terça-feira, 6 de outubro de 2020

Crítica literária - uma entrevista

 Uma entrevista sobre crítica literária:

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https://mundoescrito.com.br/critica-literaria-paulo-franchetti/?fbclid=IwAR2jjXqYRYcHn4VsM8qUZBX18kKwZSiq2mzm9HdbKEYdY-fQUI8nI3LkarQ




sexta-feira, 25 de setembro de 2020

A CLEPSYDRA de 1920


Uma questão recorrente nos debates sobre o livro dos poemas de Pessanha é a seguinte: por que João de Castro Osório não respeitou o número e a ordem dos poemas da Clepsydra publicada por sua mãe, Ana de Castro Osório, em 1920? Essa pergunta se aplica a todos os que não mantém o livro de 1920 preservado, separando-o do conjunto dos demais poemas que se foram encontrando do autor nos anos seguintes – e até os anos de 1960... É uma questão que me foi apresentada várias vezes.

Na edição que preparei em 1995, para a Relógio d’Água, nem havia lugar para tal questionamento, porque ali – como disse explicitamente na introdução – o que me interessava era anotar as variantes todas de todos os poemas e fragmentos, dispondo-os em mera ordem cronológica de conhecimento: ou seja, dispondo-os segundo a datação da primeira versão ou a primeira aparição impressa. É certo que fiz uma concessão. Ou melhor, duas: abri o conjunto com o poema que começa “Eu vi a luz” e o terminei com o que se inicia por “Ó cores virtuais”.  Isso significava que eu não desistia de marcar o desejo de Pessanha de organizar um livro, cujo projeto parecia perdido. De fato, num manuscrito que vi em casa de Carlos Amaro, o poema “Ó cores...” vinha com uma nota entre parênteses: “Última página de um livro em tempos delineado”; e o poema “Eu vi a luz” me pareceu de fato destinado a abrir o conjunto, pois não há dele outro registro além dos autógrafos de 1916, que o poeta deixou com Ana de Castro Osório para publicar. Ali, vinha ele abrindo o conjunto. E que Pessanha pensava num livro e autorizava Ana de Castro Osório a publicá-lo estava patente na dedicatória/procuração que encontrei colada à contracapa da primeira edição. Então fui levado a encontrar essa solução, que ficou meio ambígua, por mais que a explicasse.

Mas quanto à edição de 1920, fui bem claro, eu creio, pois a consulta aos autógrafos mostrava desde logo que as indicações de agrupamento e sequência de alguns sonetos não fora respeitada. E a lista dos poemas a reunir para o livro não os separava em sonetos e poesias.

Sucede ainda que sabemos que Pessanha ficara de enviar de Macau as versões definitivas dos poemas que anotara “de memória”, como ele mesmo registrou nos autógrafos, e nunca o fez.

A conclusão era fatal: primeiro, que Ana de Castro Osório, na boa intenção de preservar a obra do amigo, fez o que podia: ajuntou o que tinha em autógrafos ou em cópias de terceiros e ainda em publicações em jornais, e nos deu a Clepsydra; segundo que deu, ela mesma, a essa edição a sua contribuição, seja separando os poemas por forma (sonetos/não-sonetos), seja não criando os dípticos claramente indicados pelo poeta nos autógrafos que utilizou.

Seu filho, depois, deu continuidade ao que denominou “salvamento” da obra de Pessanha, acrescentando o que pôde encontrar em poder de terceiros ou no “Caderno” de Macau, revelado apenas no segundo pós-guerra – e tomando as liberdades que julgou legítimas, como rearranjar a ordem dos poemas, suprimir algum de uma edição a outra, atribuir títulos e, por fim, juntar fragmentos, reordená-los e dar-lhes um título, como se fossem um poema só – no caso “Roteiro da vida”.

Quanto à edição de 1920, Pessanha, em carta a Ana de Castro Osório, do ano seguinte, agradece a publicação e especialmente o cuidado da disposição e da ortografia. Mas o faz numa carta escrita com outro propósito, qual seja o de apresentar à amiga um companheiro de maçonaria que embarcava para Lisboa: “Mas não quero deixar de agradecer-lhe, penhoradíssimo etc...” – e isso foi tudo.

Eu já tinha repisado esses argumentos muitas vezes, por escrito ou oralmente. E me preparava para fazê-lo mais uma vez, já que faria uma conferência num colóquio na Sociedade de Geografia de Lisboa e ali certamente estariam alguns defensores do respeito à edição de 1920.

Fui dormir, na véspera, pensando em como apresentar de modo novo os mesmos argumentos. Isto é: que a Clepsydra de 1920 não era uma edição de autor, era antes uma coletânea, organizada por uma pessoa com a qual Pessanha tinha uma forte relação afetiva etc. Mas não fui muito longe na elaboração da estratégia e adormeci.

Foi então que, quase ao raiar do dia, sonhei. No sonho, passavam na frente dos meus olhos algumas capas de livros. E depois a da Clepsydra de 1920. Quando acordei, imediatamente vi o que me queria dizer. E me lembrei ainda de uma outra capa, que logo fui conferir, porque tinha faltado no sonho.

São as que seguem. E o que elas me disseram é que, na época de Pessanha, a assinatura vinha no alto da capa. E, no centro, o nome da obra. Com exceção de duas, dentre as sonhadas: a de O livro de Cesario Verde e a de Clepsydra – poêmas de Camillo Pessanha. E então me lembrei do livro de Antero e fui em busca da imagem no Google.

O que o sonho me mostrou foi algo que eu deveria ter visto desde o começo: falta a assinatura de Pessanha, visualmente, na capa da edição de 1920. Como falta na poesia coligida de Cesário. O livro que procurei depois foi o dos sonetos de Antero, organizados por Oliveira Martins. 

E procurei porque me lembrei de que quando Oliveira Martins os publicou, compondo a biografia espiritual do amigo por meio das fases evolutivas, o livro não era mais Sonetos, com o nome do autor no alto da capa, mas sim Os sonetos completos de Anthero de Quental, com a menção em letras menores: “publicados por J. P. de Oliveira Martins”.

Era esse o caso tanto de Cesário, quanto de Pessanha. Se Cesário tivesse ele mesmo publicado seu livro, era provável que víssemos, no alto da página, seu nome; e no centro algo como Canto Meridionais. O mesmo com Pessanha e sua Clepsydra.

