sexta-feira, 5 de junho de 2020

Contributo à biografia de Plínio Martins Filho*

Entrevista a Ulisses Cappozoli


1)    Como e quando vocês se conheceram e que interação tiveram?

Conheci o Plínio por intermédio do Ivan Teixeira. Ivan dirigia uma coleção na Ateliê. Uma coleção que publica clássicos em língua portuguesa, em edições cuidadas, cheias de notas de apoio à leitura. Convidou-me para redigir uma apresentação do romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Isso deve ter sido na segunda metade da década de 1990. Talvez tenha estado com o Plínio antes, em alguma outra ocasião. Mas minha lembrança mais forte data desse momento. 
Ivan era uma pessoa muito absorvente, um intelectual notável, cheio de planos. Plínio tinha nele o parceiro ideal. Plínio é um homem tranquilo, que gosta de ouvir, que aprecia o conhecimento. Ivan e ele formavam um par fantástico e creio que as qualidades de ambos deram o tom da parte acadêmica da Ateliê: seriedade, firmeza, comprometimento, entusiasmo.
Do que me lembro, apreciei de imediato o ar modesto e gentil do Plínio, e seu real interesse nos livros e nas questões editoriais implicadas por uma coleção desse tipo, destinada a formar um fundo de catálogo dirigido à formação de leitores.


2)    Que contribuição mais específica ele deu para a editora da Unicamp. Em que estágio ela estava, quando começou a colaboração a que você se refere?

Quando assumi a direção da Editora em 2002, não havia praticamente nenhuma estrutura. Praticamente falida, com um catálogo problemático e funcionários sem treinamento, aquilo era um caos. Desde meu primeiro encontro com o Plínio, fui-me aproximando dele, por admiração e também porque comecei a me envolver com a coleção da Ateliê. Na sequência, por intermédio do Ivan, me aproximei da Edusp, tendo inclusive, por sua indicação, publicado lá minha tese de livre-docência.
Minha primeira ação, quando fui convidado para dirigir a Editora da Unicamp, foi, portanto, ligar para o Plínio e perguntar-lhe o que achava. Como ele me entusiasmasse, perguntei-lhe se poderia contar com ele. Essa era a condição para eu assumir.
E assim foi: fui a São Paulo várias vezes e especulei tudo o que podia. Depois, a cada passo, ligava para o Plínio, com ele discutia as estratégias. E pude apreciar uma qualidade do seu caráter: Plínio nunca é impositivo. Embora seja um dos maiores editores brasileiros, nunca disse algo como “faça assim...”, ou “o certo é...”. Sempre partia da sua experiência, sugeria, ouvia.
Além disso, pude contar com ele para qualificar o quadro funcional da Editora. Revisores, preparadores e administradores foram assistir aulas na ECA, estagiar na Edusp e puderam sempre recorrer à nossa irmã mais velha no sistema público paulista, para estabelecer rotinas e procedimentos.
Quando finalmente encontrei uma pessoa capaz de gerenciar todo o processo de produção, foi ainda o Plínio de grande valia para orientar os primeiros passos que fazíamos para ter uma estrutura técnica independente da direção acadêmica – o que, por sinal, valeu a sobrevivência da Editora da Unicamp, no período posterior, quando ela quase foi outra vez desmantelada.


3)    Que papel ele teve em termos de contribuição para o desenvolvimento de outras editoras universitárias?

Plínio nunca foi político nem fez proselitismo. Assim, sua contribuição se deu basicamente pelo exemplo e pelo acolhimento. O acolhimento sempre foi notável: qualquer professor levado pelas circunstâncias a assumir uma editora sempre teve nele um mestre disponível e um amigo para os desabafos. Foi assim comigo, como foi com o diretor da editora da UFPR e a diretora da UEL, entre vários outros.
No que toca ao exemplo, é público e notório que o trabalho do Plínio na Edusp estabeleceu um novo patamar para a edição universitária. Além da qualidade editorial propriamente dita, que é a mais alta possível, Plínio nos mostrou que construir uma identidade visual era necessário. Todos reconhecíamos de longe os livros da Edusp. E aquilo sempre foi uma inspiração para muitos: livros sóbrios, bem feitos, bem planejados, miolo e capa em harmonia, uso racional de logotipo, distribuição dos títulos em coleções consequentes. Sobretudo, mostrou que uma editora universitária não precisava ficar a dever, em qualidade e apresentação, a nenhuma editora privada. Pelo contrário, podia disputar, com as melhores, os prêmios todos, do conteúdo específico ao projeto gráfico.



4)    Plinio chegou à USP num contexto comparativamente incomum (não tinha mestrado nem doutorado). Como você interpreta essa condição. De alguma maneira ele rompeu um certo paradigma, no sentido de não ser um, digamos, “iniciado” do ponto de vista acadêmico?

Há dois Plínios, e só a cegueira institucional da USP é que não permite que sejam um só. Quero dizer: há o funcionário Plínio, lotado na Edusp; e há o professor Plínio, lotado na ECA, no curso de editoração. Ambos são um só, evidentemente, e se a USP fosse uma universidade menos engessada, teria ali um profissional raro em qualquer parte do mundo: um professor de notório saber, capaz de formar gerações e gerações de editores, e de gerir a maior e melhor editora universitária do Brasil.
Lembro-me sempre, quando penso nisso, no caso de Alexandre Eulálio. Foi meu colega no IEL. Um homem de saber incomum na área da literatura e da cultura, de modo geral. 
Alexandre não tinha título universitário. Por isso a Unicamp lhe conferiu um título de doutor por notório saber e o contratou como professor em tempo integral.
Já na USP, o que ocorreu? Exigiram do Plínio uma tese de doutoramento, que ele fez tardiamente, pois esse não era o seu perfil. A tese é um livro maravilhoso, o “Manual de Editoração”. Mas não é uma tese acadêmica. Ainda bem, porque é um trabalho diferenciado, que só um grande editor poderia ter feito.
O problema da USP é não compreender a grandeza de uma pessoa como ele. Por isso, relega-o a tempo parcial. De modo que sua atividade termina por ser restrita, seu enorme potencial termina por ser subaproveitado pela universidade.
E, por fim, há a mesquinharia dos jogos políticos: um dos maiores editores do Brasil foi afastado da direção da Editora que construiu, e substituído por pessoas que podem ter boa vontade, mas não formação ou experiência no mundo editorial. Pior: pessoas que, por conta da circunstância interna das mesquinharias político-acadêmicas, sequer se socorreram do saber do antecessor, nem trataram de se esforçar para corrigir o erro que foi a universidade tê-lo afastado da função que ele pode desempenhar como ninguém.
Quando ao fato de ele ter chegado sem doutoramento, só posso louvar a amplitude de visão de João Alexandre Barbosa. Este, sabendo-se sem condição de gerir uma editora (como eu também tinha consciência disso, e qualquer professor subitamente designado para tal função deve ter...), aceitou com a condição de ter ao seu lado o Plínio, que ele conhecia da Perspectiva. Foi graças ao João Alexandre que o Plínio veio para a USP. E graças a essa decisão, a Edusp se tornou o que ainda é hoje, apesar de serem já sensíveis os sinais de seu declínio como editora de ponta. O resto da história todos conhecem: num momento em que o país mergulha num crescente obscurantismo caipira e ressentido, Plínio é retirado da direção da Edusp e fica restrito a atividades de segunda importância. A rigor, fica confinado num espaço de todo indigno da sua formação e competência.

