segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Viva o Editor!


Acabo de ver um vídeo fantástico, no qual Paulina Chiziane, com os pés junto a uma fogueira, faz um agradecimento comovido a Zeferino Coelho, da Caminho, que a editou em Portugal. Sua voz se embarga um pouco ao mencioná-lo.
A mim, tudo impressionou nesse vídeo. Mas depois, pensando nele enquanto tentava ler uma monografia, ocorreu-me o motivo por que essa última parte do depoimento me moveu mais.
É que eu também tive e tenho a felicidade de ter um editor no sentido pleno dessa palavra. Quero dizer: um editor receptivo, alerta, que lê o que publica, e escolhe, e orienta. E isso, infelizmente, não é uma experiência comum.
Desde uma novela fragmentária até um livro recente de estudos de literatura, passando por quase uma dezena de outros trabalhos, sempre pude contar não só com a leitura atenta e produtiva, mas também com generosidade e compreensão: se eu precisava de 30 páginas prefaciais, podia escrever; se precisasse de 50, também; e houve até casos em que a apresentação de um livro pequeno terminou por ocupar o número absurdo de 70 páginas de texto corrido. Na verdade, nunca sequer perguntei de quantas laudas poderia dispor, nem me preocupei com isso: simplesmente fui escrevendo, até a questão que me propus abordar estar bem delineada ou resolvida, e depois lhe enviei, certo de que tudo seria publicado na íntegra.
Na verdade, mais do que um editor, sempre tive nele um parceiro. No último livro, o que narra uma viagem de motocicleta, foi ele o primeiro leitor da primeira versão. E foi a sua receptividade e o seu “quero publicar!” que me animaram a empenhar os meses seguintes na apuração do texto, de modo que fosse digno de livro.
Mas houve outro momento que pode dar uma ideia mais precisa de até onde vai a paixão pelo livro, por dar forma ao original informe. Uma paixão tão intensa que pode parecer até mesmo tingida de alguma loucura. E foi quando enviei ao Plínio Martins Filho – pois é dele que se trata – um conjunto de poemas malvados, obscenos, pornográficos, de escárnio e maldizer. Enviei-os para deleite privado, pois eram cheios de referências intertextuais, e porque me pareciam bem divertidos, apesar das maldades que deles escorriam. Ou talvez justamente por conta delas.
Ele não teve dúvidas: queria publicar. Eu lhe disse que de forma alguma. Aquilo não era para circular. Era impublicável. Mas ele insistiu e me propôs algo muito surpreendente.
Aceita a proposta, pedi a Alcir Pécora que escrevesse um prefácio para o livro obsceno, no que ele se saiu, como sempre, da melhor maneira possível, com um texto agudo e erudito, que tentava inclusive, eu acho, minimizar um pouco a maldade explícita.
Plínio então contratou um desenhista, que fez ilustrações à altura, ou talvez fosse melhor dizer à baixura, do livro. Com isso compôs um belo volume de capa dura e mandou imprimir exatos 98 exemplares. Ficou com meia dúzia e me deu os demais, de presente.
Esse livro nunca foi posto à venda, nunca foi exibido numa livraria, nunca esteve à disposição de qualquer público, exceto as pessoas a quem o enviei. Um livro, portanto, quase em circuito fechado: do autor para o editor e do editor para o autor, até mesmo um pouco contra a vontade deste último.
Se isso não é uma boa definição do que seja um editor, capaz de submeter todas as questões práticas à paixão de publicar um livro de que gostou, então não sei qual seria.