Silva Pinto e Ana de Castro Osório poderiam ter anotado, como fez Oliveira Martins: “publicado/s por...”. Não o fizeram de modo explícito, certamente por modéstia. Mas tomaram o cuidado de não inserir no lugar devido a assinatura, o nome do autor, cuja poesia reuniam e publicavam para a posteridade, indicando assim a natureza do que ofereciam ao leitor.











segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Os poemas perdidos de Camilo Pessanha


        O que nos chegou da poesia de Camilo Pessanha resume-se a meia centena de poemas. O número exato não é tão simples de precisar. Por exemplo, João de Castro Osório, na última edição que fez da sua poesia, no volume intitulado Clepsidra e outros poemas de Camilo Pessanha, juntou 3 fragmentos escritos a lápis encontrados no Caderno de Macau a um outro, que lhe chegou não se sabe como, e com eles compôs um poema em três partes, intitulado “Roteiro da vida”. Não ficou mal, para dizer a verdade. Como os fragmentos não se juntavam perfeitamente, o resultado ficou muito moderno e impressivo.

Entretanto, o procedimento é complicado – para dizer o mínimo –, porque nada indica que os quatro textos que ele juntou fossem partes de um mesmo poema (a suposição nasceu do fato de virem a lápis) e porque, a formarem um poema, a ordem em que vinham no Caderno não era a mesma em que os dispôs Castro Osório. Na edição que fiz para a Relógio d’Água, achei que mais prudente oferecer aos leitores e editores futuros o que encontrei nos autógrafos do caderno de Macau.

Se contarmos “Roteiro da Vida” como um só poema em três partes, temos um total de 51 poemas (incluindo dois sonetos de intuito paródico, intitulados “A miragem” e “Transfiguração”). Se não aceitarmos que esses fragmentos possam ser considerados partes de um único poema, mas sim fragmentos ainda em composição, pois não foram passados a limpo, como era costume do poeta, o número cai para 50.

Mas afinal isso foi tudo que Pessanha escreveu, até o final da vida? Não, não foi. Há alguma coisa mais.

Em primeiro lugar, temos dois poemas de que restaram fragmentos na memória de terceiros: do próprio Castro Osório e de Carlos Amaro. Uma ode que começa por “ó Terra doce e boa” e um soneto cujo primeiro verso era “Um fio a desdobar, que não termina”.

Depois, temos um que começava por “Voa o comboio, correria doida”. Num postal que Alberto Osório de Castro enviou a Pessanha em 3 de abril de 1908, ele informa estar de posse do manuscrito. Mas depois não há mais notícia. São já três perdidos.

Numa carta que Pessanha enviou a Henrique Trindade Coelho em 9 de setembro de 1916, com os dois sonetos satíricos que conhecemos, ele diz: “Ainda fiz outros menos complicados – até com um travo agreste a século XV (talvez se chamem ‘Santa Comba’, ou  ‘Santa Ovaia’, porque ‘Santa Comba’ soa a chegada de comboio à estação”. A carta é importante não só por mencionar dois (ou mais) sonetos perdidos, mas também porque mais outra vez mostra como é pouco sustentável a lenda de que o poeta nada mais escrevera desde os primeiros anos de Macau, consumido por uma suposta abulia. Pois ele não só escrevia e revia, mas ainda fazia sátiras... Bom, mas agora já somamos no mínimo 5 (supondo que “outros” indique apenas mais dois).

Na carta que Pessoa escreve a Pessanha, pedindo colaboração para o número 3 de “Orpheu”, ele menciona dois sonetos sob o título “O Estilita”. Nunca se encontraram. Pessoa menciona ainda “Regresso ao lar”, que eu mesmo acreditei ser o soneto “Quem rasgou...”, mas que, como se verá, talvez não fosse, e sim outro. Sem constar, por enquanto, “Regresso ao lar” como perdido, temos agora já 6.

Um texto não assinado, publicado no “Diário de Lisboa” em 3 de março de 1926, por ocasião da morte do poeta, menciona como suas obras-primas, “Tatuagens”, “Volta ao lar”, e “Coimbra”.  Deste último nunca houve outra notícia. São já 7, portanto, os poemas perdidos.

João de Castro Osório, por fim, diz que Pessanha mencionara a existência de dois outros poemas de que não temos notícia: um segundo sobre o fonógrafo, e uma segunda parte do poema que começa “Voz débil que passas”. A conta agora já está em 9, no mínimo.

Isso era o que eu sabia até 1995. No entanto, quando a lista dos poemas a recolher para a “Clepsydra” descolou-se da contracapa onde vinha presa, revelou-se que, na frente do primeiro verso de alguns desses poemas vinha um sinal de +, indicando que ali se tratava de um díptico. E de fato, havia, nos autógrafos díptico bem marcados com indicação de sequência dos sonetos que começavam “Passou o outono já...”, “Desce em folhedos tenros...”, “Singra o navio...”. O problema é que também havia sinal de + na frente dos seguintes primeiros versos: “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho” e “Se andava no jardim”. Ora, o segundo de cada um desses nunca foi enviado por Pessanha, nem encontrado por ninguém. O segundo de “Quem poluiu...” talvez seja o “Regresso ao lar”, ou talvez não. Mas trata-se, sem dúvida, de mais um poema perdido, que com a sequência de “Se andava...” soma, com os anteriores, 11.

Sendo assim, o total dos poemas possivelmente perdidos é impressionante, proporcionalmente: são 11 poemas perdidos ou recuperados apenas em parte, contra 50 conservados. Ou seja, 20%. Para uma obra tão exígua, é um percentual muito alto...

Pessanha tradutor

Neste ano em que se comemoram os 100 anos da publicação em livro dos poemas de Camilo Pessanha, já está morto e sepultado um mito abstruso em que tantas boas mentes acreditaram: o do poeta sem escrita.

