domingo, 30 de junho de 2013

O jogo dos sentidos em Eça de Queirós



O jogo dos sentidos em Eça de Queirós [1]




            A mais famosa crítica já feita ao romance queirosiano foi a resenha que Machado de Assis publicou de O Primo Basílio logo que o romance foi lançado.
            Não vou tratar aqui em pormenores desse texto tão importante quanto, me parece, mal lido nos últimos tempos. Principalmente porque já o fiz muito recentemente.[2] Mas devo comentá-lo de passagem e topicamente, porque o ponto que me interessa discutir aqui é um aspecto da obra de Eça que, desde o texto de Machado, está devidamente identificado na sua importância e singularidade, mas nem sempre tem sido corretamente avaliado e interpretado do ponto de vista da estrutura do universo queirosiano.
Trata-se do que se poderia chamar de sensualidade ou, para usar uma palavra que elimine  impertinentes conotações sexuais, sensoriedade.
            Machado de Assis percebeu bem que a notação de gestos, odores, matizes, volumes, texturas, sons e sabores tinha enorme importância na narrativa do romancista português. Mas, sendo a sua perspectiva informada por uma exigência de funcionalidade dramática e psicológica, entendeu essa notação minuciosa como gosto pela superficialidade e atendimento a preceito de escola. Foi o que denominou, no primeiro registro, "preocupação constante com o acessório" e, no segundo, estética de "inventário".
            Para Machado, naquele momento, o que contava para a qualidade de uma narrativa era a sua estrutura dramática, centrada na tensão criada entre personagens ou dentro de personagens. Era só em função desse núcleo de interesse, que é em última análise o quadro psicológico, que poderiam ganhar sentido os gestos narrados, bem como as percepções sensórias e a construção minuciosa de ambientes. Ou seja, à descrição e à apresentação sensual Machado só reconhecia pertinência na medida que estivessem diretamente subordinadas ao núcleo dramático, a serviço dele. Daí que não pudesse receber bem o texto de Eça, no qual predomina um outro tipo de linguagem, de orientação mais épica (no sentido de mais descritiva), em que o mundo narrado é iluminado sob vários ângulos e apresentado ao leitor como sendo composto de objetos interessantes em si mesmos.

            No caso de O Primo Basílio, Machado condena três cenas do romance, afirmando que elas só existem devido ao gosto pelo acessório. São elas o jantar na casa do Conselheiro Acácio, a conversa de Julião e Sebastião na confeitaria e a encenação do Fausto no Teatro S. Carlos.
            Embora valesse muito a pena investigar porque justamente essas três cenas parecem hoje, cento e vinte anos depois, primorosas, não posso fazê-lo aqui. Assim, limito-me a comentar rapidamente a última delas, a cena da ópera, que está no final do livro.
            Ora, para compreender o lugar e a função da cena, é preciso lembrar que a música do Fausto de Gounod é uma das referências mais recorrentes ao longo da narrativa. Uma das suas árias é mesmo uma espécie de leit-motiv do romance: a que Fausto canta no momento imediatamente anterior à sedução de Margarida. Essa ária é cantada primeiro por Jorge, o marido, e depois por Basílio, no momento mesmo em que Luísa a ele se entrega pela primeira vez. No dia em que assiste ao Fausto no teatro, o pensamento de Luísa está em Juliana, a empregada chantagista, e no que estaria acontecendo em sua casa. É nesse momento de ansiedade, ao lado do marido, que Luísa ouve a ária sobre os astros de ouro e rememora a própria sedução. A cena, portanto, tem uma função precisa: a função de conjugar, numa recollectio irônica, os motivos fáusticos espalhados ao longo da narrativa e a decepcionante história pessoal e amorosa de Luísa. E a forma como o faz é pela descrição da reação emocional de Luísa a um mesmo estímulo que fora tão importante no momento anterior, o da sua sedução. Do momento em que se ouve a ária em diante, tudo descamba: Luísa desinteressa-se, enjoada e ansiosa, da cena do palco, e é pelos seus olhos que o leitor vai contemplar uma cena ridícula de briga, bebedeira e vômito na platéia.