Um poema para Leminski

Paulo Leminski era exatamente dez anos mais velho do que eu. Só o encontrei uma vez, já no final da sua vida, quando veio fazer uma palestra sobre haicai em Piraciaba.
Durante ela, projetou uma série de pranchas do livro "Haiku" ou do "A history of haiku", de R. H. Blyth, e fez uma exposição inteiramente baseada na leitura desses livros.
Naquela época, eu tinha descoberto os tratados canônicos da escola de Bashô e começava a colocar em causa um tipo de leitura que confinava com a dele.
Foi nessa linha que lhe apresentei um comentário/pergunta, e ele, antes de não responder, disse com notável espontaneidade e num tom engraçado que jamais pensaria encontrar em Piracicaba alguém que conhecesse o Blyth.
Depois da palestra, conversamos um pouco. Muito pouco. Ele não parecia muito interessado em debater teoria, história ou prática do haicai. Para abreviar a conversa, convidou-me para acompanhá-lo ao bar para onde o levariam, mas senti que não era hora nem local.
Algum tempo depois, tive notícia de seu falecimento. Era meados de 1989. Eu estava fora de Campinas. Tinha ido fazer uma palestra. Creio que em Assis. Já tinha entregue à Editora da Unicamp, para publicação, o "Haikai - antologia e história", que sairia no ano seguinte e que eu contava enviar-lhe assim que possível, pois esperava que aquele livro pudesse ser, a seu modo, a continuação do diálogo efetivo que não houve.
Demorei para superar o choque. Um estranho choque. Tanto que um mês depois anotei umas linhas que talvez sejam injustas, talvez sejam muito derramadas, talvez apenas insossas, mas que deram conta.
Nunca as publiquei, é claro. Em algum momento as enviei, como homenagem meio torta, a Alice Ruiz.
Nestas noites de insônia, neste país que a cada dia parece mais desmoronado, a memória faz, de um jeito ou de outro, o trabalho de reconstrução. E resolvi, depois de tantos anos, voltar a estas linhas, este desajeitado pastiche, encharcado de melancólica revolta, que ao mesmo tempo que iluminou o afeto parece ter obscurecido ou carregado o julgamento.

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Eu não gostava muito de você, Leminski.
Você tinha as unhas sujas
E era muitas vezes meio chato.
Falava de haicai de um modo incompleto,
E o seu Jesus era muito concreto.
Também não gostava de seus poemas,
Só de alguns, estou sendo sincero.
Nem da prosa que você fazia, que me aborrecia.
No entanto, estou sentindo a sua falta.
Não sei o que é, mas você faz falta.
Estou aqui como um bobo lhe fazendo versos
E quando vivo mal pudemos nos falar
Sobre pinga, peixe e poesia, em Piracicaba.
Um pouco de judô, um pouco de Blyth, o nosso vovô.
Você foi para um bar, encher bem a cara.
Eu não fui festejar a sua fala.
De novo a gente não conversaria.
Nem eu queria, nem você gostaria.
Mas me fazia bem pensar que você
Quando a chuva era fraca
Fazia haicai para as línguas de vaca.
Fazia bem, mesmo pra quem não gostava,
O jeito tão ágil que era você,
E entre os copos de vinho e de vodca
O brilho da mente que ali faiscava.
Não soube logo que você morreu.
Falara em você no dia anterior.
Como sempre: nem mal e nem melhor.
Na casa de uma amiga me disseram: faleceu.
Já faz dois dias, ela disse.
Dois dias que o Leminski faleceu.
Arrumei o jornal, li o necrológio, pensei:
Pra que essa tristeza?
Dele, afinal, nunca eu gostei...
Mas um dia vem e vai, outro também,
E já passou um mês inteiro.
Eu mal o conhecia, então por que
Não foi só um sentimento passageiro?
Por que não me esqueci,
Por que sofri? – sofri?
Ah, se sofri! Você pensa que é mentira?
Que é força de expressão, papagaiada?
Então por que faria toda esta versalhada?
É incrível, mas nada me tira
Essa tristeza enorme que é você ter morrido.
Você que não era meu amigo, nem meu conhecido,
Mas que era de algum jeito, obscuro e contramão,
Uma espécie de ininteligível meu irmão.
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Uma carta de Mecia de Sena