Como se sabe, isso começou – paradoxalmente – com quem o publicou em 1920. De fato, Ana de Castro Osório declarou textualmente, numa entrevista de 21 de abril de 1921, ao Diário de Lisboa, que “Camilo Pessanha nunca escreveu um só de seus versos. Compõe-nos nas suas horas de inspiração e guarda-os na memória. Só consente em dizê-los às pessoas de mais intimidade”.
É incrível que tal inverdade não tenha sido contestada. Várias pessoas possuíam autógrafos de Pessanha, que ele costumava distribuir, sempre anotando que eram transcritos “de memória”- o que significava que havia um documento escrito e fixado. Carlos Amaro, por exemplo. E Alberto Osório de Castro, irmão de Ana de Castro Osório, que num postal de 1908 dizia: “Trouxe o manuscrito dos seus versos” e listava um grande conjunto de poemas, inclusive um de que nunca mais se teve notícia. E quanto a dizer apenas a pessoas da maior intimidade, faz ainda menos sentido, pois Pessanha não se fazia de rogado para dizer seus versos – e basta a carta que Pessoa lhe enviou para comprovar que ele declamara versos para um jovem desconhecido já num primeiro encontro.
Não obstante, a bobagem foi aceita e muito repetida, até ser levada a sério por quase todo mundo, ou, pelo menos, não ser contestada por ninguém.
Por isso mesmo, quando, no começo de 1985, a revista Persona (número 10), publicou o “Caderno” de Camilo Pessanha, com manuscritos e anotações e muitas correções a manuscritos anteriores e mesmo a textos recortados de jornal, foi um choque. O melhor testemunho do choque foi um artigo de Alfredo Margarido, na Persona 11/12, intitulado justamente “Camilo Pessanha, poeta da escrita”.
Sobre o poeta sem escrita, um abúlico, porque fumava ópio, e portanto seria incapaz até mesmo de escrever e publicar a sua própria obra, escreveu muito bem Alfredo Margarido, na indignação da primeira hora, em 1985:
“Em síntese: a imagem de Pessanha tal como ela tem sido divulgada, reforçada pela enorme massa de tolices acrescentadas por João de Castro Osório não resiste à análise. É certo que Camilo Pessanha se drogava, mostrando-se um bom consumidor de ópio. Mas já alguém pensou em condenar as personalidades dos drogados ilustres da literatura europeia, de Coleridge a Thomas de Quincey, de Baudelaire a Henri Michaux? Não passaria pela cabeça de ninguém a ideia triste de acoimar de ‘abúlicos’ tais criadores, sendo a droga um elemento integrado à criação, como o era também a aguardente de Fernando Pessoa.”
Entretanto, outra lenda persiste. Essa porque ainda não se encontrou outro caderno – que talvez nunca se encontre, dada a incúria dos testamenteiros com o legado do poeta –, mas que foi visto por pelo menos duas pessoas, de cujo testemunho, nesse assunto, não se tem qualquer motivo sério para duvidar. E quanto a isto, Margarido não faz justiça a João de Castro Osório.
Trata-se da lenda de que Pessanha nunca aprendera chinês a ponto de traduzir daquela língua, e portanto não o fez – como se Pound tivesse aprendido chinês a fundo para traduzir o que traduziu...
Ainda hoje se repetem argumentos sem peso, todos baseados na suposta abulia do poeta. E não há nada que pareça convencer os descrentes contumazes nem mesmo a conceder ao poeta o benefício da sua dúvida – que ele, por sinal, orgulhoso como era, certamente desdenharia.
O fato, quanto a mim, é que temos 3 documentos escritos.
O primeiro, em importância, é um artigo que Carlos Amaro, amigo dileto do poeta, publicou quando da sua morte, na revista “Ilustração”. Em certo ponto, escreveu:
“Não é esta a hora da crítica serena à sua obra, demais tanta coisa anda dispersa, tantas composições só começadas, mas tendo, contudo, o bastante para valer bem a pena publicá-las, trabalhos sobre a língua, literatura e poesia chinesas – mais de sete mil páginas vi eu escritas em letra quase microscópica, da última vez que Camilo Pessanha esteve em Lisboa –...”
E João de Castro Osório, em 1969, no meio da massa de comentários a que se refere Margarido, declarou que Pessanha, ao regressar a Macau em 1916, esperava contar com algum auxílio oficial para que se copiassem e publicassem as numerosas traduções de literatura chinesa que ele tinha feito e recolhia num caderno. Caderno esse que Castro Osório examinou e por isso mesmo lamentava que não se tivesse feito “o completo acabamento e publicação, ao menos, das muitas obras que enchiam o volumoso caderno, que tive por algumas horas em meu poder, onde Camilo Pessanha juntara as suas traduções poéticas da literatura chinesa”. E acrescenta: “foi um verdadeiro crime contra a cultura portuguesa ter-se menosprezado o valor desta colaboração”. Um crime que, em certo sentido, se perpetua, ainda hoje, por aqueles que acham mais fácil desprezar dois testemunhos coincidentes, em nome da facilidade da acusação banal de “abulia”.
Por fim, basta ler com atenção a correspondência coligida por Daniel Pires e publicada em coedição pela Biblioteca Nacional e Editora da Unicamp. Lá se encontra, por exemplo, esta declaração de Pessanha a Carlos Amaro, numa carta de março de 1912:
“Em quase vinte anos de Macau, fui-me adaptando ao meio por um trabalho penível, embora em parte inconsciente, que me incapacitou para ser qualquer coisa fora daqui. São quase vinte anos de estudo, mais ou menos assíduo, da língua chinesa, dos costumes chineses, da arte chinesa. A língua principalmente desde que cheguei aqui a última vez, há três anos, tenho-a estudado brutalmente, - no furor de me absorver fosse no que fosse, para ver se conseguia distrair-me de tantas desgraças a que não posso dar remédio e que são a minha obsessão.”
De tudo o que lemos nessa e em outras cartas resulta um perfil atormentado, mas nada que se pareça com a figura do abúlico incapaz de escrita poética ou de aprendizado do chinês ou de tradutor dessa língua. Abúlicos, no sentido mais amplo, talvez sejam os críticos renitentes, na preguiça de enfrentar os lugares comuns desta lenda, como antes não enfrentaram da outra, a do poeta sem escrita.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Sobre Camilo Pessanha e a Clepsydra


Por ocasião do centenário da publicação, por Ana de Castro Osório, da Clepsydra, fiz algumas postagens no Facebook que talvez tenham interesse.

Disponho a seguir os links:


Uma entrevista sobre a Clepsydra

https://www.facebook.com/100000729574751/posts/3525848700782748/?d=n


Sobre as lendas

https://www.facebook.com/100000729574751/posts/3529451537089131/?d=n


O caso do poema Violoncelo

https://www.facebook.com/100000729574751/posts/3529493143751637/?d=n


Sobre fotos de Camilo Pessanha

https://www.facebook.com/100000729574751/posts/3529976873703264/?d=n


Sobre a angústia de decidir qual a lição de um soneto:

https://www.facebook.com/100000729574751/posts/3530032623697689/?d=n



sexta-feira, 5 de junho de 2020

Contributo à biografia de Plínio Martins Filho*

Entrevista a Ulisses Cappozoli


1)    Como e quando vocês se conheceram e que interação tiveram?