  
5)    As universidades brasileiras não têm certa resistência em aceitar o conhecimento, digamos vivido, prático, sem que esteja acompanhado de certa formalidade acadêmica?

Nós somos o país dos bacharéis. Como respondi acima, poucas vezes se vê um gesto como o da Unicamp, ao atribuir a um dos maiores intelectuais brasileiros um título de notório saber, que lhe permita trabalhar e orientar estudantes.
No geral, o carreirismo impera entre nós. Muitos gostam da formalidade vazia a ponto de inserirem em seus currículos o absurdo título de “pós-doutor em...”
Mas sobre isso falei na resposta anterior.
  

6)    Como você avalia uma experiência dessa natureza? Plinio teve algumas resistências (por exemplo, recusa em que monografia de mestrado pudesse ser transferida para doutorado, algo relativamente comum no meio acadêmico). Como interpretar esse ambiente?

Plínio foi um outsider numa universidade extremamente conservadora, engessada, que ainda vive das glórias do passado. Creio que muitos setores da USP nunca puderam assimilar a ideia de que a competência acadêmica pode ser adquirida na prática, no exercício consequente de uma atividade.
Sobretudo, o que julgo fundamental para entender o porquê de a USP ter aproveitado pouco o Plínio no trabalho acadêmico é que essa universidade, desde a publicação da famosa “lista dos improdutivos”, passou a considerar como produção (e a enfatizar desmesuradamente como produção) os papers acadêmicos. O lado formativo, que sempre foi a alma e razão de ser da universidade, ficou em segundo plano. O professor termina por ser inferior, do ponto de vista prático e de avaliação, ao “pesquisador” (seja lá o que isso queria dizer na área das humanidades). Plínio é, essencialmente, um formador, um professor. Não é um homem que publica artigos acadêmicos. Aliás, na sua área, no seu domínio específico que é a editoração, isso nem sequer é possível. De fato, pode-se falar muito sobre história do livro, circulação do livro, aspectos materiais da leitura etc. Mas sobre concepção e produção de livros, administração de editora, política de vendas, equilíbrio entre o Estado e o mercado na produção e venda de livros, que interesse têm artigos acadêmicos?
Ao restringir a avaliação do desempenho ao paper, a universidade dá provas de grande cegueira, e sacrifica o que sempre foi sua razão de ser: formar pessoas. Não é à toa que cada vez mais “dar aulas” é visto como perda de tempo pelas novas gerações de docentes que se entendem como pesquisadores em busca do próximo artigo a publicar em inglês...


7)    Em termos qualitativos e mesmo quantitativos, como você avalia a produção dele na Edusp?

Já falei sobre isso. Plínio foi a alma da Edusp. E por conta de seu trabalho e dedicação ela se tornou o que é. Ou foi.


8)    Qual ou quais as contribuições dele foram mais promissoras tanto para a Edusp quanto na parceria que tiveram em relação à Editora da Unicamp?

Também já falei sobre isso. A competência técnica, apoiada num grande amor ao livro e à leitura, foi sua contribuição principal. Nas parcerias com a Unicamp e outras, creio que sua contribuição principal foi sua vontade de ensinar e ajudar.


9)    Qual a situação, de modo geral, das editoras universitárias no Brasil e que perspectiva você enxerga para elas?

Sobre isso posso lhe enviar um artigo específico sobre editoras universitárias, que sairá em breve em volume. Mas, de modo geral, creio que atravessam um momento difícil. Não vejo possibilidade de que se repita o momento de esplendor, que se localiza mais exatamente entre a posse de João Alexandre e a substituição quase simultânea dos três diretores das mais atuantes editoras universitárias do Brasil: a da UFMG, a da UNESP e a da USP. O fato de todos, com longo tempo de direção, terem sido alijados num curto espaço de tempo, é um marco cronológico importante – e um sinal do fim de uma etapa.

10) Uma editora como a da Unicamp tem que diferenças, se comparada à Edusp ou outras editoras universitárias no Brasil?

Sobre a Editora da Unicamp tenho pouco a dizer. Assim como sobre as demais. Deixei a direção há 6 anos. Então o que eu pudesse dizer agora dependeria de me debruçar sobre o catálogo atual de cada uma, o que não fiz.


11) Plínio recusa a ver-se como um “intelectual”, ainda que faça um trabalho intelectual e tenha relacionamento estreito com uma comunidade intelectualizada. Como você entende essa recusa da parte dele?

Plínio não é um “intelectual” no sentido que essa palavra tem no estrito contexto universitário. Não é um homem de teorias, não é um produtor de artigos acadêmicos, não passa a vida a correr atrás de mais linhas para o seu Lattes, não fica exibindo indiretamente o currículo o tempo todo em conversas sociais. 
É um intelectual, porém, como muitas pessoas dentro e fora da universidade: é um grande leitor, um melômano, um apaixonado pela história do livro e da edição, que conhece como poucos. Mas eu entendo completamente que não queria se ver como “intelectual”. Eu mesmo não gosto dessa palavra se for aplicada a mim. Prefiro ser identificado como professor. Ele, como editor.

12) O que significa editar perto de 1.600 títulos em uma editora universitária?

Significa ter a competência de administrar o caos. E também a humildade de saber que em algum ponto se vai falhar, atrasar, escolher mal. Mas, sobretudo, significa que, depois de uma experiência como essa, e do sucesso comprovado, você é tudo menos uma peça dispensável. Significa – não me canso de repetir – que deixar uma pessoa com tal cabedal afastada do centro produtivo da universidade é uma demonstração de cegueira ou de mesquinharia indignas de uma grande universidade como a USP.
  

13) Qual o contexto, neste momento, das editoras universitárias em relação às comerciais?

As editoras universitárias estão enfrentando um grande desafio. Como as teses agora são todas públicas, na forma eletrônica, ou as editoras se tornam verdadeiramente editoras, no sentido de obrigar que uma tese seja submetida a uma radical edição para virar livro, ou então se resignam a produzir material de apoio: traduções, livros didáticos, manuais. Ou, pior ainda: a editora pode ceder à tentação de publicar apenas trabalhos de seus docentes e estudantes que não passaram pelo crivo de uma banca – e, dentre eles, justamente aqueles que outras editoras não têm interesse em publicar.
O caminho da concorrência com as editoras comerciais, pela abertura do catálogo a títulos não acadêmicos, por outro lado, parece-me perigoso. Não só porque aí não se justificaria manter uma editora universitária, mas principalmente porque as verbas públicas tendem a encolher, caso em que não há justificativa para empregá-las num lugar onde a iniciativa privada pode atuar. 
  