    Em 1993 conheci, em Los Angeles, Emmanoel Santos. Sua simpatia me causou profunda impressão e nos estendemos em longa conversa, como se não fosse o primeiro encontro. Quando nos despedíamos, disse-me ele que eu precisava conhecer sua mulher, Gilda, porque ela era como eu. Usou a seguir uma palavra do campo semântico da palavra “dínamo”, que depois pude constatar ser muito apropriada para descrevê-la, mas não a mim, muito mais lento, e acomodado.
    Gilda estava em Santa Barbara e para lá segui, no final de semana, para encontrá-los na casa de Mecia de Sena.
    A partir daquele momento estava selada uma das amizades mais gratificantes, que foi a do casal Santos, e estava criada a condição para uma longa troca de correspondência com Mecia, com quem, apesar de ter regressado várias vezes aos EUA e de ela ter vindo algumas ao Brasil, não tive a oportunidade de ter outro encontro pessoal.
    Nesse diálogo epistolar, que se estendeu até o começo dos anos 2000, tratamos um pouco de tudo: da obra de Jorge de Sena, que me entusiasmara, dos percalços editoriais, dos seus esforços para editar e divulgar a obra e de um projeto, que não consegui levar a cabo, que era ajudar na publicação da correspondência de Sena com Alexandre Eulálio.
    Várias vezes pensei que valeria a pena publicar as cartas que me mandou, mas alguma confusão nos meus papeis fez com que desaparecessem. Em vão as procurei, porque em duas delas havia informações sobre Camilo Pessanha que teriam sido úteis quando escrevi o livrinho da coleção O Essencial. Lembrava-me, aliás, perfeitamente do que tinha lido, mas sem as cartas não me atrevi a incluir nenhuma informação.
    Também sentia muito não encontrar essas cartas, por conta de ela ter feito, num comentário justamente a um artigo que escrevi sobre a biografia de Pessanha, observações muito interessantes quanto a fantasias biográficas sobre Fernando Pessoa.
    Numa dessas noites de insônia, quando a gente termina por fazer algo apenas para passar o tempo e aguardar o começo do dia, finalmente encontrei-as num lugar improvável, onde jaziam há anos fora do alcance. Tive vontade de reuni-las, transcrevê-las e publicá-las numa revista, para preservar a sua memória. E talvez ainda o faça. Mas como não é certo, pensei que valeria logo a pena, sem nenhum aparato nem transcrição, dar a conhecer a mais interessante delas, datada de 24 de março de 1994.
    
    E é isso que faço a seguir.