Conheci o Plínio por intermédio do Ivan Teixeira. Ivan dirigia uma coleção na Ateliê. Uma coleção que publica clássicos em língua portuguesa, em edições cuidadas, cheias de notas de apoio à leitura. Convidou-me para redigir uma apresentação do romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Isso deve ter sido na segunda metade da década de 1990. Talvez tenha estado com o Plínio antes, em alguma outra ocasião. Mas minha lembrança mais forte data desse momento. 
Ivan era uma pessoa muito absorvente, um intelectual notável, cheio de planos. Plínio tinha nele o parceiro ideal. Plínio é um homem tranquilo, que gosta de ouvir, que aprecia o conhecimento. Ivan e ele formavam um par fantástico e creio que as qualidades de ambos deram o tom da parte acadêmica da Ateliê: seriedade, firmeza, comprometimento, entusiasmo.
Do que me lembro, apreciei de imediato o ar modesto e gentil do Plínio, e seu real interesse nos livros e nas questões editoriais implicadas por uma coleção desse tipo, destinada a formar um fundo de catálogo dirigido à formação de leitores.


2)    Que contribuição mais específica ele deu para a editora da Unicamp. Em que estágio ela estava, quando começou a colaboração a que você se refere?

Quando assumi a direção da Editora em 2002, não havia praticamente nenhuma estrutura. Praticamente falida, com um catálogo problemático e funcionários sem treinamento, aquilo era um caos. Desde meu primeiro encontro com o Plínio, fui-me aproximando dele, por admiração e também porque comecei a me envolver com a coleção da Ateliê. Na sequência, por intermédio do Ivan, me aproximei da Edusp, tendo inclusive, por sua indicação, publicado lá minha tese de livre-docência.
Minha primeira ação, quando fui convidado para dirigir a Editora da Unicamp, foi, portanto, ligar para o Plínio e perguntar-lhe o que achava. Como ele me entusiasmasse, perguntei-lhe se poderia contar com ele. Essa era a condição para eu assumir.
E assim foi: fui a São Paulo várias vezes e especulei tudo o que podia. Depois, a cada passo, ligava para o Plínio, com ele discutia as estratégias. E pude apreciar uma qualidade do seu caráter: Plínio nunca é impositivo. Embora seja um dos maiores editores brasileiros, nunca disse algo como “faça assim...”, ou “o certo é...”. Sempre partia da sua experiência, sugeria, ouvia.
Além disso, pude contar com ele para qualificar o quadro funcional da Editora. Revisores, preparadores e administradores foram assistir aulas na ECA, estagiar na Edusp e puderam sempre recorrer à nossa irmã mais velha no sistema público paulista, para estabelecer rotinas e procedimentos.
Quando finalmente encontrei uma pessoa capaz de gerenciar todo o processo de produção, foi ainda o Plínio de grande valia para orientar os primeiros passos que fazíamos para ter uma estrutura técnica independente da direção acadêmica – o que, por sinal, valeu a sobrevivência da Editora da Unicamp, no período posterior, quando ela quase foi outra vez desmantelada.


3)    Que papel ele teve em termos de contribuição para o desenvolvimento de outras editoras universitárias?

Plínio nunca foi político nem fez proselitismo. Assim, sua contribuição se deu basicamente pelo exemplo e pelo acolhimento. O acolhimento sempre foi notável: qualquer professor levado pelas circunstâncias a assumir uma editora sempre teve nele um mestre disponível e um amigo para os desabafos. Foi assim comigo, como foi com o diretor da editora da UFPR e a diretora da UEL, entre vários outros.
No que toca ao exemplo, é público e notório que o trabalho do Plínio na Edusp estabeleceu um novo patamar para a edição universitária. Além da qualidade editorial propriamente dita, que é a mais alta possível, Plínio nos mostrou que construir uma identidade visual era necessário. Todos reconhecíamos de longe os livros da Edusp. E aquilo sempre foi uma inspiração para muitos: livros sóbrios, bem feitos, bem planejados, miolo e capa em harmonia, uso racional de logotipo, distribuição dos títulos em coleções consequentes. Sobretudo, mostrou que uma editora universitária não precisava ficar a dever, em qualidade e apresentação, a nenhuma editora privada. Pelo contrário, podia disputar, com as melhores, os prêmios todos, do conteúdo específico ao projeto gráfico.



4)    Plinio chegou à USP num contexto comparativamente incomum (não tinha mestrado nem doutorado). Como você interpreta essa condição. De alguma maneira ele rompeu um certo paradigma, no sentido de não ser um, digamos, “iniciado” do ponto de vista acadêmico?

Há dois Plínios, e só a cegueira institucional da USP é que não permite que sejam um só. Quero dizer: há o funcionário Plínio, lotado na Edusp; e há o professor Plínio, lotado na ECA, no curso de editoração. Ambos são um só, evidentemente, e se a USP fosse uma universidade menos engessada, teria ali um profissional raro em qualquer parte do mundo: um professor de notório saber, capaz de formar gerações e gerações de editores, e de gerir a maior e melhor editora universitária do Brasil.
Lembro-me sempre, quando penso nisso, no caso de Alexandre Eulálio. Foi meu colega no IEL. Um homem de saber incomum na área da literatura e da cultura, de modo geral. 
Alexandre não tinha título universitário. Por isso a Unicamp lhe conferiu um título de doutor por notório saber e o contratou como professor em tempo integral.
Já na USP, o que ocorreu? Exigiram do Plínio uma tese de doutoramento, que ele fez tardiamente, pois esse não era o seu perfil. A tese é um livro maravilhoso, o “Manual de Editoração”. Mas não é uma tese acadêmica. Ainda bem, porque é um trabalho diferenciado, que só um grande editor poderia ter feito.
O problema da USP é não compreender a grandeza de uma pessoa como ele. Por isso, relega-o a tempo parcial. De modo que sua atividade termina por ser restrita, seu enorme potencial termina por ser subaproveitado pela universidade.
E, por fim, há a mesquinharia dos jogos políticos: um dos maiores editores do Brasil foi afastado da direção da Editora que construiu, e substituído por pessoas que podem ter boa vontade, mas não formação ou experiência no mundo editorial. Pior: pessoas que, por conta da circunstância interna das mesquinharias político-acadêmicas, sequer se socorreram do saber do antecessor, nem trataram de se esforçar para corrigir o erro que foi a universidade tê-lo afastado da função que ele pode desempenhar como ninguém.
Quando ao fato de ele ter chegado sem doutoramento, só posso louvar a amplitude de visão de João Alexandre Barbosa. Este, sabendo-se sem condição de gerir uma editora (como eu também tinha consciência disso, e qualquer professor subitamente designado para tal função deve ter...), aceitou com a condição de ter ao seu lado o Plínio, que ele conhecia da Perspectiva. Foi graças ao João Alexandre que o Plínio veio para a USP. E graças a essa decisão, a Edusp se tornou o que ainda é hoje, apesar de serem já sensíveis os sinais de seu declínio como editora de ponta. O resto da história todos conhecem: num momento em que o país mergulha num crescente obscurantismo caipira e ressentido, Plínio é retirado da direção da Edusp e fica restrito a atividades de segunda importância. A rigor, fica confinado num espaço de todo indigno da sua formação e competência.