14) Qual sua visão em relação à perspectiva do livro impresso, em comparação à versão eletrônica?

As edições eletrônicas tendem a substituir grande parte das impressas. E aqui entra o papel do editor. Um bom editor é aquele que sabe explorar as potencialidades gráficas a tal ponto que o livro em papel tenha um diferencial notável em relação ao eletrônico. Cito como um exemplo: os dois volumes idealizados pelo Plínio e publicados pela Edusp, sob o título “A Erótica Japonesa na Pintura e na Escritura dos Séculos XVII a XIX”. Esse, que conheci em manuscrito, era uma tese de livre-docência. Entre essa primeira versão e o que foi publicado, tudo mudou: o editor fez a diferença, e o que hoje temos é uma obra-prima editorial. Outro exemplo é a edição da “Divina Comédia”, com desenhos de Botticelli, publicada em conjunto pela Ateliê e Editora da Unicamp: um livro que é outra obra de arte, e que nunca seria possível em forma eletrônica, inclusive porque exige do leitor uma inversão do sentido da leitura, quando a narrativa atravessa o Inferno e começa a subir em direção ao Purgatório.
Mas mesmo quando a intervenção do editor não é tão decisiva, eu creio que, por enquanto, o livro em papel persiste. Porque ele ainda representa um filtro de qualidade: tudo pode ser publicado caseira ou industrialmente na forma eletrônica a custo relativamente baixo; mas se algo é publicado em papel, com custo alto, supõe-se que seja algo que tenha merecido o investimento. Esse é um papel fundamental das editoras: filtrar. Mas no caso das editoras universitárias, esse papel é ainda mais importante, porque para elas não é tão importante o filtro (digamos assim) constituído pela análise do investimento e da previsão de retorno, quanto o da qualidade. Isto é: uma editora acadêmica, ao publicar um livro, direta ou indiretamente chancela a sua qualidade e a sua relevância para um dado campo do saber. Mesmo que ele não dê retorno financeiro.
Entretanto, a longo prazo, creio que o livro digital irá substituindo gradativamente a maior parte dos livros impressos, especialmente os de caráter mais técnico, numa ponta, e os de pura diversão, na outra.

  
15) Como é editar livros numa editora universitária, num ambiente claramente competitivo, mas diferente do que ocorre com editoras comerciais?

Não creio que o ambiente das editoras universitárias seja claramente competitivo. Há muita emulação. Nesse sentido, a Edusp era o padrão: a barra sobre qual todos queriam poder saltar. Mas a ABEU, por exemplo, é um órgão destinado a promover a cooperação e parceria, inclusive no que toca à comercialização dos livros. Nem sempre conseguiu, porém, fugir às questões de instrumentalização política. Por isso mesmo, a Edusp, a editora da UEL, a da UFMG e a da Unicamp tentaram, em tempos, criar a Liga de Editoras Universitárias – destinada exclusivamente a promover a parceria, cooperação e comercialização dos livros acadêmicos. De modo geral, porém, o ambiente me pareceu sempre muito mais cooperativo do que competitivo.
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*Ulisses Cappozoli está redigindo uma biografia de Plínio Martins Filho, ex-diretor da Edusp e editor da Ateliê Editorial. Pediu-me, como subsídio ao seu trabalho, que contasse um pouco da história comum: que lhe falasse do período em que trabalhamos juntos como autor e editor, e do tempo em que trabalhamos lado a lado como editores - ele na Edusp e eu na Editora da Unicamp. Para isso, enviou-me uma série de questões, que respondi rapidamente, porque o trabalho está em andamento. Entretanto, a entrevista não será publicada: foi solicitada apenas como material de base, que o autor incluirá da forma que couber melhor na sequência narrativa, combinado a outras entrevistas e depoimentos. Sendo assim, pensei que valeria talvez a pena publicá-la na íntegra. Principalmente porque, imagino, aquela parte mais propriamente pessoal - que não se evita ao escrever de impulso - não tem como ser aproveitada: digo, o tom, a afetividade na confissão da dívida.


quinta-feira, 21 de maio de 2020

Conversa sobre o poema "Profundamente", de Manuel Bandeira


Um poema e uma leitura

Acabo de ouvir a leitura que Alcides Villaça fez do poema “Profundamente”, de Manuel Bandeira. Desde quando fui seu aluno, admiro a sua sensibilidade e forma de ler e de comentar. Naquele tempo, éramos dois jovens, em 1976. Hoje somos dois velhos, mas continuo ouvindo e aprendendo.
E, como sempre fizemos, animado pela leitura, gostaria de conversar sobre ela e sobre o poema a que se dedicou.
Ouvi com muito interesse a narrativa das duas leituras, a primeira, entendendo o “ontem” como se referindo a um tempo passado distante, explicitado na segunda seção do poema; e a segunda – a partir de uma observação “ingênua” de uma aluna – entendendo o “ontem” como o dia imediatamente anterior ao “hoje”.
Creio que a primeira se devia à longa habitação da poesia de Bandeira por Alcides: para uma pessoa como ele, que tanto leu, viveu e ensinou essa poesia, creio que o poema já não “aparece” à leitura de forma sequenciada. Ele termina por ser como um ideograma: um conjunto de traços com um sentido, ou com sentidos concorrentes, mas sempre unidos, como num feixe. E creio que essa primeira leitura de fato só se sustenta como re-leitura – independentemente dos dados factuais, como o fato de existirem ou não existirem bondes no tempo em que Bandeira vivia em Recife.
Digo isso porque, para mim, essa leitura nunca tinha ocorrido. E porque, ainda um pouco distante, não me esquece aquilo que seria, por assim dizer, a fenomenologia da leitura do poema.
Quero dizer: quando se lê pela primeira vez, quando o poema “surge” para nós, o sentido literal se impõe: ontem é o dia anterior. No máximo, qualquer um dos dias anteriores, o passado. Mas numa frase como “quando ontem adormeci, na noite de São João”, a determinação temporal objetiva parece clara. O poeta fala no dia seguinte à noite de São João.
Essa leitura parece confirmar-se (ou ao menos manter-se indisputada), na sequência: acordei no meio da noite, ouvi o ruído de um bonde, vi os balões que passavam e me perguntei onde estavam todos.

Na versão manuscrita desse poema, os versos que vão de “No meio da noite despertei” até “Profundamente” aparecem reentrados, isto é, alinhados alguns espaços mais para a direita do que os anteriores e os posteriores.