            O Fausto, embora seja a principal, é apenas uma das muitas referências ao universo da ópera e da música profana em O Primo Basílio. Desde a primeira página do romance, até o momento em que Luísa adoece, o intertexto musical domina absoluto. Depois que seu estado de saúde piora, já não há menção a qualquer melodia. E de tal forma se organiza o intertexto musical, que mereceria uma análise demorada a forma como esse "motivo" se junta a outros "motivos" (literários e pictóricos, principalmente) para formar um sistema bastante cerrado de alusões e antecipações premonitórias, de recorrências de situações e de elementos simbólicos que vão responder pela impressão de grande unidade ao texto do livro. Ou seja, o que proponho é que temos aqui algo muito importante: um tipo de construção textual, que ainda precisa ser descrito com mais rigor e no qual a "solda" entre as várias partes e situações se faz por meio de um recurso que não procede da lógica das ações representadas, nem da coerência ou determinação psicológica das personagens. Na verdade, essa "solda" se dá num nível exterior à necessidade actancial e superior ao da consciência das personagens.
            Para exemplo, basta observar que, no caso específico de O Primo Basílio, não é necessário que nenhuma personagem em particular escute um piano da vizinhança tocando ao longe a Oração de uma virgem,  ou o realejo que repete a Casta Diva e outros temas do momento. É o leitor que deve perceber, em contraponto ao desejo de envolvimento adúltero de Luísa, a ironia presente nesses títulos. É como conversa entre o autor e o leitor que se erige todo o extenso comentário intertextual à história de Luísa, pois as obras lidas ou ouvidas por ela funcionam, ao longo da narrativa, não como causa, mas como contraste às suas experiências efetivas ou como prefiguração do seu destino. Ou seja, Luísa é uma leitora ingênua, mas o romancista e o leitor previsto no texto não são como ela, e podem ir saboreando, ao mesmo tempo em que contemplam a progressiva queda e humilhação da protagonista, a rede de alusões e de comentários metalinguísticos que vão anunciando e pontuando os desdobramentos da intriga.
            Da mesma forma, se observarmos os sonhos sonhados por Luísa ao longo do romance, veremos que também eles se organizam a partir da consciência do narrador e/ou do leitor, e não da personagem. O melhor exemplo é o último deles, em que se monta uma cena teatral na qual o Conselheiro Acácio desparafusa a própria cabeça e a atira ao palco para imitar o gesto do rei, que para lá atirara a esfera armilar. O ato sintetiza tudo o que o leitor já sabe da personalidade de Acácio, pois o viu em muitas situações independentes, em boa parte das quais não estava presente Luísa. Mas nada sugere, no romance, que a percepção que Luísa tem de Acácio seja similar à que o leitor e o narrador têm dele. No limite, pode-se dizer que os sonhos de Luísa são, do ponto de vista de uma estética realista, defeituosos, porque não são verossímeis, nem explicáveis dentro do horizonte de percepção e consciência da personagem.
            Por esse conjunto de motivos, a ficção de Eça pode ser considerada  frontalmente anti-romântica e, nesse sentido, anti-sentimental. Mas dificilmente poderá ser denominada "naturalista", se por essa palavra entendermos o romance em que todos os elementos reivindicam a possibilidade de serem inteiramente explicados ou deduzidos a partir de um conjunto de outros elementos que são entendidos como "causas" ou fatores determinantes passíveis de identificação objetiva.

            Para o Machado de Assis de 1878, essa forma de estruturar o romance e as suas cenas, que não se baseava na tensão psicológica, na originalidade da trama ou no choque de caracteres pareceu superficial e defeituosa. Artificial porque a intenção, ou melhor, a consciência do autor se sobrepõe às motivações internas das personagens, enquanto fator de determinação dos sucessos narrativos. As personagens, para usar sua expressão, lhe parecem "títeres". Defeituosa porque, seja com que objetivo tenha sido usada, a notação excessivamente colorida e objetiva dos ambientes e das sensações experimentadas pelas personagens lhe parece francamente imoral, quando não abjeta.
            É verdade que O Primo Basílio inteiro (e não só O Primo, mas praticamente todos os textos queirosianos) é objeto de um tratamento narrativo que ilumina  as personagens e objetos com uma luz igual e bem distribuída. Machado leu como defeito esse olhar do narrador, que vai recortando, sem destacá-las do fundo geral, algumas figuras medíocres, que nunca se individualizam completamente e que tendem, nas melhores soluções, para a franca caricatura, como é o caso do Conselheiro Acácio.
             Isto é o mesmo que dizer que Machado não descobriu (ou pelo menos não valorizou) aquilo que constitui o princípio de coesão da melhor narrativa queirosiana: a construção arquitetônica da obra como sucessão e modalização de alguns poucos motivos sistematicamente explorados, amalgamados pelo ritmo de uma frase ágil e por um ponto de vista narrativo que, ao mesmo tempo, marca seu distanciamento afetivo ou ideológico em relação ao ambiente e às personagens e se compraz no tratamento sensual desses ambientes, objetos e personagens, nivelando-os como focos independentes e dignos do mesmo tipo de atenção. Mais do que isso, abstraindo deles características puramente sensórias que funcionam, ao longo do texto, como "temas" (no sentido que essa palavra tem em música), que permitem traçar correspondência entre cenas, identificar personagens, garantir um sentido de conjunto.

            Por isso mesmo, o leitor queirosiano típico não tem o mesmo perfil do leitor de textos românticos, nem do leitor de textos naturalistas. É antes um leitor que se identifica com a voz narrativa, com a força construtiva do texto, e pouquíssimas vezes, ou quase nunca, com as suas personagens. Nesse universo, que se constrói sobre uma singular conjunção de forma discursiva épica, atenta à materialidade do mundo e à história das coisas, com conteúdo burlesco ou rebaixado, a coesão do conjunto não pode estar no nível do narrado, nem na forma interna da trama. Está, sim, no estilo, no sentido de construção textual.
            No que toca à forma geral de organização da narrativa, o resultado, nos melhores momentos, é o inconfundível olhar distanciado e profundamente irônico, mas ao mesmo tempo muito amoroso dos objetos, das paisagens e das sensações por elas desencadeadas. No que toca à expressão linguística, a conjugação do distanciamento psicológico e de amor pelos objetos produz um estilo colorido, no qual o adjetivo (esse grande desafeto dos escritores da linhagem realista) é uma estrela de primeira grandeza, que apenas cede o lugar, amiúde, ao advérbio, com o qual, aliás, frequentemente se confunde.

            Várias outras considerações poderiam ser feitas sobre o que constitui "o universo queirosiano". Com esta breve apresentação, pretendi apenas dar um tratamento possível à generalidade do tema desta mesa. Isto é, tentei apontar em que consiste o que julgo o traço mais queirosiano dentro do universo da prosa moderna de língua portuguesa.