  
5)    As universidades brasileiras não têm certa resistência em aceitar o conhecimento, digamos vivido, prático, sem que esteja acompanhado de certa formalidade acadêmica?

Nós somos o país dos bacharéis. Como respondi acima, poucas vezes se vê um gesto como o da Unicamp, ao atribuir a um dos maiores intelectuais brasileiros um título de notório saber, que lhe permita trabalhar e orientar estudantes.
No geral, o carreirismo impera entre nós. Muitos gostam da formalidade vazia a ponto de inserirem em seus currículos o absurdo título de “pós-doutor em...”
Mas sobre isso falei na resposta anterior.
  

6)    Como você avalia uma experiência dessa natureza? Plinio teve algumas resistências (por exemplo, recusa em que monografia de mestrado pudesse ser transferida para doutorado, algo relativamente comum no meio acadêmico). Como interpretar esse ambiente?

Plínio foi um outsider numa universidade extremamente conservadora, engessada, que ainda vive das glórias do passado. Creio que muitos setores da USP nunca puderam assimilar a ideia de que a competência acadêmica pode ser adquirida na prática, no exercício consequente de uma atividade.
Sobretudo, o que julgo fundamental para entender o porquê de a USP ter aproveitado pouco o Plínio no trabalho acadêmico é que essa universidade, desde a publicação da famosa “lista dos improdutivos”, passou a considerar como produção (e a enfatizar desmesuradamente como produção) os papers acadêmicos. O lado formativo, que sempre foi a alma e razão de ser da universidade, ficou em segundo plano. O professor termina por ser inferior, do ponto de vista prático e de avaliação, ao “pesquisador” (seja lá o que isso queria dizer na área das humanidades). Plínio é, essencialmente, um formador, um professor. Não é um homem que publica artigos acadêmicos. Aliás, na sua área, no seu domínio específico que é a editoração, isso nem sequer é possível. De fato, pode-se falar muito sobre história do livro, circulação do livro, aspectos materiais da leitura etc. Mas sobre concepção e produção de livros, administração de editora, política de vendas, equilíbrio entre o Estado e o mercado na produção e venda de livros, que interesse têm artigos acadêmicos?
Ao restringir a avaliação do desempenho ao paper, a universidade dá provas de grande cegueira, e sacrifica o que sempre foi sua razão de ser: formar pessoas. Não é à toa que cada vez mais “dar aulas” é visto como perda de tempo pelas novas gerações de docentes que se entendem como pesquisadores em busca do próximo artigo a publicar em inglês...


7)    Em termos qualitativos e mesmo quantitativos, como você avalia a produção dele na Edusp?

Já falei sobre isso. Plínio foi a alma da Edusp. E por conta de seu trabalho e dedicação ela se tornou o que é. Ou foi.


8)    Qual ou quais as contribuições dele foram mais promissoras tanto para a Edusp quanto na parceria que tiveram em relação à Editora da Unicamp?

Também já falei sobre isso. A competência técnica, apoiada num grande amor ao livro e à leitura, foi sua contribuição principal. Nas parcerias com a Unicamp e outras, creio que sua contribuição principal foi sua vontade de ensinar e ajudar.


9)    Qual a situação, de modo geral, das editoras universitárias no Brasil e que perspectiva você enxerga para elas?

Sobre isso posso lhe enviar um artigo específico sobre editoras universitárias, que sairá em breve em volume. Mas, de modo geral, creio que atravessam um momento difícil. Não vejo possibilidade de que se repita o momento de esplendor, que se localiza mais exatamente entre a posse de João Alexandre e a substituição quase simultânea dos três diretores das mais atuantes editoras universitárias do Brasil: a da UFMG, a da UNESP e a da USP. O fato de todos, com longo tempo de direção, terem sido alijados num curto espaço de tempo, é um marco cronológico importante – e um sinal do fim de uma etapa.

10) Uma editora como a da Unicamp tem que diferenças, se comparada à Edusp ou outras editoras universitárias no Brasil?

Sobre a Editora da Unicamp tenho pouco a dizer. Assim como sobre as demais. Deixei a direção há 6 anos. Então o que eu pudesse dizer agora dependeria de me debruçar sobre o catálogo atual de cada uma, o que não fiz.


11) Plínio recusa a ver-se como um “intelectual”, ainda que faça um trabalho intelectual e tenha relacionamento estreito com uma comunidade intelectualizada. Como você entende essa recusa da parte dele?

Plínio não é um “intelectual” no sentido que essa palavra tem no estrito contexto universitário. Não é um homem de teorias, não é um produtor de artigos acadêmicos, não passa a vida a correr atrás de mais linhas para o seu Lattes, não fica exibindo indiretamente o currículo o tempo todo em conversas sociais. 
É um intelectual, porém, como muitas pessoas dentro e fora da universidade: é um grande leitor, um melômano, um apaixonado pela história do livro e da edição, que conhece como poucos. Mas eu entendo completamente que não queria se ver como “intelectual”. Eu mesmo não gosto dessa palavra se for aplicada a mim. Prefiro ser identificado como professor. Ele, como editor.

12) O que significa editar perto de 1.600 títulos em uma editora universitária?

Significa ter a competência de administrar o caos. E também a humildade de saber que em algum ponto se vai falhar, atrasar, escolher mal. Mas, sobretudo, significa que, depois de uma experiência como essa, e do sucesso comprovado, você é tudo menos uma peça dispensável. Significa – não me canso de repetir – que deixar uma pessoa com tal cabedal afastada do centro produtivo da universidade é uma demonstração de cegueira ou de mesquinharia indignas de uma grande universidade como a USP.
  