Na edição em livro, o poeta desfez essa espacialização e alinhou todos os versos à esquerda.
O que isso sugere? Ou melhor: o que a primeira distribuição espacial destacava? Destacava o paralelismo entre as duas primeiras estrofes de cada parte: Quando ontem adormeci / Quando eu tinha seis anos. Alinhados, a relação ficava clara num bater de olhos. Mas o poeta eliminou o recurso.
Ao fazê-lo, retirando o destaque, como que adiou ou deixou de enfatizar o paralelismo. A leitura por assim dizer “denotativa” corre solta até o último verso dessa primeira parte. Lê-se ali o acordar solitário de um homem no meio da noite e a sensação principal, destacada pela anotação sobre o ruído do bonde, é a de solidão. Nada se ouve: o balão passa silenciosamente, não há vozes nem risos. E a imagem em que comparece o bonde acentua o silêncio. O ruído do bonde corta o silêncio como um túnel. Como bem descreveu Alcides, um túnel corta uma montanha, uma massa de pedra. O silêncio, assim, é maciço, palpável, cortável, quase algo físico.

Do meu ponto de vista, o primeiro estranhamento ou sobressalto da leitura vem do último verso da primeira parte. Ele se reduz à palavra que intitula o poema. Um advérbio em -mente, como o que qualifica o passar dos balões: silenciosamente, profundamente.

O estranhamento a que me refiro é que, na leitura factual, de repente fica estranha a afirmação de que todos dormem profundamente. Digamos assim: até a última estrofe, que constitui a resposta à pergunta que encerra a antecedente, todo o narrado se conformava com a experiência pessoal e subjetiva do poeta. O que ele ouvira até adormecer, o que vira e ouvira ao acordar no meio da noite. Já a afirmação de que todos dormem não é do mesmo tipo. Os que brincavam e riam podem estar no bonde, podem estar acordados como o poeta em silêncio, podem dormir sobressaltadamente... 
Assim, a mudança do ponto de vista, ou do alcance da visão objetiva que caracterizava o poema até esse ponto, mais a ocorrência da palavra que dá título ao poema, insinuam uma leitura outra, figurada, embora o registro denotativo (“plano”, digamos assim) ainda possa se manter.

Na sequência, em paralelo, o poeta começa a evocar outro tempo: o sono da criança antes do fim da festa, que equivale ao sono do poeta durante a festa, mas é contrariedade, enquanto o dele é conformação – ele adormece sem se incomodar com o barulho festivo, e parece mais sensível ao silêncio que se sucedeu. 

(Um parêntese: vale a pena observar aqui que ao mesmo tempo em que elimina a disposição gráfica que acentua o paralelismo, o poeta interfere em outro nível para o reforçar: substituindo o verbo “dormir” por “adormecer” – muito mais suave, como bem observou Alcides, mas curiosamente usado apenas na segunda versão, pois na primeira usar o “dormir” para referir a ação no tempo dos seis anos, pois a criança cansada dorme, não adormece. E o acerto, a eficácia dessa substituição se evidencia no comentário de Alcides, que radica na utilização da mesma palavra a possibilidade de coincidência temporal ou a retroação do sentido da segunda para a primeira parte).

Retomando o fio da leitura: o paralelo que se dá entre as estrofes que abrem as duas partes agora é claro: dá-se entre as vozes e cantigas do passado imediato, que não são ouvidas no meio da noite pelo poeta, e as vozes que habitavam a infância, “as vozes daquele tempo”. E então, depois de nomear as pessoas desaparecidas e por elas perguntar, surge o termo comum, decisivo para a manifestação da tonalidade do poema: dormem profundamente.

É nesse momento, creio, que se dá o processo de retroação, já insinuado desde o primeiro paralelo. A palavra “profundamente”, na sua terceira ocorrência, faz do despertar no meio da noite uma experiência de perda, uma indagação pelo desaparecimento do passado. Mais que isso: uma pergunta formulada num quadro de impermanência e vacuidade – todos dormem profundamente, e no céu flutuam sem rumo os balões para ninguém ver, no silêncio raramente cortado. Ou seja: o paralelismo das duas estrofes finais de cada parte projeta sobre a primeira a ideia de aniquilação do passado e das “vozes, cantigas e risos ao pé das fogueiras acesas”. Essas mesmas, vozes, cantigas e risos desse momento em diante e para sempre relidas não mais apenas como registros de fato, mas como figuras das alegrias passageiras.

Voltando à leitura de Alcides, creio que foi essa percepção que o fez, num primeiro momento, segundo conta, ler no poema desde o começo o seu efeito total. O que me parece mais interessante na sua segunda leitura é que ela não elimina desde o começo aquilo mesmo que constitui o ato de leitura de um poema: a construção gradual do sentido, pela impregnação dos sons e imagens, até que, uma vez cumprido o percurso, o todo se torne como que uma só palavra. 

A questão pode parecer menor, uma vez que chegamos ao mesmo ponto. Mas a mim parece que há uma diferença entre tentar entender e mostrar a forma como o poema se constrói no leitor, pela sucessão do som e do sentido das partes, até que o conjunto de repente surja redimensionado e todas as partes se ressignifiquem mutuamente, e lê-lo de uma maneira, digamos, teleológica – isto é, como se desde o começo estivesse presente, na consciência do leitor (ou fosse a ele de alguma forma acessível) a interpretação só propiciada pelo fim.

Já quanto ao poema em si, na sua construção sonora, chamou-me a atenção a forma rítmica das passagens paralelísticas, porque creio que ela também produz sentido, também nos diz alguma coisa.

Por exemplo, na primeira estrofe é notável a nenhuma regularidade métrica. Temos ali versos de 7, 6, 8, 11, 7 e 8. A única sucessão de ritmos iguais se dá no verso de 11 sílabas, que é um decassílabo da velha medida, formado por dois versos de 5, com cesura.
Já na primeira da segunda parte, o trabalho do poeta foi na mesma direção, porém de um modo muito significativo. De fato, no manuscrito lemos:

Quando eu tinha seis anos
Não vi o fim da festa de S. João
Porque dormi.

O que temos aqui é uma sequência composta por um decassílabo e dois seus quebrados: 6, 10, 4. O decassílabo funciona como momento de equilíbrio entre os quebrados, pois pode decompor-se em 4+6 ou 6+4 sílabas, pois tem tônicas na quarta e na sexta posição. Apesar da polimetria é, portanto, uma estrofe harmônica.

Na versão final, a estrofe ficou assim:

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.

Bandeira, mais do que qualquer outro poeta modernista, mostrou-se um grande conhecedor da métrica tradicional, envolvendo-se inclusive em longa polêmica sobre o assunto. E basta ler, além de seus textos de reflexão sobre o verso, o "Itinerário de Pasárgada" para constatar a sua perícia e atenção minuciosa aos jogos sonoros significativos.

Nesta nova estrofe, a leitura percebe um verso de seis sílabas, seguido de um de 12, que não é um alexandrino clássico, pois não tem cesura. É antes um verso de 12 sílabas composto de dois de 6, sendo o primeiro segmento terminado em paroxítona. Assim, o ritmo se impõe, e visualmente o verso breve que encerra sugere que ali também se encontraria o mesmo padrão. Mas isso não ocorre. Pelo contrário, dentro do padrão estabelecido pelos anteriores, trata-se de um verso truncado: 5 sílabas, terminado em oxítona. Seja qual for o valor que se dê a essa dissonância, ela é clara e parece ter sido o objetivo da alteração. Porque a simples manutenção da forma original (“porque dormi”), em número par de sílabas, seria menos dissonante.