terça-feira, 19 de outubro de 2021

Um livro involuntário - #1


Quando me iniciava na prática do haicai, enviei a Masuda Goga, pedindo sua avaliação, um conjunto de tercetos. Algum tempo depois, surpreso, recebi em casa alguns exemplares de um livrinho em que eles se juntavam. Era um objeto bem bonito, pequeno, quase uma caderneta, medindo 19x10 cm, com 76 páginas. A capa era linda: trazia Sabará, numa pintura de Alberto da Veiga Guignard que, a um olhar mais rápido, até poderia passar por japonesa, ou chinesa. Intitulava-se simplesmente haicais'.
Massao Ohno ou alguém a quem ele atribuiu a tarefa escolheu para texto de orelha um artigo publicado num dos dois jornais de Campinas da época, o Diário do Povo. Intitulado “Haicai: de gênero poético a filosofia”, vem datado de 8 de agosto de 1992 e não traz assinatura.. Eu não sabia e não sei ainda quem o escreveu, nem como chegou ele ao editor que, provavelmente, achou que o autor teria sido eu mesmo.
Na verdade, como já deve ter ficado claro, eu não fazia sequer ideia de como tinha nascido aquele livro e só fui descobrir quando deparei com uma página prefacial em japonês, sem tradução, assinada por Masuda Goga, que mencionava o trabalho que fiz com Elza Doi, Haikai – antologia e história, de 1990, bem como o haicai com que eu tinha ganho um concurso, naquele mesmo ano, acrescentando gentilmente que, embora o haicai (aquele em que os grilos cantavam apenas do meu lado esquerdo) pudesse fazer pensar que eu era velho, isso não era verdade.
Uma curiosidade a mais: em certo ponto do livro intrometia-se um tanka algo desequilibrado e brincalhão, que eu enviara como piada, junto com os haicais, ao Goga. Diz assim:
o peixe nadava
em círculos no barril.
Issa lhe compôs
um haikai bem dolorido
e o comeu depois, cozido.
Não faço ideia de por que Goga resolveu incluí-lo no livro. Nem por que motivo ele veio onde deveria vir o título do conjunto de haicais que se seguem, que integravam um dos dois diários de viagem de que, junto com os avulsos, se compunha o conjunto do material que lhe enviara... Mas confesso que não desgostei.
Vários anos depois, Masuda me enviou outra surpresa: esses mesmos haicais traduzidos por ele para o japonês, na forma tradicional, acrescidos de alguns outros, que lhe tinha enviado depois – mas agora sem o tanka brincalhão. Foram esses que utilizei na publicação de Oeste/Nishi (2008) pela Editora Ateliê, do que resultou que nesse segundo livro se encontrassem repetidos todos os do primeiro.
O que é compreensível, e talvez desculpável, frente ao fato de que haicais, publicado pela Massao Ohno com a Aliança Cultural Brasil-Japão em 1994, foi um livro de cuja preparação não participei, nem tive notícia. Uma surpresa. Um presente inesperado.
Não terminavam aí, porém, as novidades. Ao abrir o livro, vi que Goga escolhera um haicai de Bashô para figurar como epígrafe. A tradução deve ser dele. Diz assim:
Nestes arredores,
a vista sempre descobre
ambientes frescos.
Gostei muito dessa escolha. Fui imediatamente procurar o original e encontrei isto: kono atari me ni miyuru mono wa mina suzushi.
Recebi-o como um gesto de gentileza, um cumprimento generoso, um aceno do velho mestre.
Na verdade, era sobre essa epígrafe que eu gostaria de falar, antes que a memória me levasse para longe dela. Então falarei depois.

sábado, 25 de setembro de 2021

Motociclismo: uma entrevista


Paulo Franchetti: “A viagem de motocicleta é o que mais se aproxima, para mim, do estado de meditação”

Aproveitei o resto do último dia para vagar outra vez pelo deserto (A Mão do Deserto)

A Ateliê Editorial publica a obra A Mão do Deserto, do escritor e professor Paulo Franchetti. Pode-se dizer que é o livro mais pessoal de Franchetti, de sua vasta trajetória literária. Quem concorda com essa afirmação é o também crítico e professor Alcir Pécora, pois no texto de orelha ele escreveu: “O que gostaria de declarar aqui portanto é que, quando Paulo Franchetti conta as suas aventuras solitárias pelo Atacama adentro, ele está falando de uma coisa muito séria para ele: o cerne de um assunto que ele estudou nos livros e também experimentou no corpo a vida toda”.

De forma literária e num relato preciso desde o planejamento da viagem, passando pelo trajeto de 11 mil quilômetros, até o final da jornada, o autor nos leva junto na garupa em uma narrativa imersiva e emocional, colaborando para um itinerário de espaço e tempo, do humano e da máquina, da imensidão da paisagem da América do Sul, de um estrangeiro em busca de um desafio a duas rodas. “Sempre tive vontade de fazer uma longa viagem solitária de moto. Eu já tinha feito muitas viagens pelo Brasil, tanto sozinho como em companhia. A viagem para o Atacama – que é um desejo de quase todo motociclista – foi um projeto sempre adiado. Ora por compromissos profissionais, ora por motivos familiares. Ora por motivos de saúde”.