[1] Texto escrito para ser lido na mesa-redonda O universo queirosiano, organizada pelo Instituto Camões na IV Feira Pan-Amazônica do Livro (10 a 19 de novembro de 2000, Belém, PA). Os tópicos estão desenvolvidos na introdução ao romance, pela Ateliê Editorial, também neste blog.
[2] Eça e Machado: críticas de Ultramar. In Cult - Revista brasileira de literatura, n.º 38. São Paulo: setembro de 2000.

terça-feira, 18 de junho de 2013

O Mandarim, de Eça de Queirós




O Mandarim

[prefácio a uma edição escolar do livro, de 1998]


Eça de Queirós vem referido, nos manuais escolares, como introdutor e maior expoente do Naturalismo português. É verdade. Mas também é verdade que Eça não perman­ceu fiel a vida toda aos princípios definidores daquele movimento de idéias. De fato, se por Naturalismo entendermos o romance de análise e crítica social, baseado na investigação das determinações que o meio físico, os costumes e a herança genética impõem às personagens, apenas poderão ser denominadas naturalistas duas novelas queirosianas: O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio. Suas outras obras pouco ou nada têm a ver com o Naturalismo, como podemos ver no rápido esboço da sua evolução literária, que apresentamos a seguir.
Seus primeiros textos, escritos por volta de 1865 e só reunidos postumamente sob o título de Prosas Bárbaras, são narrativas breves, marcadas pela influência de nomes emblemá­ticos da literatura fantástica – Nerval, Poe, Hoffman, Heine -- e sobretudo pelo espiritualismo de Vítor Hugo. Impregnadas de um forte sentimento panteísta, nem nos temas nem na forma trazem essas Prosas qualquer indicação de que o seu autor será, passados uns poucos anos, o convicto defensor do Naturalismo artístico.
Entretanto, já em 1871, na famosa conferência do Casino Lisbonense, Eça vai renegar conjuntamente a prosa fantástica e o romance histórico, e proclamar que o requisito básico da literatura moderna era a verdade; seu método, a análise; e seu objetivo, a melhora da sociedade por meio da crítica e da denúncia dos costumes. Era o triunfo da perspectiva naturalista, que logo produzirá os dois romances que nomeamos há pouco.
Mas seria rápido esse intermezzo programático. Em 1880, apenas dois anos depois de O Primo Basílio, Eça vai dar a público O Mandarim – uma novela fantástica, em cujo enredo tem participação decisiva uma figura declaradamente romântica: o Diabo.
Numa carta ao editor da Revue Universelle, que serviu de prefácio à publicação francesa da novela, Eça se mostrava bem consciente da singularidade do livro face à tendência estética dominante: “tendes aqui, meu Senhor, uma obra bem modesta e que se afasta consideravelmente da corrente moderna da nossa literatura, que se tornou, nestes últimos anos, analista e experimental”. Isso porque O Mandarim era “um conto fantasista e fantástico, onde se vê ainda, como nos bons velhos tempos, aparecer o diabo, embora vestindo sobrecasaca, e onde há ainda fantasmas, embora com ótimas intenções psicológicas”. A percepção do escritor é claríssima: apesar da atualização do ambiente da trama, o enredo fabuloso, o gosto pronun­ciado do exotismo, a ausência de interesse nos vários condicionalismos que determinam a ação dos indivíduos e a intervenção do sobrenatural configuram uma narrativa de molde romântico, ou neorromântico.
Nessa mesma carta, prosseguia Eça de Queirós com uma frase que vale a pena transcrever: “entretanto, justamente porque esta obra pertence ao sonho e não à realidade, porque ela é inventada e não fruto da observação, ela caracteriza fielmente, ao que me parece, a tendência mais natural, mais espontânea do espírito português.” Pode ser que a frase se aplique também ao espírito português, mas o que realmente importa é observar que se aplica perfeitamente ao espírito do próprio Eça, que, a partir de O Mandarim, vai abandonar progressivamente os caminhos do Naturalismo e retomar algumas características que já se encontravam nos seus primeiros textos: o gosto pelo exotismo das paisagens e civilizações e o pendor alegórico e moralizante. São essas características – centrais no texto de O Mandarim – que no final da vida de Eça de Queirós irão dar origem às impressionantes vidas de santos.