Já nas estrofes que encerram as duas partes, a alteração é mínima: os verbos passam do imperfeito para o presente. O efeito de sentido semântico é claro. Na primeira estrofe, “estavam”, um verbo conjugado no passado a partir do presente imediato, indica uma ação que não é terminal. Estavam dormindo, quando acordei no meio da noite. É isso que se diz. Nada se diz sobre se continuam dormindo e no contexto é de supor que não. Já na última o tempo presente do verbo obriga à atualização do sono como conhecida metáfora da morte. O sentido aqui é tão evidente que quase dispensaria o comentário, não fosse pelo fato de que o imperfeito tem uma sílaba a mais que o perfeito. E isso produz um efeito de sentido que vale a pena comentar.

No autógrafo, a última estrofe da primeira parte era assim:

Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados dormindo
Profundamente

E, como já foi dito, essa estrofe estava no trecho reentrado (deslocado para a direita). Na versão em livro, quando o poeta eliminou esse recurso, evidenciou-se não só o paralelo da primeira estrofe de cada parte (como parecia ser o objetivo da disposição), mas também o da última. E por isso talvez essa estrofe ficou sendo:

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Se lermos de modo “normal” esses versos, temos 3 segmentos de sete sílabas, pois “dormindo profundamente” é um perfeito verso de redondilha maior. Já na primeira versão, como a palavra “dormindo” ocupava o final do verso, repetindo a do verso anterior, a leitura corrente dificultaria a formação do sintagma “dormindo profundamente”, porque se teria antes imposto a leitura “estavam todos deitados dormindo”. E assim a palavra “profundamente” ficaria isolada após uma pausa.

Com essa disposição, além da possibilidade de recompor o verso de 7 sílabas e assim dotar o trecho de maior regularidade, isto é, pacificação rítmica, o paralelo visual com a última estrofe fica perfeito.
Vejamos agora a última.

- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Do ponto de vista métrico, esta é mais complexa do que a outra. Com os verbos no presente, temos 2 versos de seis sílabas, seguidos por um de 2 e um de 4. Mas a leitura que, na primeira, produz a regularidade métrica, aqui a destrói, pois, com se viu, “dormindo profundamente” tem 7 sílabas e o conjunto seria, portanto, assim: 6 6 7.

A única forma de obter equilíbrio rítmico aqui, nos moldes da versificação tradicional, é forçar a pausa depois de “dormindo”, pois assim a estrofe teria: 6 6 2 4. Isto é, dois hexassílabos e dois quebrados dele.

O efeito de sentido dessa leitura seria algo como destacar a última palavra, que é justamente a que dá título ao poema e concentra a sua carga emocional. A estrofe perde em velocidade. A última palavra fica mais “pesada”. Diria mesmo que mais lentamente pronunciada. Fato que parece ter sido algo almejado pelo poeta, que no manuscrito a grafou de uma maneira muito especial, espalhando-a graficamente, separando as suas sílabas, como se a quisesse alongar.

Na versão escrita, com o reforço do paralelismo, por meio da eliminação do recurso da indentação de parte do poema, e pela inserção de um travessão a iniciar cada uma dessas estrofes de resposta ao ubi sunt, o ritmo fez o que era preciso para que a palavra-título tivesse o peso que o poeta nela queria pôr.

E com estas observações pontuais, que não visam senão retomar o saudoso diálogo, rendo aqui a minha homenagem ao admirável leitor de poesia, com quem tenho podido aprender sempre ao longo de todos estes anos.
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Nota 1: os autógrafos reproduzidos estão no volume Manuel Bandeira. Libertinagem / Estrela da Vida inteira. Edição crítica de Giulia Lanciani. Madrid: ALLCA XX, 1998, p. 359-360.
Nota 2: a vídeo com a leitura de Alcides está aqui: 
https://www.facebook.com/alcides.villaca/videos/3029136863833168/?__tn__=%2CdK-R-R&eid=ARCCxPUphC1MIQC9NHbBVkitrPzEeFtoNq4FIF4rlBnpTkMoyN7teM5AkCRgS_K8gKRvx4smNO_mfJT7&fref=mentions





quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Arguição: regionalismo e outras fronteiras

No dia 07 de agosto de 2019, teve lugar a arguição dos trabalhos apresentados em concurso de livre-docência pelo Prof. Luiz Gonzaga Marchezan, na Unesp de Araraquara.
Tratava-se de um conjunto notável de trabalhos publicados após o seu doutoramento. Uma seleção dos textos que ele julgou mais representativos. Um material que demonstrava, na produção escrita, as mesmas notáveis qualidades das outras áreas de atuação do docente.
Foi um bom momento, celebrando uma carreira plena.
Na ocasião, para arguir o vasto material apresentado, escolhi uma questão pequena, mas que me interessou desde o início da leitura.
Como as considerações pareceram interessantes a algumas pessoas presentes, prometi colocar o texto neste blog. E é o que faço agora.

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Arguição de Sobre a prosa de ficção brasileira: coletânea comentada, de Luiz Gonzaga Marchezan

Foi com muito prazer que li os ensaios recolhidos e apresentados a esta banca. E foi com maior prazer que percorri as páginas iniciais, nas quais você descreve os critérios de escolha e ordenação deles, bem como faz uma apresentação de cada um e da ligação entre eles.
Creio que esse formato de livre-docência é francamente superior ao antigo. Há algum tempo, de fato, o material apresentado era uma tese. Eu mesmo, quando me preparava para o meu exame, dediquei-me a fazer uma tese. Entretanto, quando resolvi inscrever-me, a legislação tinha mudado e permitia-se, na Unicamp, apresentar, em vez da tese, um conjunto significativo de trabalhos produzidos após o doutoramento.
Como já tinha escrito a tese, apresentei-a. Mas não deixei de apresentar a exame outro material: um conjunto de artigos, como você faz, porque me parecia muito mais importante, para definir o perfil do livre-docente, considerar a sua produção ao longo do tempo, bem como a vinculação daquela produção com as atividades de ensino.
Foi, portanto, com grande satisfação que fui percorrendo o texto de apresentação e saltando dele para cada um dos ensaios que ele resumia ou comentava, porque assim pude acompanhar o desenvolvimento das suas inquietações e os resultados do seu trabalho em várias frentes.
E vi que estamos frente a um perfil notável de pesquisador e professor, que se apresenta a nós de corpo inteiro. Digo isso porque não temos aqui um conjunto de artigos amarrados à volta de um tema. Pelo contrário, o volume é dividido em duas partes bem distintas, a segunda das quais refletindo as inflexões contemporâneas do seu interesse e pensamento, que já vão longe das que deram origem à parte maior do trabalho.