13) Qual o contexto, neste momento, das editoras universitárias em relação às comerciais?

As editoras universitárias estão enfrentando um grande desafio. Como as teses agora são todas públicas, na forma eletrônica, ou as editoras se tornam verdadeiramente editoras, no sentido de obrigar que uma tese seja submetida a uma radical edição para virar livro, ou então se resignam a produzir material de apoio: traduções, livros didáticos, manuais. Ou, pior ainda: a editora pode ceder à tentação de publicar apenas trabalhos de seus docentes e estudantes que não passaram pelo crivo de uma banca – e, dentre eles, justamente aqueles que outras editoras não têm interesse em publicar.
O caminho da concorrência com as editoras comerciais, pela abertura do catálogo a títulos não acadêmicos, por outro lado, parece-me perigoso. Não só porque aí não se justificaria manter uma editora universitária, mas principalmente porque as verbas públicas tendem a encolher, caso em que não há justificativa para empregá-las num lugar onde a iniciativa privada pode atuar. 
  

14) Qual sua visão em relação à perspectiva do livro impresso, em comparação à versão eletrônica?

As edições eletrônicas tendem a substituir grande parte das impressas. E aqui entra o papel do editor. Um bom editor é aquele que sabe explorar as potencialidades gráficas a tal ponto que o livro em papel tenha um diferencial notável em relação ao eletrônico. Cito como um exemplo: os dois volumes idealizados pelo Plínio e publicados pela Edusp, sob o título “A Erótica Japonesa na Pintura e na Escritura dos Séculos XVII a XIX”. Esse, que conheci em manuscrito, era uma tese de livre-docência. Entre essa primeira versão e o que foi publicado, tudo mudou: o editor fez a diferença, e o que hoje temos é uma obra-prima editorial. Outro exemplo é a edição da “Divina Comédia”, com desenhos de Botticelli, publicada em conjunto pela Ateliê e Editora da Unicamp: um livro que é outra obra de arte, e que nunca seria possível em forma eletrônica, inclusive porque exige do leitor uma inversão do sentido da leitura, quando a narrativa atravessa o Inferno e começa a subir em direção ao Purgatório.
Mas mesmo quando a intervenção do editor não é tão decisiva, eu creio que, por enquanto, o livro em papel persiste. Porque ele ainda representa um filtro de qualidade: tudo pode ser publicado caseira ou industrialmente na forma eletrônica a custo relativamente baixo; mas se algo é publicado em papel, com custo alto, supõe-se que seja algo que tenha merecido o investimento. Esse é um papel fundamental das editoras: filtrar. Mas no caso das editoras universitárias, esse papel é ainda mais importante, porque para elas não é tão importante o filtro (digamos assim) constituído pela análise do investimento e da previsão de retorno, quanto o da qualidade. Isto é: uma editora acadêmica, ao publicar um livro, direta ou indiretamente chancela a sua qualidade e a sua relevância para um dado campo do saber. Mesmo que ele não dê retorno financeiro.
Entretanto, a longo prazo, creio que o livro digital irá substituindo gradativamente a maior parte dos livros impressos, especialmente os de caráter mais técnico, numa ponta, e os de pura diversão, na outra.

  
15) Como é editar livros numa editora universitária, num ambiente claramente competitivo, mas diferente do que ocorre com editoras comerciais?

Não creio que o ambiente das editoras universitárias seja claramente competitivo. Há muita emulação. Nesse sentido, a Edusp era o padrão: a barra sobre qual todos queriam poder saltar. Mas a ABEU, por exemplo, é um órgão destinado a promover a cooperação e parceria, inclusive no que toca à comercialização dos livros. Nem sempre conseguiu, porém, fugir às questões de instrumentalização política. Por isso mesmo, a Edusp, a editora da UEL, a da UFMG e a da Unicamp tentaram, em tempos, criar a Liga de Editoras Universitárias – destinada exclusivamente a promover a parceria, cooperação e comercialização dos livros acadêmicos. De modo geral, porém, o ambiente me pareceu sempre muito mais cooperativo do que competitivo.
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*Ulisses Cappozoli está redigindo uma biografia de Plínio Martins Filho, ex-diretor da Edusp e editor da Ateliê Editorial. Pediu-me, como subsídio ao seu trabalho, que contasse um pouco da história comum: que lhe falasse do período em que trabalhamos juntos como autor e editor, e do tempo em que trabalhamos lado a lado como editores - ele na Edusp e eu na Editora da Unicamp. Para isso, enviou-me uma série de questões, que respondi rapidamente, porque o trabalho está em andamento. Entretanto, a entrevista não será publicada: foi solicitada apenas como material de base, que o autor incluirá da forma que couber melhor na sequência narrativa, combinado a outras entrevistas e depoimentos. Sendo assim, pensei que valeria talvez a pena publicá-la na íntegra. Principalmente porque, imagino, aquela parte mais propriamente pessoal - que não se evita ao escrever de impulso - não tem como ser aproveitada: digo, o tom, a afetividade na confissão da dívida.


quinta-feira, 21 de maio de 2020

Conversa sobre o poema "Profundamente", de Manuel Bandeira


Um poema e uma leitura

Acabo de ouvir a leitura que Alcides Villaça fez do poema “Profundamente”, de Manuel Bandeira. Desde quando fui seu aluno, admiro a sua sensibilidade e forma de ler e de comentar. Naquele tempo, éramos dois jovens, em 1976. Hoje somos dois velhos, mas continuo ouvindo e aprendendo.
E, como sempre fizemos, animado pela leitura, gostaria de conversar sobre ela e sobre o poema a que se dedicou.
Ouvi com muito interesse a narrativa das duas leituras, a primeira, entendendo o “ontem” como se referindo a um tempo passado distante, explicitado na segunda seção do poema; e a segunda – a partir de uma observação “ingênua” de uma aluna – entendendo o “ontem” como o dia imediatamente anterior ao “hoje”.
Creio que a primeira se devia à longa habitação da poesia de Bandeira por Alcides: para uma pessoa como ele, que tanto leu, viveu e ensinou essa poesia, creio que o poema já não “aparece” à leitura de forma sequenciada. Ele termina por ser como um ideograma: um conjunto de traços com um sentido, ou com sentidos concorrentes, mas sempre unidos, como num feixe. E creio que essa primeira leitura de fato só se sustenta como re-leitura – independentemente dos dados factuais, como o fato de existirem ou não existirem bondes no tempo em que Bandeira vivia em Recife.
Digo isso porque, para mim, essa leitura nunca tinha ocorrido. E porque, ainda um pouco distante, não me esquece aquilo que seria, por assim dizer, a fenomenologia da leitura do poema.
Quero dizer: quando se lê pela primeira vez, quando o poema “surge” para nós, o sentido literal se impõe: ontem é o dia anterior. No máximo, qualquer um dos dias anteriores, o passado. Mas numa frase como “quando ontem adormeci, na noite de São João”, a determinação temporal objetiva parece clara. O poeta fala no dia seguinte à noite de São João.
Essa leitura parece confirmar-se (ou ao menos manter-se indisputada), na sequência: acordei no meio da noite, ouvi o ruído de um bonde, vi os balões que passavam e me perguntei onde estavam todos.