Do ponto de vista da evolução literária de Eça de Queirós O Mandarim representa, portanto, um momento de virada: aquele em que o escritor abandona a “preocupação naturalis­ta”, que, segundo o próprio Eça, embora tivesse servido para lhe disciplinar o espírito, também “o condenara a reprimir, muitas vezes sem vantagem, os seus ímpetos de verdadeiro romântico que no fundo era”.
Determinado seu lugar na produção queirosiana, observemos rapidamente essa obra singular. O Mandarim é antes um conto que uma novela, pois sua trama se concentra à volta de uma só personagem e a ação se reduz a um único acontecimento central, que implica todos os desenvolvimentos posteriores. O registro genérico é o da farsa moralizante, e o ponto de partida é um problema moral que era conhecido, no século passado, como o “paradoxo do mandarim”. Formulado em 1802 por Chateaubriand, consistia numa pergunta: se você pudesse, com um simples desejo, matar um homem na China e herdar sua fortuna na Europa, com a convicção sobrenatural que nunca ninguém descobriria, você formularia esse desejo? Vários autores glosaram esse tema ao longo do século passado, e o texto de Eça é talvez o seu último e mais literal desenvolvimento.
Do ponto de vista da crítica moral, lendo O Mandarim percebemos que há duas linhas independentes de desenvolvimento. A primeira é a mais simples. Mostrando-nos que todos o tratam de acordo com o dinheiro que possui, Teodoro nos vai apontar a hipocrisia que domina as relações pessoais e sociais. A segunda é a mais complexa, porque envolve a auto-representação do narrador. A ideia geral é a de que o crime não compensa, independentemente de qualquer outra consideração. Como ilustração desse princípio é que Teodoro narra aos seus leitores o seu caso exemplar: ao longo do tempo, após o crime que lhe propicia a riqueza, foi-se tornando infeliz, a tal ponto que o retorno à vida rotineira e medíocre de hóspede pobre da pensão chega a parecer-lhe uma forma de conseguir alguma paz de espírito.
Do ponto de vista da estruturação da narrativa, há igualmente duas observações a fazer. No que diz respeito à história da obra queirosiana, talvez valha a pena lembrar que O Mandarim é a primeira obra relativamente extensa escrita em primeira pessoa. Essa observa­ção pode reforçar o argumento, desenvolvido acima, de que o conto representa um momento de rejeição do modelo naturalista, que propunha a narrativa em terceira pessoa, mais adequada à análise objetiva. Já no que diz respeito à história do tratamento literário do paradoxo, a novidade do texto de Eça é a viagem à China. No seu texto, a China não é apenas o lugar abstrato, incógnito e remoto, onde vive um homem desconhecido cuja vida é destruída por um ocidental. Pelo contrário, ganha concretude e responde por cerca de metade do número de páginas da história. Da mesma forma que o Médio-Oriente em A Relíquia, a China é praticamente tudo em O Mandarim. Mas a diferença é que, enquanto em A Relíquia Eça descreve um ambiente e civilização que observara pessoalmente, em O Mandarim nos apresenta um lugar construído a partir de relatos de terceiros, de leituras e, principalmente, pela livre imaginação. Daí, justamente, o interesse da viagem de Teodoro, que nos conduz a uma China colorida, mirífica, bastante bizarra, em que encontramos uma espécie de súmula da visão europeia do que fosse o Extremo-Oriente.
Para o leitor de hoje, como para o de ontem, sem dúvida a parte mais atraente de O Mandarim continua a ser a viagem chinesa. O resto do conto tem um sabor conhecido e um registro genérico em que o desfecho é bastante previsível. Assim, é mesmo a fantástica viagem ao Império do Meio o que constitui o núcleo do texto e o mantém vivo e interessante. É também a viagem que singulariza esse texto na literatura portuguesa do final do século, fazendo dele um delicioso capítulo na história do exotismo orientalista que percorreu toda a cultura europeia da segunda metade do século passado.


segunda-feira, 17 de junho de 2013

Eça de Queirós: A cidade e as serras



A CIDADE E AS SERRAS: TESE CONTRA TESE

[Este texto, que é um trecho da apresentação do romance A cidade e as serras, publicado pela Ateliê Editorial, foi lido no Congresso Internacional O Século do Romance - Realismo e Naturalismo na Ficção Oitocentista , realizado em Coimbra em 2011.]

           Na fortuna crítica de Eça, ocupa lugar importante a afirmação de que o romance defende a tese da superioridade da vida tradicional do campo – das formas de vida e estruturas sociais paternalistas e pré-industriais – sobre a vida moderna. Colorido de patriotismo, o livro teria como proposta o retorno às origens da nacionalidade, no norte agrário português.
           Ora, dizer que a história narrada por Zé Fernandes possui uma tese não é o mesmo que dizer que o romance de Eça de Queirós tenha uma tese e muito menos que a tese da narrativa de Zé Fernandes seja a tese do romance de Eça ou a tese de Eça, de modo geral, nos últimos anos de sua vida.
           João Gaspar Simões, identificando uma coisa com outra, acusou Eça de insinceridade, uma vez que não o julgava disposto a adotar a solução que o livro proporia, ou seja, a trocar a sua vida em Paris pela vida rural portuguesa. Jacinto do Prado Coelho, por sua vez, definiu a obra como “romance reacionário”.[1]
           A questão de se a tese de Zé Fernandes é a tese de Eça não ocupará o primeiro plano desta comunicação. Isso porque não há como chegar a discutir a proximidade entre o ponto de vista de Zé Fernandes e o suposto ponto de vista de Eça sem primeiro entender a construção romanesca no interior da qual Zé Fernandes expõe e defende a sua tese; e também porque da análise dos últimos romances o máximo que se poderia extrair seria uma “ideologia do último Eça romancista”, que não necessariamente coincidiria com a ideologia do escritor, que ao mesmo tempo assinava textos com sentido bastante diferente do que se poderia extrair dos seus romances finais.
           Sobre esse ponto, num ensaio publicado em 1945 – ou seja, no ano de balanço político da obra do autor, no qual a tônica foi a suposta guinada à direita do antigo agitador socialista – Antonio Candido, depois de analisar o “recuo ideológico” que também identifica na obra romanesca do autor a partir de Os Maias, escreve: “com efeito, ao mesmo tempo que acomodava na fantasia e no ruralismo a sua visão literária, ele escrevia alguns dos seus artigos mais avançados politicamente: ao lado de uma crônica vencidista sobre a rainha ou o rei, um julgamento lúcido e destemido sobre o socialismo, ou uma crítica incisiva, mordaz, sobre a burguesia capitalista e o imperialismo econômico.”[2]
   A propósito do estado da crítica nesse importante ano do centenário, e de sua própria contribuição a ele, Antonio José Saraiva escreveu, no seu último livro, uma pungente e lúcida autocrítica:

           Em 1945, comemorando-se o centenário de nascimento de Queirós, o autor da presente obra publicou um estudo sobre As idéias de Eça de Queirós [...] De fato, o lento desenvolvimento da mentalidade portuguesa tornava ainda atual em 1945 a caricatura que Eça fez da nossa sociedade em As Farpas, O crime do padre Amaro e O primo Basílio [...]. Todas as outras obras eram consideradas desvios da sua ‘verdadeira’ rota. As idéias de Eça de Queirós é uma súmula dos clichês então reinantes sobre o escritor. Por isso uma obra-prima como A cidade e as serras era julgada como insignificante, ou como um ‘regresso’ a Júlio Dinis. E não foi só o presente autor que assim apresentou Eça: era a opinião generalizada.[3]

           Hoje o que parece mais razoável não é ler cada romance em busca de índices comprobatórios de uma imagem do autor feita a partir da leitura do conjunto deles, ou a partir de uma leitura seletiva dos textos do autor, elaborada com base nos interesses do momento, mas perceber em cada um a complexidade das vozes e situações. 
           No caso de A cidade e as serras, o mais interessante é perceber como se desenvolve a tese de Zé Fernandes no interior da narrativa, como ela se articula com outras teses ali presentes e quais os efeitos de sentido que derivam desse desenvolvimento e articulação. Com isso não só a imagem de autor seguramente será alterada, mas também a leitura se poderá fazer de forma menos esquemática e mais prazerosa.
           Passemos, então, à tese e sua situação dentro das coordenadas do livro.
           No que diz respeito a Jacinto, a tese sobre as virtudes do retorno à vida tradicional ou de reencontro com as bases da nacionalidade não faz sentido. Jacinto é personagem de mão única: nasceu, cresceu e viveu toda sua vida em Paris; um dia transferiu-se para as serras portuguesas e lá se fixou para sempre, sem jamais retornar à terra natal, isto é, à França.
           A história de Jacinto e de sua família, aliás, é desprovida de regressos. Seu avô, D. Galião, parte com a mulher e o filho para Paris, e de lá nenhum deles retornará a Portugal.
           Jacinto não vê, em momento algum, a viagem às serras portuguesas como retorno às origens; entende-a, sim, como uma excursão arriscada para fora das fronteiras do seu mundo: “É muito grave deixar a Europa!”, exclama, ao despedir-se da paisagem urbana, prestes a mover-se para fora das fronteiras da cidade e da França. Em Portugal, não experimenta efusão patriótica, nem comoção por sentir-se instalado nas terras da família, de onde lhe provêm as rendas.
           De modo que apenas tendo em mente um ser maior do que o indivíduo Jacinto – uma entidade como o clã, a linhagem familiar – torna-se possível falar em retorno e reencontro com as origens, como faz Zé Fernandes, quando grita para o amigo, assim que o trem entra em Portugal: “Acorda, homem, que estás na tua terra!” Para Jacinto, a frase só faria sentido – e ainda assim em registro bem diferente do patriotismo da exclamação de Zé Fernandes – se o trem estivesse a cruzar as fronteiras da sua propriedade de Tormes.
           A proposição de que o livro trata de um reencontro das origens e que a própria trajetória de Jacinto é a de um retorno a essas origens é a tese de Zé Fernandes. Mais do que isso: a tese do retorno deriva diretamente do desenho da vida de Zé Fernandes, que se apresenta como uma contínua viagem entre os dois pólos da vida européia representados no título do romance. Zé Fernandes não é apenas a personagem que regressa, mas ainda a personagem que o faz incessantemente: nasce em Portugal, estuda em Paris, retorna a Portugal e outra vez a Paris. Quando começa a ação do livro, aí o temos e, na seqüência, movimenta-se entre a cidade e as serras, terminando por fixar-se nessas, cuja superioridade afirma e enaltece, por meio do exemplo que é o seu amigo Jacinto.
           No romance, sua única viagem que não é desde o princípio entendida como regresso é o tour pela Europa, relatado com acentuado sabor cômico, por meio da quantificação dos aborrecimentos e das perdas, em um único parágrafo no capítulo VII. Tour esse, diga-se, que proporcionou ao viajante dois únicos prazeres dignos de nota: o encontro, em Veneza, com um estrangeiro que conhecia sua aldeia em Portugal e com o qual pôde evocá-la, e o momento do regresso ao aconchego da casa de Jacinto.
           O retorno à origem como recuperação da felicidade (e da virtude) é assim o tema e a tese de Zé Fernandes. E a demonstração da tese, segundo Zé Fernandes, é a prática de Jacinto. Zé Fernandes, sozinho, não pode afirmar a tese. Ele experimenta como ninguém a sedução da cidade. Sua recusa a ela está sempre a um passo de confessar-se como ressentimento provinciano. Jacinto, o cosmopolita que encontraria a felicidade no campo, é, por isso mesmo, o apoio e a prova isenta da tese de Zé Fernandes.
           Jacinto, entretanto, tem a sua própria tese sobre a felicidade, que aparece logo no começo do livro: a de que ela é o produto da suma ciência e da suma potência. Uma proposição de que a felicidade, portanto, reside na integração ao próprio tempo, no que ele tem de mais avançado.
           A tese sustentada por Zé Fernandes, na medida em que identifica a felicidade com o retorno à vida campestre e pré-industrial (ou que propõe que os remanescentes do mundo pré-industrial sejam lugares possíveis para a felicidade na idade moderna), implica desde logo a demolição da tese de Jacinto.
           Por isso, porque a afirmação de uma depende da destruição da outra, Zé Fernandes se ocupa com vigor de demonstrar a Jacinto (e ao leitor) o erro da perspectiva e das crenças do amigo.
           Desse ponto de vista, Jacinto é tanto o defensor de uma tese incompatível com a do narrador, quanto uma demonstração da tese deste. Ou talvez fosse melhor dizer: Jacinto é o campo de provas de Zé Fernandes, que atua sobre ele e sobre o leitor de modo a tornar o amigo a própria demonstração de sua tese. Ou seja, Zé Fernandes não só precisa destruir a tese de Jacinto, como também convertê-lo à sua própria, torná-lo um exemplo da correção daquilo que propõe como alternativa à tese do amigo.
           Já se observou que a dupla Jacinto/Zé Fernandes reproduz, em certa medida, a dupla matricial D. Quixote/Sancho Pança. A sugestão está dada no próprio romance, em cujo capítulo VIII, se lê:
  