Em entrevista para a Ateliê, Paulo Franchetti falou sobre a ideia de elaborar a sua aventura em livro: “Quando decidi escrever, surgiu-me a primeira cena de um modo tão natural quanto inesperado. Em vez de começar a contar a viagem desde o começo, de repente me revi praticamente no meio dela, pouco antes de cruzar os Andes, subindo outra montanha”. Ele também comentou sua relação com a motocicleta, sua companheira de viagem: “Sempre tive paixão por máquinas, engenhos, tecnologias. E por aventuras, talvez por conta das leituras da infância”. Além de confessar a sensação pelo trajeto realizado: “Durante a viagem eu tinha publicado notas objetivas. Dicas para os amigos que no futuro se decidissem a seguir aquele caminho. Mas evitei tentar dar forma escrita às sensações, pensamentos e emoções, porque eu queria a vivência bruta e imediata da beleza e da solidão”.


Confira abaixo a entrevista na íntegra:

Ateliê Editorial: Paulo, antes de tudo, como se originou o desejo de viajar de moto pela América do Sul até o Atacama?

Paulo Franchetti: Sempre tive vontade de fazer uma longa viagem solitária de moto. Eu já tinha feito muitas viagens pelo Brasil, tanto sozinho como em companhia. A viagem para o Atacama – que é um desejo de quase todo motociclista – foi um projeto sempre adiado. Ora por compromissos profissionais, ora por motivos familiares. Ora por motivos de saúde. 

Um dia, ao sair de uma consulta médica, soube que teria de tomar um remédio anticoagulante pelo resto da vida. Isso porque, para evitar o mesmo destino de minha mãe, já que tínhamos o mesmo problema cardíaco, tinha me submetido a uma cirurgia dois anos antes. Julgava-me recuperado. E estava. Porém não fui dispensado do remédio e, com ele, da recomendação de evitar qualquer situação de risco que pudesse gerar sangramento. Enquanto caminhava de volta para casa, pensei que eu já tinha adiado muito, que o tempo tinha passado muito rápido e que ou era naquele momento ou não seria nunca mais. Lembro-me perfeitamente do momento em que tomei a decisão. Era uma manhã fria, de céu muito azul. Eu subia a pé a rua na direção de casa, trazendo, num envelope, mais um eletrocardiograma, que atestava a condição normal e controlada. Tinha já feito tantos… Naquele dia não o levei comigo: depositei-o na primeira lixeira que encontrei na rua. Quando entrei em casa, fui direto ao computador e tracei a primeira rota, automática, que depois seria totalmente refeita, com base no que fui ouvindo, lendo e me aconselhando com pessoas. Estava decidida a viagem. Ou, melhor dizendo, ela já tinha começado.


P: Complementando a primeira pergunta, como, também, originou a escrita de um livro sobre essa experiência?

R: Durante a viagem eu tinha publicado notas objetivas. Dicas para os amigos que no futuro se decidissem a seguir aquele caminho. Mas evitei tentar dar forma escrita às sensações, pensamentos e emoções, porque eu queria a vivência bruta e imediata da beleza e da solidão. Não queria filtros, mediações. Quando voltei, reatando a conversa com um amigo, perguntou-me ele o que eu tinha feito nos últimos tempos. Disse-lhe que, entre outras coisas e viagens e trabalhos, tinha ido sozinho ao Atacama, de moto. Ele me pediu que lhe contasse algo e eu redigi um breve relato, de imediato, conforme me foram ocorrendo as lembranças principais. Esse amigo, Alcir Pécora – meu parceiro de trabalho de tantos anos -, gostou da narrativa e me animou a prosseguir: a refazer a viagem em palavras. Estávamos em plena fase aguda da pandemia. Minha próxima viagem, até o Peru, tinha sido cancelada. Aceitei a sugestão e durante uns meses me dediquei a rememorar a viagem. Eu tinha as anotações objetivas: lugares, datas, nomes, eventos. E tinha fotografias. Foram bons apoios, mas desnecessários em certo sentido, porque a viagem estava ainda viva e pulsante na minha lembrança.