Na versão manuscrita desse poema, os versos que vão de “No meio da noite despertei” até “Profundamente” aparecem reentrados, isto é, alinhados alguns espaços mais para a direita do que os anteriores e os posteriores.

Na edição em livro, o poeta desfez essa espacialização e alinhou todos os versos à esquerda.
O que isso sugere? Ou melhor: o que a primeira distribuição espacial destacava? Destacava o paralelismo entre as duas primeiras estrofes de cada parte: Quando ontem adormeci / Quando eu tinha seis anos. Alinhados, a relação ficava clara num bater de olhos. Mas o poeta eliminou o recurso.
Ao fazê-lo, retirando o destaque, como que adiou ou deixou de enfatizar o paralelismo. A leitura por assim dizer “denotativa” corre solta até o último verso dessa primeira parte. Lê-se ali o acordar solitário de um homem no meio da noite e a sensação principal, destacada pela anotação sobre o ruído do bonde, é a de solidão. Nada se ouve: o balão passa silenciosamente, não há vozes nem risos. E a imagem em que comparece o bonde acentua o silêncio. O ruído do bonde corta o silêncio como um túnel. Como bem descreveu Alcides, um túnel corta uma montanha, uma massa de pedra. O silêncio, assim, é maciço, palpável, cortável, quase algo físico.

Do meu ponto de vista, o primeiro estranhamento ou sobressalto da leitura vem do último verso da primeira parte. Ele se reduz à palavra que intitula o poema. Um advérbio em -mente, como o que qualifica o passar dos balões: silenciosamente, profundamente.

O estranhamento a que me refiro é que, na leitura factual, de repente fica estranha a afirmação de que todos dormem profundamente. Digamos assim: até a última estrofe, que constitui a resposta à pergunta que encerra a antecedente, todo o narrado se conformava com a experiência pessoal e subjetiva do poeta. O que ele ouvira até adormecer, o que vira e ouvira ao acordar no meio da noite. Já a afirmação de que todos dormem não é do mesmo tipo. Os que brincavam e riam podem estar no bonde, podem estar acordados como o poeta em silêncio, podem dormir sobressaltadamente... 
Assim, a mudança do ponto de vista, ou do alcance da visão objetiva que caracterizava o poema até esse ponto, mais a ocorrência da palavra que dá título ao poema, insinuam uma leitura outra, figurada, embora o registro denotativo (“plano”, digamos assim) ainda possa se manter.

Na sequência, em paralelo, o poeta começa a evocar outro tempo: o sono da criança antes do fim da festa, que equivale ao sono do poeta durante a festa, mas é contrariedade, enquanto o dele é conformação – ele adormece sem se incomodar com o barulho festivo, e parece mais sensível ao silêncio que se sucedeu. 

(Um parêntese: vale a pena observar aqui que ao mesmo tempo em que elimina a disposição gráfica que acentua o paralelismo, o poeta interfere em outro nível para o reforçar: substituindo o verbo “dormir” por “adormecer” – muito mais suave, como bem observou Alcides, mas curiosamente usado apenas na segunda versão, pois na primeira usar o “dormir” para referir a ação no tempo dos seis anos, pois a criança cansada dorme, não adormece. E o acerto, a eficácia dessa substituição se evidencia no comentário de Alcides, que radica na utilização da mesma palavra a possibilidade de coincidência temporal ou a retroação do sentido da segunda para a primeira parte).

Retomando o fio da leitura: o paralelo que se dá entre as estrofes que abrem as duas partes agora é claro: dá-se entre as vozes e cantigas do passado imediato, que não são ouvidas no meio da noite pelo poeta, e as vozes que habitavam a infância, “as vozes daquele tempo”. E então, depois de nomear as pessoas desaparecidas e por elas perguntar, surge o termo comum, decisivo para a manifestação da tonalidade do poema: dormem profundamente.

É nesse momento, creio, que se dá o processo de retroação, já insinuado desde o primeiro paralelo. A palavra “profundamente”, na sua terceira ocorrência, faz do despertar no meio da noite uma experiência de perda, uma indagação pelo desaparecimento do passado. Mais que isso: uma pergunta formulada num quadro de impermanência e vacuidade – todos dormem profundamente, e no céu flutuam sem rumo os balões para ninguém ver, no silêncio raramente cortado. Ou seja: o paralelismo das duas estrofes finais de cada parte projeta sobre a primeira a ideia de aniquilação do passado e das “vozes, cantigas e risos ao pé das fogueiras acesas”. Essas mesmas, vozes, cantigas e risos desse momento em diante e para sempre relidas não mais apenas como registros de fato, mas como figuras das alegrias passageiras.

Voltando à leitura de Alcides, creio que foi essa percepção que o fez, num primeiro momento, segundo conta, ler no poema desde o começo o seu efeito total. O que me parece mais interessante na sua segunda leitura é que ela não elimina desde o começo aquilo mesmo que constitui o ato de leitura de um poema: a construção gradual do sentido, pela impregnação dos sons e imagens, até que, uma vez cumprido o percurso, o todo se torne como que uma só palavra. 

A questão pode parecer menor, uma vez que chegamos ao mesmo ponto. Mas a mim parece que há uma diferença entre tentar entender e mostrar a forma como o poema se constrói no leitor, pela sucessão do som e do sentido das partes, até que o conjunto de repente surja redimensionado e todas as partes se ressignifiquem mutuamente, e lê-lo de uma maneira, digamos, teleológica – isto é, como se desde o começo estivesse presente, na consciência do leitor (ou fosse a ele de alguma forma acessível) a interpretação só propiciada pelo fim.