Ao preparar esta fala, pensei em começar pelo assunto que melhor conheço. No caso, o artigo sobre Dom Casmurro, no qual você faz algo notável, que foi praticamente ignorar a leitura de Roberto Schwarz, o “paradigma do pé atrás”. De fato, ao ler o texto percebo que você faz um esforço de analisar o romance fora desse paradigma e fora dos esquemas e propostas de leitura que a ele se contrapõem. Haveria várias considerações a fazer sobre a sua aproximação a esse romance e creio que eu me sentiria mais seguro do que vou me sentir, seguindo o rumo que escolhi.
Mas a verdade é que um exame como este não é em nada parecido com um exame de doutoramento. Aqui não se trata de arguir topicamente uma tese ou um conjunto de trabalhos, mas de compreender e avaliar um percurso intelectual, pesar os frutos de uma carreira extensa, tanto no aspecto didático quanto no aspecto da produção de reflexões por escrito.
Por isso, para aproveitar o momento com um colega que seguramente sabe mais do que eu num campo no qual sou insipiente, resolvi conversar sobre aquilo que menos conheço. 
Portanto, vamos falar de regionalismo. E as notas soltas que vou apresentar a seguir pretendem ser apenas isso mesmo: notas soltas que têm como expectativa maior propiciar aqui uma conversa sobre um tema importante para você, na qual eu possa aprender um pouco.

Dito isso, vamos lá.

Logo no início da sua apresentação, na página 12, você traz esta consideração: “a consolidação da literatura brasileira, a partir do Romantismo, apresenta-nos duas tendências, duas temáticas, situadas em espaços regional e urbano”. É um ponto de partida, um traçado que acompanhará as reflexões posteriores, porque você vai pensar o regionalismo como tendência e como temática, ao longo de um eixo temporal. Ou seja, como uma tradição.

            E creio que um ponto importante da sua visada é a asserção de Antonio Candido de que “um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores”, p. 11

Uma parte muito interessante do seu trabalho – e em volume creio que é a mais extensa no conjunto de textos apresentado a exame – é aquela na qual você trabalha “a memória que a literatura tem de si mesma”, ou seja, na definição de Samoyaut, a intertextualidade. (P. 10)

E considerando a perspectiva adotada a partir da referência a Candido, seu trabalho sobre o tema se desenvolve de modo a demonstrar, naquilo que poderia ser visto como uma linha por assim dizer mais nacional (a literatura em espaço regional), a dinâmica da superação da dependência.

Na delimitação do corpus para o estudo dessa questão, assim, você delimita um terreno que denomina de regionalismo. Não vou agora tratar do modo intertextual que você identifica como predominante, que é a paródia. Interessa-me conversar um pouco sobre o conceito de “regionalismo” e sobre a sua operacionalidade e aproveitamento na sua reflexão.

Nesse sentido, em primeiro lugar eu queria observar que na sua descrição das temáticas predominantes na formação da literatura brasileira não comparece com força definidora a oposição urbano/rural, que talvez fosse a mais elementar. De fato, essa oposição clássica é substituída, desde a formulação inicial, pela dicotomia urbano/ regional. O que me fez começar a refletir sobre o alcance dessa palavra, regionalismo, na trama dos conceitos do seu trabalho.

Isso porque Os corumbas, assim como Moleque Ricardoe principalmente Capitães de Areia são, digamos, urbanos pelo espaço em que decorre a ação. Mas frequentemente se enquadram nas descrições críticas na categoria “regionalismo”.
O termo, portanto, me despertou a atenção. Exigiu reflexão. E foi o que me propus a fazer: pensar sobre ele, a partir do uso que vejo no seu trabalho, como forma de dialogar com você.


Lendo o que escreveu na página 17 sobre José Candido de Carvalho (“o regionalismo do escritor segue a modernidade da linhagem modernista, voltado para o tempo presente e para a tradição do regionalismo nacional”), percebo que um ponto realmente importante para a sua reflexão é a existência de uma tradição no regionalismo. 

Nesse primeiro texto, você afirma que, “o espaço típico, regional, nos dois romances (Fogo MortoO coronel e o lobisomem), constitui a base do discurso interpretativo da enunciação.” E que “há ... nos dois romances, uma relação íntima entre as ações das personagens e os espaços ocupados por elas”.

Enquanto lia esse trabalho, lembrei-me da discussão feita por Luis Costa Lima (em A literatura no Brasil) sobre o conceito de regionalismo. E lá fui conferir.
Em certo ponto, ele diz: “uma obra é regionalista enquanto a realidade literária se inspire e se ampare em um plano físico e social determinados, que aparece como a sua contraface” – p. 363. Essa definição não conduz a uma valoração exatamente positiva do termo regionalismo, para Costa Lima. Tanto assim que ele vai concluir que os defeitos da obra da Lins do Rego (que ele vê justamente na desarticulação entre a natureza e o homem, que termina por impossibilitar a unidade global da obra) vão fazer dele, de fato, um autor regionalista.

Não é essa, evidentemente, a sua percepção do que seja o regionalismo. Muito menos é esse caráter valorativo que a palavra tem nos seus ensaios. 

E é claro que há um uso do termo regional que está consagrado e se encontra, por exemplo, no trecho de carta de Graciliano que você transcreve na p. 216: “trabalho numa série de contos regionais”. 

Mas uma coisa que eu gostaria de entender melhor é o alcance de postulação referida: a de que o espaço típico constitui a base do discurso interpretativo da enunciação. Porque justamente um ponto interessante desse seu ensaio é a abordagem produtiva do “tema universal da loucura” nas personagens dos dois romances, do seu desajuste em relação à família tradicional e o que esse desajuste revela sobre a sua estrutura. E é só no final, por meio de duas citações, que aparecem duas questões que pareceriam centrais numa abordagem sobre o regionalismo: a de Antonio Olinto, que destaca o linguajar do brasileiro do Centro-Leste; e a de Carpeaux, que destaca em Fogo morto a problemática da decadência do patriarcalismo.

            Eu li com muito interesse a sua análise do espaço, da paisagem ficcional, dos topoiretomados de um romance a outro. E está claro na sua apresentação que esse é um ponto, em princípio, de grande interesse. Mas eu ainda gostaria de perseguir o conceito de regionalismo, antes de comentar alguma outra coisa.