                        Jacinto adiante, na sua égua ruça, murmurava:
                        – Que beleza!
                        E eu atrás, no burro de Sancho, murmurava:
                        – Que beleza!
          
           Mas há pouco de Sancho nesse narrador astuto. Como há pouco de Quixote no seu amigo Jacinto, que, além de ter boa figura, é ainda sobejamente rico, tem excelente saúde, é agradável às mulheres, possui inteligência e grandes dotes sociais, e não possui, a rigor, incompatibilidade violenta com os ambientes nos quais se move.
           De modo que a alusão de Zé Fernandes produz apenas o reforço da imagem de bom-senso chão, que o narrador se arroga, e da caracterização de Jacinto como irrealista, defensor de uma causa fantástica.
           Ou seja, a qualificação das personagens, nessa passagem, integra a estratégia geral de Zé Fernandes, que é sublinhar a fragilidade prática de Jacinto e conseqüentemente enfraquecer o seu lado na disputa pela resposta correta à questão que lhe interessa e que, uma geração antes, foi título de um romance de Camilo Castelo Branco, “onde está a felicidade?”.
           Nesse livro, Camilo respondera a essa pergunta com grande cinismo “realista”: “Está debaixo de uma tábua, onde se encontram cento e cinqüenta contos de réis.” Já no romance de Eça, sendo Jacinto um herdeiro para o qual as necessidades da vida não pesarão nunca, essa resposta está interdita e a demanda da felicidade deverá operar-se tendo a riqueza como pressuposto, o que permitirá a Zé Fernandes apresentar a história do amigo (e a sua, integrada à do amigo) como uma história exemplar, quase um apólogo.
           De fato, Jacinto, abrigado da necessidade pela fortuna herdada, pode livremente entregar-se ao exercício da modernidade e do refinamento da civilização como busca da felicidade, deles colhendo apenas tédio, insatisfação e enfraquecimento da saúde. E também poderá, na seqüência, porque o acaso o trouxe a Tormes, entregar-se às fantasias agrícolas e ao projeto de erradicação da pobreza dentro dos muros da sua propriedade, sem cuidar mais de Paris, que se reduz a etapa encerrada da sua vida.
           Assim, as duas fases de Jacinto são claramente marcadas do ponto de vista da satisfação: a primeira fase é de ausência e a segunda é de plenitude. A primeira é de tédio, a segunda de animação. E o agente da transformação não é a vontade, nem qualquer alteração da sua situação financeira, mas o simples acaso que, de súbito, o deslocou de um ambiente para outro.
           Jacinto resulta, por isso mesmo, uma personagem fora do mundo, no sentido que age em completa liberdade e sequer se dá conta ou se importa com as implicações dos seus atos. É auto-suficiente. Vive, desse ponto de vista, num castelo (perfeitamente isolado e autônomo, porque isento de vassalagem que o obrigue a qualquer ação para fora), num domínio que se faz e se quer independente e alheio ao resto do mundo. O seu alheamento e autocentramento tornam-se evidentes ao longo da narrativa, não só no que diz respeito à economia, quanto no que diz respeito à política.
           Do ponto de vista econômico, o lucro e a otimização dos recursos – princípios elementares de qualquer empreendimento – são para ele assuntos desinteressantes, que não merecem atenção, como se vê no episódio da projetada queijaria, no capítulo IX. Tampouco é um avarento, no sentido pré-capitalista, pois além de não sofrer a paixão de acumular, não tira prazer da contemplação do que possui, já que não manifesta o menor desejo de ao menos conhecer as suas outras terras, de onde lhe vêm, na verdade, os recursos que emprega na reforma de Tormes.
           Do ponto de vista político, embora seja uma espécie de redentor dos campos, não oferece ameaça aos demais proprietários, pois confina a reforma aos domínios da sua terra. Seu gesto reformista, aliás, deixa-se facilmente ler como puro paternalismo, ou melhor, como estratégia de política reacionária, como se vê no capítulo XIII, quando Jacinto é tido como absolutista, parceiro e enviado de D. Miguel.
           Em Paris, Jacinto é um dândi. Nas serras, não parece que o tenha deixado de ser totalmente, já que o motivo principal das suas ações, principalmente nos primeiros tempos de adaptação, nunca é de ordem sentimental ou econômica, mas sim de caráter essencialmente estético. A miséria dos camponeses o deixa horrorizado como um canto mal pintado de um quadro bucólico; os empreendimentos agrícolas, para desespero do administrador, não são encarados do ponto vista dos custos e proveitos, mas como problemas matemáticos ou de decoração.
           Como dândi, Jacinto faz um caminho contrário ao modelo do gênero, o herói do romance Às avessas (1884), de J.-K. Huysmans. O romance inteiro – mas principalmente, desse ponto de vista, a sua primeira parte – pode ser lido como uma espécie de às avessas de Às avessas. De fato, Des Esseintes, no livro de Huysmans, é, como Jacinto, um homem muito rico. Mas enquanto Des Esseintes usa seus recursos para construir uma casa e uma vida a contrapelo do caminho burguês, utilizando o máximo da técnica moderna para poder isolar-se por completo tanto da natureza quanto da vida social, Jacinto utiliza sua riqueza, em Paris, para viver em total integração com o mundo e para exibir essa integração como ideal de vida, como o demonstram o escritório provido de tubos, a biblioteca de ambições enciclopédicas e a intensa vida social. A ciência e a técnica, para ele, são não apenas instrumentos de ampliação da potencialidade natural dos sentidos e das capacidades humanas, mas também matéria de espetáculo, afirmação de fé no progresso e elemento de decoração - o que faz da sua casa uma espécie de museu do contemporâneo.[4]
           Mas se Jacinto, no campo, continua em certo sentido um dândi, o registro do seu dandismo abrandado é agora outro: o do isolamento senhorial. Por isso, altera-se o lugar da técnica. Rebaixada ao caráter puramente instrumental, ela tem agora função oposta à que desempenhava na casa parisiense: não mais serve para compor o ambiente da mundanidade moderna ou para integrar o proprietário no movimento geral da época; reduzida a um telefone, tem sinal oposto, pois permite que Jacinto permaneça o maior tempo possível sem locomover-se da ilha de bem-aventurança que é o seu domínio serrano.
           No episódio do telefone, aliás, a conduta de Zé Fernandes demonstra o seu interesse em que Jacinto não fuja ao papel exemplar, fundamental para garantir a tese que o seu livro apresenta e defende. De fato, alarmado com a notícia da chegada da novidade a Tormes, Zé Fernandes põe-se logo em campo para impedir o pior: uma recaída do amigo na doença do progresso e do pessimismo. Desconfiado, assume o papel de terapeuta vigilante, que não confia nos propósitos de Jacinto e só entra em sossego quando constata, com o passar do tempo, que o amigo persistirá no caminho da felicidade rural. Ou seja, Zé Fernandes precisa vigiar Jacinto, para que este continue a ser a demonstração viva, o exemplo perfeito da tese da superioridade do campo como lugar da felicidade. Para isso Jacinto precisa manter-se firme na recusa à máquina e à tecnologia, que tanto ele quanto o narrador identificam com a idéia de progresso e de cidade.
