um corpo estranho que pede processo operatório”, pois “em romance nada se defende nem se explica”. Mas se para Álvaro Lins talvez bastasse a extirpação que sugere, para A. J. Saraiva essa subtração não eliminaria o defeito central do romance. É que seu reparo se estende à estrutura mesma da trama e à própria forma de composição: nesse livro, escreve ele, tudo “é pensado, sobreposto e encaixado como as pedras de um edifício”.[15] A crítica repousa, assim, numa acusação de maquinismo, de construção racional, a que se opõe um ideal de construção “orgânica” da trama e das personagens. Gonçalo, portanto, lhe pareceria necessariamente uma personagem falhada (como parece a Sérgio e a Simões), ainda que não houvesse a explicitação final da leitura alegorizante. E lhe pareceria falhada pela mesma razão que lhe parece falhada a estrutura do romance: porque o seu ponto de vista (como o de Sérgio e o de Simões) privilegia a ‘naturalidade’ da personagem, isto é, privilegia a verossimilhança realista, fundada na coerência da personalidade. Daí que anote: “o desfecho, embora não tenha qualquer verossimilhança psicológica, é profundamente lógico e coerente com todo o pensamento do livro”.[16] E é lógico e coerente porque é artificial e, no limite, falso: “porque seria errôneo pensar que Eça aconselhava a África como programa aos Portugueses do seu tempo. A África aparece nesse romance como um alçapão providenci­al”. Ou seja, além de condenar o alegorismo do livro e da personagem, ainda argúi a mensagem alegórica de falsa, vendo na saída para a África apenas um “deux ex machina”. Ao invés de manter a análise dentro do limite das instâncias narrativas, portanto, Saraiva faz a discussão regredir para a contraposição entre o que está expresso no livro e o que seria a convicção real do cidadão Eça de Queirós. É a última forma de recusa à validade da perspectiva alegorizantes. A última de uma série de contraposições entre a perspectiva ficcional alegórica e a perspectiva da verdade realista que lhe permitem concluir pela falência do romance.
Alguns anos depois, uma aproximação crítica como a de Saraiva praticamente deixou de existir. O interesse não está mais no que Gonçalo é como ser moral. O olhar se desloca para o que ele personifica, para o que ele representa no tecido ficcional. Isto é o mesmo que dizer que, numa clave política, psicanalítica ou mitológica (ou mesmo no velho registro biografizante), o modo atual de ler é alegórico; é o mesmo que dizer que o paradigma da aferição realista parece ter entrado em desuso. As incongruências na personalidade de Gonçalo, apontadas pela geração de António José Saraiva, parecem ter sido deslocadas para o segundo plano de interesse e substituídas por uma leitura, digamos, “integradora”. Assim, se Ramires é uma personificação de Portugal, ou uma personificação de um processo de individuação ou de um percurso iniciático, ou ainda um lugar de atualização de “estruturas míticas arquetípicas”,[17] e se, na análise dos movimentos mentais e das ações de Gonçalo, ele ainda nos aparece como um calhorda ou um parasita social, essas características só terão interesse se colocadas em função de um quadro alegórico amplo. Sendo seus defeitos de caráter lidos como índices que apontam para elementos identificados no quadro histórico-social de depois do Ultimatum, sendo sua incongruência facilmente assimilada ao que de fato parece interessar, que é um processo transcendente, do qual Gonçalo é apenas um elemento ou um palco, o leitor de hoje tem menos resistências que o do tempo de Saraiva ou António Sérgio. Tem, portanto, muitas possibilidades mais de aderir, mesmo que episodicamente, à personagem sobre a qual se concentra o foco narrativo.