            É que o mesmo Graciliano, que afirmava estar escrevendo contos regionais, na mesma carta diz: “quero ver se consigo fazer psicologia de bichos: cachorros, matutos, etc.” O que me fez perguntar a mim mesmo o que de regionalismo há na psicologia dos bichos. E porque os matutos aparecem aqui no mesmo nível dos cachorros. 
De fato, que regionalismo haveria na psicologia dos bichos? Quero dizer: a psicologia dos bichos, se houver alguma, deveria ser tudo menos regional. Por outro lado, quando diz “cachorros, matutos, etc”, há algo que se insinua nessa redução do humano ao nível do animal. E, principalmente, na distância que se estabelece entre o autor e o tema ou assunto. Nesse sentido, embora se possa fazer coincidir o “regional” com o determinado ou limitado, a ideia da “psicologia dos bichos” tenderia a situar o “regional” no âmbito realmente do externo, do ambiente. Ou seja, seria regional o bicho, ou o seu ambiente, não a sua psicologia.
            No entanto, em outra carta, que você transcreve na p. 217, lemos Graciliano definindo Vidas secascomo “um livrinho, sem paisagens, sem diálogos. E sem amor”. Portanto, se “Baleia” é um “conto regional” e integra um livro sem paisagens nem diálogos, então o regional não é nem a paisagem nem a linguagem. Da mesma forma, Paulo Honório nos diz (e você transcreve a frase na p 23), que escreveu São Bernardo omitindo a paisagem. No entanto, ambos os livros são regionalistas ou classificados como tal (e o próprio autor parecia aceitar a designação, a ponto de usá-la), o que me leva a pensar que “regional” ou “regionalista” são, em alguma medida, termos que estão acima da questão da paisagem ou da linguagem. Mas seria então a configuração num espaço determinado que responderia pela utilização dessas palavras?

            Na página 30, ao descrever Ponciano, você diz que “é personagem de uma história que conta em primeira e terceira pessoa suas sagas, de forma livre, fantástica e com traços regionalistas”.
            Nesse ponto, creio que os traços regionalistas mais importantes – a julgar pela transcrição dos trechos de Rachel de Queiroz e Bosi, na p. 33 – residam no esforço de “compor as vozes da cultura popular em acordes próprios do escritor culto”, ou, mais exatamente, nesse caso, de inventar uma linguagem que provenha da linguagem falada num determinado recorte regional.
            Mas, pensei, em que a linguagem de um Lins do Rego ou, principalmente, a de Graciliano, denota um recorte regional – a não ser no vocabulário típico? O torneio da frase não é, de modo vago, modernista – sem o experimentalismo de 22, em busca de uma espécie de língua literária padrão próxima do coloquial? Uma “língua franca literária”, como a chamou Luís Bueno (p. 62)?

            É certo que em O coronel e o lobisomem, como você frisa, temos um registro de paródia. E por isso a linguagem é mais marcadamente “regionalista” do que em Lins do Rego ou em Graciliano. Mas isso apenas revela, quanto a mim, a dificuldade ou as dificuldades de definir traços comuns a todas as obras que comumente podemos designar como “regionais” ou “regionalistas”.

            No prosseguimento da leitura do seu texto, deparei com uma passagem de Bernardo Élis que me pareceu intrigante. Diz ele: “como não podia deixar de ser, há ao longo da velha história do regionalismo brasileiro uma tradição que permanece, embora o contexto cultural se modifique, permanência que se reflete nos temas ficcionais. Um deles é a maneira de considerar os bichos, os animais domésticos, na descrição abundante e minuciosa de paisagens, vegetais e plantas.” (47)

            Esse de fato me parece um traço interessante, que daria conta de algo que me parece importante, embora eu não tenha muitos elementos para pensar nisso. E este é o sentido último desta intervenção: sugerir pontos de diálogo com você, que tem muito mais leitura do corpus regionalista e refletiu mais longamente sobre isso; dar uma contribuição talvez ao seu pensamento, a partir da minha exterioridade ao campo.

            Esse ponto é a ligação entre “regionalismo” e exotismo, no sentido amplo. Quero dizer: regionalismo e notícia daquilo que não está dentro do universo de referência. No caso, do universo de referência do leitor previsto.

            E para isso queria voltar a uma formulação sua que achei do maior interesse, mas que não vi, nestes textos, desenvolvida como eu gostaria de ter visto. 
            Trata-se do que escreveu na página 13: “Um autor, quando escreve, prevê um leitor plural, variado, geral, e também um leitor singular, distinto, um observador. Tanto um quanto outro veem-se constituídos como sujeito, alguém que percebe, entende, sabe, avalia, interpreta um texto, aceitando ou rejeitando seus argumentos e, até, sua fabulação. É alguém que lê nas características discursivas do texto algo presente a partir da sua materialidade, entre suas escolhas enunciativas. Assim, um texto, nas suas coerções discursivas, expõe tanto as imagens de um autor, como as de um leitor”.

            Achei essa formulação muito interessante, e creio que, a partir dela, seria possível refinar o conceito de regional e regionalismo, transcendendo a restrição ao tema ou a determinação pelo típico.

            Quero dizer, ou melhor, sugerir: não seria possível estabelecer também o grau de “regionalismo” de um texto a partir das imagens de autor e de leitor nele previstas e operantes? 
            Penso nisso porque “regionalismo” é um termo que se utiliza por oposição. Embora se possa falar, como Afrânio Coutinho, de 6 tipos de regiões culturais ou literárias e até de incluir como sub-região o Rio de Janeiro e sua zona suburbana (para ele, até a literatura de Machado poderia, nesse sentido, ser entendida como regional), o certo é que o senso comum no uso do termo trabalha na direção apontada por você, quando traça uma tipologia capaz de abarcar vários autores regionalistas, na p. 50. 
            Essa tipologia se define basicamente pela noção de distância: o regionalismo baseado no caipira, se define pela distância do cosmopolitismo da capital; enquanto o baseado no sertanejo, pela distância da civilização litorânea.
            
            O que me ocorreu é que esse distanciamento espacial implica também um distanciamento temporal – na medida em que o regional tende a aparecer não apenas como outro lugar, mas também como outro tempo. 
A isso eu queria voltar ainda.
            Mas primeiro queria registrar, para a nossa conversa, uma lembrança: a de uns apontamentos escritos por Victor Segalen, nos quais ele operacionaliza a noção de exotismo num âmbito muito mais amplo do que o usualmente circunscrito pela palavra.
            Para Segalen, o exotismo é a experiência do que está fora dos padrões usuais, do diferente. Ele subintitula seu livro (ou projeto de livro), “une esthétique du divers”. O diverso, a alteridade, portanto, é que define o exotismo. Para ele, há vários graus de exotismo, conforme uma escala de abstração na vivência da alteridade. O mais simples e comum é o geográfico, das paisagens cheias de surpresa. O mais complexo e elevado é o religioso, que consiste na percepção de Deus como transcendência, ou seja, exterioridade irredutível. Entre essas formas extremas, há gradações: exotismo da sexualidade, exotismo histórico etc.
            Assim compreendido, o exotismo é um ideal político e civilizacional, que tem como adversária uma forma mentis moderna, que sistematicamente combate a diversidade, seja pela extinção do diferente, seja pela sua redução e assimilação enquanto “pitoresco”. Ou seja, o exotismo é uma forma de resistência contra a imposição de um padrão único civilizacional, contra a homogeneização. Uma forma de tratar o “outro” como “outro”.Daí também a ojeriza de Segalen ao turista e ao amante do pitoresco, que ia ao ponto de ele denominar Pierre Loti “um proxeneta da sensação do diferente”.  Ou seja, o exotismo de Segalen nada tem a ver com o registro do pitoresco, que é seu inimigo.
                        