            Do que ficou dito deve ter ficado claro que A cidade e as serras não é apenas a história de Jacinto. É a história de Jacinto contada por um narrador complexo, que tem uma tese pela qual se esforça desde a primeira linha do romance. Um dos elementos desse esforço é a busca da cumplicidade do leitor; outro é a produção da caricatura enternecida (tingida sempre de condescendência paternalista) do seu herói, contra a qual afirma a sua qualidade de homem realista e razoável. Um efeito da conjugação de ambos dá a graça maior do livro, que procede justamente da dificuldade do narrador sustentar a sua tese, já que ele mesmo não se mostra, na maior parte do romance, convencido de que o percurso de Jacinto seja de fato um exemplo digno de imitação. Nem mesmo por ele, que, até a última viagem a Paris, parecia não querer para si a felicidade acomodada do amigo, imerso no isolamento rural.
            E este é outro ponto que merece atenção: Zé Fernandes não é apenas o narrador e a testemunha da história e da mudança de Jacinto, é também uma personagem que se transforma sob o efeito da mudança que narra e testemunha. Recapitulemos: a princípio, Zé Fernandes não sofre de tédio em Paris; ao mesmo tempo, não tem, na sua terra, a ilusão ou os recursos para construir para si um mundo à parte, como o Castelo da Grã-Ventura de Jacinto. Pequeno proprietário, fascinado pelo desregramento da civilização, Fernandes tem no amigo um espelho no qual se reconhece em negativo, um espelho que lhe devolve uma imagem algo diminuída: na cidade, deixa-se ver e se reconhece como provinciano ávido de deleites sensuais, com uma dose aproximadamente igual de volúpia e repulsa ressentida perante o grande mundo parisiense; no campo, exibe prudência e consciência culpada da exploração que embasa a vida tradicional, ao mesmo tempo em que experimenta não só a nostalgia da vida parisiense, mas também a nostalgia de ter Jacinto como contraponto a reafirmar as suas convicções. De fato, diz ele: “é até monótono, pela perfeição da beleza moral, aquele homem tão pitoresco pela desinquietação filosófica [...]. Quando ele agora, bom sabedor das coisas da lavoura, percorria comigo a quinta, em sólidas palestras agrícolas, prudentes e sem quimeras – eu quase lamentava esse outro Jacinto que colhia uma teoria em cada ramo de árvore” (p. 231).
           Sob o efeito da mudança operada em Jacinto, há um momento em que os papéis se invertem: Zé Fernandes se entedia no campo, depois da perda da amante e da morte da égua, e, sentido “uma pontinha de bolor” na alma, embarca para Paris. Lá, o tédio não o abandonará por completo. Será, na verdade, apenas sufocado pelo sentimento maior de desamparo e horror, que ele compara ao que Jacinto experimentara na primeira vez que fora ao campo.[5]
           Dessa maneira, Zé Fernandes não só encena a indissociabilidade entre ele e Jacinto, reforçando a relação especular ante ambos, mas ainda mostra como a conversão de Jacinto acentuou nele as suas próprias características, tornando-o mais visceralmente do que nunca o homem do campo. Mas a simetria pára por aí, pois enquanto Jacinto superou o medo e o desconforto e se adaptou ao ambiente que não era o seu – isto é, ao ambiente rústico –, tornando-se perfeitamente integrado à vida saudável das serras, Fernandes não superará as sensações ruins experimentadas na última visita a Paris, que apenas o levarão de volta à sua quinta, reafirmando a excelência do lugar de origem. Nessa derradeira estada, Zé Fernandes assume o papel de Jacinto, tal como ele o via antes da transformação: aquele que poderia ter, mas não queria ter, todos os prazeres da cidade; que poderia ceder, mas não cede – por inapetência ou simples tédio –, a todas as tentações (que ainda enfeitiçam Zé Fernandes, como se vê pela passagem em que se lembra da amante, ou pelo maço de revistas que traz a Tormes).
           O lugar de Jacinto na economia interna de Zé Fernandes, assim, é mais do que o de uma tese demonstrada. Jacinto é uma escora, um antídoto que permite a Zé Fernandes construir uma zona de “realidade”, na qual se sinta em segurança. E, ao mesmo tempo, é o modelo para a sua solução do conflito entre a cidade e as serras: “o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura”.
           Jacinto teria obtido esse equilíbrio, segundo o narrador, por meio de uma controlada concessão à tecnologia moderna. De fato, muito controlada, pois não haverá máquinas agrícolas em Tormes, nem qualquer rudimento de industrialização rural. O progresso tecnológico se restringirá à incorporação, à rotina da casa senhorial, de um telefone, e do conforto moderno serão aproveitados apenas alguns móveis e tapetes, destinados a melhorar o quotidiano da família. No que toca à propriedade como um todo, anunciam-se alguns projetos que envolvem a informação e a técnica modernas: uma biblioteca de livros de estampas e uma sala de projeção de lanterna mágica, para instrução dos camponeses. Nesse sentido, a modernização que Jacinto opera nos seus domínios é conservadora: a recusa ao uso da tecnologia para a produção agrícola, a reforma das casas dos rendeiros e a farmácia (bem como a escola, a creche, a biblioteca e a sala de projeção planejadas para o futuro) produzem a melhoria das condições de vida dos pobres, sem alteração significativa, seja na forma de produção, seja na dependência dos camponeses em relação ao senhor da terra.[6]
           Zé Fernandes terá, ao final do livro, a sua própria solução para obter “o equilíbrio da vida, sem contudo partilhar do ímpeto reformista e caridoso de Jacinto. Sua solução consistirá no simples afastamento da matéria corrupta da cidade e na preservação do espírito dela, por meio da importação, para as serras, dos livros e revistas parisienses: “Pois adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da tua vaidade, outra vez, não me pilhas! O que tens de bom, que é o teu gênio, elegante e claro, lá o receberei na Serra pelo correio.”
           Dessa maneira, o percurso de Fernandes se revela mais conservador e individualista do que o de Jacinto, o que reforça o sabor burguês das suas ressalvas, em Paris como em Tormes, ao comportamento e às idéias do seu “príncipe”. E é provavelmente desse caráter da personagem narradora, da sua perfeita caracterização, que decorre a tentação, por muitos experimentada, de fugir à ironia constitutiva do romance e atribuir ao autor, ou à sua intenção, o caráter conservador que o romance – de Zé Fernandes, não o de Eça – traz à evidência.