Já quanto ao poema em si, na sua construção sonora, chamou-me a atenção a forma rítmica das passagens paralelísticas, porque creio que ela também produz sentido, também nos diz alguma coisa.

Por exemplo, na primeira estrofe é notável a nenhuma regularidade métrica. Temos ali versos de 7, 6, 8, 11, 7 e 8. A única sucessão de ritmos iguais se dá no verso de 11 sílabas, que é um decassílabo da velha medida, formado por dois versos de 5, com cesura.
Já na primeira da segunda parte, o trabalho do poeta foi na mesma direção, porém de um modo muito significativo. De fato, no manuscrito lemos:

Quando eu tinha seis anos
Não vi o fim da festa de S. João
Porque dormi.

O que temos aqui é uma sequência composta por um decassílabo e dois seus quebrados: 6, 10, 4. O decassílabo funciona como momento de equilíbrio entre os quebrados, pois pode decompor-se em 4+6 ou 6+4 sílabas, pois tem tônicas na quarta e na sexta posição. Apesar da polimetria é, portanto, uma estrofe harmônica.

Na versão final, a estrofe ficou assim:

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.

Bandeira, mais do que qualquer outro poeta modernista, mostrou-se um grande conhecedor da métrica tradicional, envolvendo-se inclusive em longa polêmica sobre o assunto. E basta ler, além de seus textos de reflexão sobre o verso, o "Itinerário de Pasárgada" para constatar a sua perícia e atenção minuciosa aos jogos sonoros significativos.

Nesta nova estrofe, a leitura percebe um verso de seis sílabas, seguido de um de 12, que não é um alexandrino clássico, pois não tem cesura. É antes um verso de 12 sílabas composto de dois de 6, sendo o primeiro segmento terminado em paroxítona. Assim, o ritmo se impõe, e visualmente o verso breve que encerra sugere que ali também se encontraria o mesmo padrão. Mas isso não ocorre. Pelo contrário, dentro do padrão estabelecido pelos anteriores, trata-se de um verso truncado: 5 sílabas, terminado em oxítona. Seja qual for o valor que se dê a essa dissonância, ela é clara e parece ter sido o objetivo da alteração. Porque a simples manutenção da forma original (“porque dormi”), em número par de sílabas, seria menos dissonante.

Já nas estrofes que encerram as duas partes, a alteração é mínima: os verbos passam do imperfeito para o presente. O efeito de sentido semântico é claro. Na primeira estrofe, “estavam”, um verbo conjugado no passado a partir do presente imediato, indica uma ação que não é terminal. Estavam dormindo, quando acordei no meio da noite. É isso que se diz. Nada se diz sobre se continuam dormindo e no contexto é de supor que não. Já na última o tempo presente do verbo obriga à atualização do sono como conhecida metáfora da morte. O sentido aqui é tão evidente que quase dispensaria o comentário, não fosse pelo fato de que o imperfeito tem uma sílaba a mais que o perfeito. E isso produz um efeito de sentido que vale a pena comentar.

No autógrafo, a última estrofe da primeira parte era assim:

Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados dormindo
Profundamente

E, como já foi dito, essa estrofe estava no trecho reentrado (deslocado para a direita). Na versão em livro, quando o poeta eliminou esse recurso, evidenciou-se não só o paralelo da primeira estrofe de cada parte (como parecia ser o objetivo da disposição), mas também o da última. E por isso talvez essa estrofe ficou sendo:

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Se lermos de modo “normal” esses versos, temos 3 segmentos de sete sílabas, pois “dormindo profundamente” é um perfeito verso de redondilha maior. Já na primeira versão, como a palavra “dormindo” ocupava o final do verso, repetindo a do verso anterior, a leitura corrente dificultaria a formação do sintagma “dormindo profundamente”, porque se teria antes imposto a leitura “estavam todos deitados dormindo”. E assim a palavra “profundamente” ficaria isolada após uma pausa.

Com essa disposição, além da possibilidade de recompor o verso de 7 sílabas e assim dotar o trecho de maior regularidade, isto é, pacificação rítmica, o paralelo visual com a última estrofe fica perfeito.
Vejamos agora a última.

- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Do ponto de vista métrico, esta é mais complexa do que a outra. Com os verbos no presente, temos 2 versos de seis sílabas, seguidos por um de 2 e um de 4. Mas a leitura que, na primeira, produz a regularidade métrica, aqui a destrói, pois, com se viu, “dormindo profundamente” tem 7 sílabas e o conjunto seria, portanto, assim: 6 6 7.

A única forma de obter equilíbrio rítmico aqui, nos moldes da versificação tradicional, é forçar a pausa depois de “dormindo”, pois assim a estrofe teria: 6 6 2 4. Isto é, dois hexassílabos e dois quebrados dele.

O efeito de sentido dessa leitura seria algo como destacar a última palavra, que é justamente a que dá título ao poema e concentra a sua carga emocional. A estrofe perde em velocidade. A última palavra fica mais “pesada”. Diria mesmo que mais lentamente pronunciada. Fato que parece ter sido algo almejado pelo poeta, que no manuscrito a grafou de uma maneira muito especial, espalhando-a graficamente, separando as suas sílabas, como se a quisesse alongar.

Na versão escrita, com o reforço do paralelismo, por meio da eliminação do recurso da indentação de parte do poema, e pela inserção de um travessão a iniciar cada uma dessas estrofes de resposta ao ubi sunt, o ritmo fez o que era preciso para que a palavra-título tivesse o peso que o poeta nela queria pôr.

E com estas observações pontuais, que não visam senão retomar o saudoso diálogo, rendo aqui a minha homenagem ao admirável leitor de poesia, com quem tenho podido aprender sempre ao longo de todos estes anos.
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Nota 1: os autógrafos reproduzidos estão no volume Manuel Bandeira. Libertinagem / Estrela da Vida inteira. Edição crítica de Giulia Lanciani. Madrid: ALLCA XX, 1998, p. 359-360.
Nota 2: a vídeo com a leitura de Alcides está aqui: 
https://www.facebook.com/alcides.villaca/videos/3029136863833168/?__tn__=%2CdK-R-R&eid=ARCCxPUphC1MIQC9NHbBVkitrPzEeFtoNq4FIF4rlBnpTkMoyN7teM5AkCRgS_K8gKRvx4smNO_mfJT7&fref=mentions