Por fim, ainda no âmbito do exotismo, isto é, da percepção e fruição da alteridade, lembro-me de que a relação com o “outro” foi o critério utilizado por Luís Bueno para estabelecer a tipologia do romance de 30. E foi essa centralidade da noção de outro o que lhe permitiu encontrar um mínimo denominador comum, por meio do qual ele pôde descrever a enorme diversidade da produção romanesca do decênio.
            
            E agora, voltando ao ponto: quando me dediquei a esse assunto a propósito de um autor português, vali-me da sugestão de Segalen de que o distanciamento no espaço é também um afastamento no tempo. Ou seja: quanto mais longe se vai do centro civilizacional, que era a Europa, mais se recua no tempo. Isso para o bem ou para o mal: em direção à barbárie ou em direção a uma idade de ouro. 
            Deslocar-se, assim, é buscar o passado.

            Todas essas questões e sugestões me ocorreram meio desordenadamente na leitura do seu trabalho, porque me pareceu que um ponto importante do conceito de regionalismo, tal como aparece na literatura brasileira, é a identificação do regional como correspondendo a um estado passado (não necessariamente ultrapassado, pelo contrário) da evolução nacional. Uma das metáforas centrais em certo ponto do seu trabalho, é a da árvore. E, nessa metáfora da árvore, a questão do enraizamento.
            O regionalismo, dentro de um projeto de construção da literatura nacional ou mesmo da nação, poderia ser visto com uma busca das raízes? Ir para a região, afastando-se da metrópole ou da civilização litorânea, é ir de alguma forma para o passado?
            
            Também me ocorreram essas perguntas a propósito da sua formulação sobre o leitor previsto pelo autor. A função-leitor. E me perguntei se não seria possível construir uma definição ou mesmo uma tipologia do regionalismo a partir do jogo das imagens autor/leitor existente nos textos.

            Por exemplo: qual a posição do autor e do leitor em relação à matéria ficcional de O Gaúcho ou de O tronco do Ipê, de Alencar? É muito diferente do que ocorre nos romances indianistas? Quero dizer: não se tem, nesses dois romances regionalistas de Alencar, um autor falando de um assunto que lhe é alheio (no sentido da vivência – ou seja, algo que nada tem de testemunhal ou que se estribe numa experiência direta, e quem nem mesmo pode reivindica-la) para um leitor disposto a ser informado de algo distante da sua própria experiência e contexto? Não é algo semelhante o que ocorre no romance indianista? E, nesse caso, seria demais falar em exotismo, mesmo no sentido menos abrangente da palavra?

            Por outro lado, o jogo entre autor e leitor previsto, nesses romances, não é profundamente diferente do que vemos em Machado? Ou mesmo no Alencar dos romances urbanos?
            Se for assim, não faz sentido falar, como Coutinho, que Machado pertence a uma região ou sub-região literária... O que nos leva a pensar que o conceito de “região literária” de Coutinho pouco ajuda no estabelecimento do conceito de “regionalismo” ou na propriedade de atribuir tal palavra para descrever esta ou aquela obra.

            Por outro lado, quando Lins do Rego ou Graciliano escreve, qual o jogo? Para quem eles escrevem? Que notícia dão?
            Luís Bueno conta a febre que houve de romance nordestino. Algo semelhante, em certo sentido, à gula que Eça de Queirós registrava na Inglaterra, no fim do XIX, por livros de viagens. O regionalismo seria, nesse sentido, em alguma medida, um “dar notícia” do diverso, do diferente, do atrasado ou do paraíso perdido aos leitores concentrados na corte ou nas grandes cidades do tempo?
            E seria possível (ou seria sem sentido?) hierarquizar os romances regionalistas conforme seu interesse no oferecimento do típico (da macumba pra turistas, para retomar a frase de Oswald) ou no esforço de manter o típico e o pitoresco subordinado ao interesse maior da coerência estética?

            Quando tentava pôr alguma ordem nessas ideias, lembrei-me de uma referência que não consegui achar. Creio que era uma consideração de Inglês de Sousa sobre que tipo de linguagem usar ao escrever sobre uma região afastada. O ponto era que usar a linguagem da região exigiria uma profusão de notas que seria insuportável para o leitor. Não estou seguro, porém, de que tenha sido Inglês de Sousa a defrontar-se com esse problema – que foi o problema com que se defrontou Alencar ao usar a sua linguagem índia, por sinal. 
Mas seja dele ou de outro escritor “regionalista”, é uma questão válida, que incide sobre o leitor previsto no romance regionalista – que poucas vezes me parece poder confundir-se com o leitor “regional”. Quero dizer: o romance regionalista se define como tal não apenas pelo assunto ou espaço ficcional, mas também pela destinação: por ser um discurso que não perde de vista o fato de que fala para um público que não compartilha a experiência regional.

            Nesse sentido, é de fato notável que em Lins do Rego ou em Graciliano – depois do Modernismo – já seja bem conseguida a tal língua franca literária, em que já não são necessárias notas de rodapé, nem se apresente a cada momento, de forma crua, a divisão linguística entre o autor que fala para um auditório não regional e as personagens que falam no confinamento regional.    

            Por fim, creio que há um outro sentido da palavra “regionalista” no seu trabalho. É quando você fala de José Candido de Carvalho e, principalmente, de Francisco Dantas. Aí o sentido da palavra não é o mesmo de quando é empregada para definir a literatura de Lins do Rego, por exemplo. Quando você diz, na p. 16, que eles “dão sequência ao regionalismo literário”, entendo que se trata aqui de uma reivindicação: eles reivindicam a tradição, atuam sobre ela, filiam-se a ela, favorecendo um modo de leitura.
            Nesse sentido, ganha relevo o que anota na página seguinte: “Carvalho se faz um cronista de um mundo superado, em desaparecimento, que se inicia, a partir da segunda metade do século XVII, com a lavoura de cana em Campos de Goytacazes, na Baixada Fluminense, seguida de engenhos a vapor, ao lado da pecuária”.
            Ora, não era Lins do Rego também um cronista de um mundo em desaparecimento? Qual a diferença? Por um lado, isso permite que a obra de Carvalho, seja lida como pertencente à tradição regionalista, que reivindica. Por outro lado, algo me faz pensar que a diferença reside na palavra “superado”, pois a paródia de Carvalho parece evocar um mundo que não é mais agônico, e sim morto ou reduzido à fantasmagoria. Ou ao domínio da farsa.
            Já o caso de Coivara da memóriatalvez permita uma leitura diferente, mas que não é o caso de tentar aqui. 
            Basta, por enquanto, que este texto faça o que se propôs fazer: apresentar uns pensamentos soltos de alguém que nunca se dedicou ao tema, mas que, por isso mesmo, possam talvez servir de gatilho a uma conversa.