[1] Jacinto do Prado Coelho, “A tese de ‘A cidade e as serras’”. In A letra e o leitor. Lisboa: Moraes Editores, 1977, pp. 169-174. A primeira edição do livro é de 1969.
[2] Antonio Candido. “Eça de Queirós entre o campo e a cidade”. Livro do centenário de Eça de Queirós. Reproduzido com o título “Entre campo e cidade” em Tese e antítese. São Paulo: T. A Queiroz, 2000.
[3] Antonio José Saraiva. A tertúlia ocidental – estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e outros. Lisboa: Gradiva, 1995.
[4] O caráter de museu ou sala de exposição que possui o apartamento de Jacinto é evidente ao longo do livro. No final, quando Zé Fernandes o visita, esse caráter explicita-se, agora em negativo, quando o narrador observa as coisas desusadas, como já dispostas num museu, para exemplificar a instrumentação caduca dum mundo passado”, p. 243.
[5] Miguel Tamen já notara a estrutura em quiasmo, que faz equivaler, nesta passagem “Zé Fernandes-da-cidade a Jacinto-das-serras”, por meio da “vaga tristeza da minha fragilidade”. “Fazer Arcádia”. In A cidade e as serras – uma revisão, pp. 31-2.
[6] É provavelmente a essa forma de compreender a reforma das condições de vida dos pobres nos seus domínios que Jacinto se refere, quando, no capítulo XIII, depois de ser confundido com agente miguelista, declara ser socialista.