4. Quarta e última tentativa de resposta: heroísmo e intimidade

Para encerrar, voltemos à idéia que abre a parte anterior: A Ilustre Casa de Ramires pode ser lida como um romance de formação. A questão que se apresenta agora é: nesse romance de formação, o que ou quem se forma?
Essa pergunta equivale a indagar qual é o sentido da transformação de Gonçalo, depois da visita dos antepassados, da briga de estrada e do sucesso nas eleições. Uma resposta que o próprio romance dá é esta: Gonçalo perde “a desconfiança, essa encolhida desconfiança de si mesmo”, que experimentara durante tantos anos e que, no momento da peripécia, julga ter sido a causa de todas as suas fraquezas e atos torpes anteriores. E o que muda nele com isso? Aparentemente, o que muda é que ele pode, sem deixar de ser um jovem muito elegante, sem deixar de ser um nobre de antiga nobreza respeitado por todos seus pares, atirar-se a uma empresa muito mais própria de um burguês e, finalmente, namorar uma senhora rica, mas de classe inferior. Mas já antes da reviravolta no seu destino não era exatamente isso o que ele se dispunha a fazer? Não planejara o casamento com a neta do açougueiro? Não buscara os votos dos povos para se eleger deputado constitucional? Não negociara desonestamente a renda das suas terras? E não continuara sendo o jovem amorável, o fidalgo de velha casta, admirado por quase todos?
A mudança que se opera em Gonçalo é, pois, uma transformação basicamente psíquica, uma mudança de ânimo, uma “infusão” de coragem, de auto-confiança. As causas da mudança permanecem inexplicadas. Talvez a escrita de uma novela, metade plágio e metade pastiche de obras alheias, em que vivencia seguidamente os choques entre a fantasia compensatória e a realidade deceptiva seja uma causa. Talvez uma miragem que teve em certa noite de extrema depressão, quando se sentia mais esmagado pela consciência do seu caráter fraco e da sua vida falhada. De qualquer forma, a mudança parece provir de sua própria atividade imaginativa, pois alguns dos fantasmas do desfile noturno só eram reconhecíveis e identificados individualmente porque Gonçalo, na sua história ou nas suas divagações, assim os havia imaginado: “reconhecia as feições dos velhos Ramires (...) por ele assim concebidas, como concebera as de Tructesindo, em concordância com a rijeza e esplendor dos seus feitos”.
Gonçalo é, portanto, um herói que se faz por si mesmo, após uma grande purgação. Que se sente herói por uma súbita transformação em que tem um grande papel a imaginação. É verdade que é pouco o que obtém depois. Mas já é mais do que possuía antes e, de qualquer forma, o que parece central é a percepção que tem de si mesmo após a transformação. Mais do que um herói por si mesmo, Gonçalo é, assim, um herói para si mesmo. Quando se torna auto-satisfeito, cessa o monólogo interior auto-acusatório. A focalização na personagem, que dava o tom do discurso irônico, deixa de ser necessária e a ironia do narrador desliza para outros elementos compositivos ou, como pensam Óscar Lopes e A. J. Saraiva, desaparece completamente.
Nesse momento de pacificação das tensões discursivas, o leitor pode sentir-se mais propenso a aderir afetuosamente ao sujeito humilde que, após um longo período de provações, finalmente triunfa sobre si mesmo e varre do seu caráter o defeito mais grave, que era a covardia. E assim, quando os três provincianos se despedem, depois de fechar o romance com a louvação da bondade e do sucesso real ou imaginário de Gonçalo, e depois de explicitado que o último Ramires é uma personificação de Portugal e, portanto, seus defeitos ou são alegorias ou são os defeitos de todos os demais, apenas sintetizados no derradeiro exemplar da família mais antiga do Reino, tem o leitor de reunir todas as suas forças para não aquiescer com a cabeça e não se juntar ao Padre Soeiro na sua prece pela paz de Deus a Gonçalo e à boa terra de Portugal.
                       Se o fizer, desempenhará o papel que lhe parece reservado desde o começo pelo narrador: se não o de cúmplice, pelo menos o de testemunha, condescendente ou enternecida, das desventuras, das trapaças e do ambíguo triunfo de Gonçalo, por seu intermédio alçado da categoria de patife provinciano à de herói modesto, porém adorável.




[1] Beatriz Berrini. Nota. In J. M. Eça de Queirós. Obra Completa, vol. II. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1997, p. 220. Todas as citações de A Ilustre Casa... serão feitas segundo essa edição.
[2] Álvaro Lins. História literária de Eça de Queirós. 2ª ed.. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1945.
[3] Carlos Reis. Estatuto de perspectivas do narrador na ficção de Eça de Queirós. Coimbra: Almedina, 1975, p. 378.
[4] Carlos Reis. Op. cit., p. 363.
[5] António Sérgio. “Sobre a imaginação, a fantasia e o problema psicológico-moral na obra novelística de Eça de Queirós”. In Ensaios. Vol. VI. Lisboa: Sá da Costa, 1980.
[6] João Gaspar Simões. Vida e obra de Eça de Queirós. Lisboa: Bertrand, 1980, 3ª ed. p. 656.
[7] António José Saraiva. As ideias de Eça de Queirós. Lisboa: Livraria Bertrand, 1992, 2ª ed., p. 51. 
[8] João Gaspar Simões. Cit.
[9] No que diz respeito ao primeiro grupo, mencione-se apenas que Óscar Lopes e A. J. Saraiva estão entre os que entendem que Gonçalo passa por uma “metamorfose moral”: História da literatura portuguesa. Porto: Porto Editora, 17ª ed., p. 882-3.O texto de Piwnik é o seguinte: “Gonçalo Mendes Ramires: História de uma degeneração.” In Eça e Os Maias cem anos depois. Porto: Universidade do Porto, 1990, pp. 221-6.
[10] Beatriz Berrini. “Introdução geral”. In Obra Completa, vol. I. Rio de Janeiro: Editora Aguilar, 1997, p. 61.
[11] Nota, cit., p. 220-1.
[12] Textos em que a idéia de metamorfose do protagonista vem para o primeiro plano são, por exemplo, os assinados por Lélia Parreira Duarte, Maria Teresa Pinto Coelho e por Paulo Franchetti, no volume 150 Anos com Eça de Queirós. São Paulo: CEP/USP, 1997. Alguns textos em que se aceita ou propõe a identificação Eça/Gonçalo são: o livro de Álvaro Lins há pouco referido, o de Viana Moog (Eça de Queirós e o século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977) e o de Laura Cavalcante Padilha (O espaço do desejo. Brasília: Editora da UnB, 1989).
[13] Uma análise de A ilustre casa como romance de formação se encontra no livro de Laura Cavalcante Padilha.
[14] António José Saraiva. As ideias de Eça de Queirós. Cit., p. 51.
[15] As idéias..., p. 50.
[16] Op. cit., p. 150.
[17] Cf. Maria Teresa Pinto Coelho. “A ilustre casa de Ramires e a questão africana. Entre a história e o mito”. In Apocalipse e regeneração – o Ultimatum e a mitologia da Pátria na literatura finissecular. Lisboa: Cosmos, 1996.