Curiosamente, quando terminei de escrever a primeira versão, não a enviei ao Alcir. Achei que antes de apresentá-la a ele queria ouvir a opinião do Plínio Martins Filho. Creio que eu queria testar a força do relato com alguém cujo gosto e capacidade de leitura eu admirava, mas para quem eu não tivesse ainda dito nada sobre a viagem, nem mandado fotos ou relatos.

A resposta do Plínio foi animadora: disse logo que queria publicar aquilo. Mas havia algo que ele queria que eu tivesse escrito, algo que faltava e ele não sabia bem o que era.

Na sequência, enviei ao Alcir.

Alcir comparecia na história, porque o livro não trata só da viagem exterior, isto é, do trajeto até o Atacama. Trata também de tudo o que foi aflorando durante aqueles 25 dias: lembranças, emoções, pensamentos fugidios, sensações, alucinações. Num dos capítulos, eu narro um evento motociclístico de que ele fez parte. Mas minha grande expectativa quanto à sua leitura não era saber se ele se sentiria divertido e bem representado no episódio. Além do que sempre tivemos ao escrever juntos ou ler textos um do outro, isto é, crítica rigorosa e construtiva, eu confiava que ele poderia me dizer o que faltava ali, o que era a lacuna que o Plínio percebeu sem identificar claramente.

Alcir leu e logo deu pelo que seria: o que logo explicitei, inserindo o segundo capítulo e estava apenas indicado ou subentendido ao longo da narrativa.

Na sequência, sobre o livro já pronto em primeira versão, tivemos muitas conversas e fico sempre feliz de registrar que, sem elas, o livro provavelmente seria um pouco diferente do que é. O melhor, quanto a mim, foi o fato de apostar, desde o momento da escrita solitária, no diálogo com um leitor assim exigente. Porque eu acho que a gente sempre tem uma imagem de leitor ideal, quando escreve. E embora eu não lhe tivesse mostrado o livro em primeiro lugar, a verdade é que o escrevi tendo também em mente a sua leitura e feedback.


P: Na leitura da obra, somos impactados com a precisão de sua escrita em nos deixar imersos na narrativa e trajeto, como se estivéssemos viajando contigo na garupa, como foi o trabalho e o processo de escrita do livro?

R: Eu não sei bem o que dizer. Quando decidi escrever, surgiu-me a primeira cena de um modo tão natural quanto inesperado. Em vez de começar a contar a viagem desde o começo, de repente me revi praticamente no meio dela, pouco antes de cruzar os Andes, subindo outra montanha. Não sei bem por que comecei por ali, nem mesmo como fui organizando a narrativa e a costura entre o passado e o presente. Eu gostaria de dizer que foi um processo muito consciente, que houve tal planejamento que a metade do livro coincide com um marco importante da viagem. Mas não é verdade. Eu tinha uma trilha para seguir, que eram as anotações tópicas: datas e lugares, basicamente. À medida que ia escrevendo, fui revivendo intensamente os passos e os eventos, e eles se foram encadeando, em lógica própria, com reminiscências ocorridas durante a viagem e lembranças outras que foram surgindo durante a escrita. 


P: Há muitas descobertas íntimas que você compartilha com o leitor. O que mudou para o Paulo após essa viagem? E o que podemos extrair da leitura dessa reflexão?

R: Sinto que alguma coisa mudou, mas numa região interna a que não tenho muito acesso. Dizendo assim pode parecer estranho, mas o efeito da solidão e a vivência da vulnerabilidade e do desamparo deixaram marcas benéficas, que só consigo definir mais ou menos com a palavra pacificação. Foi, de alguma forma, uma viagem de reconciliação, de reencontro e de perdão. A viagem de motocicleta é o que mais se aproxima, para mim, do estado de meditação. Uma viagem de 25 dias, com pouco contato com pessoas e muitas horas preenchidas apenas com a contemplação da natureza agreste e com o esforço de apenas estar presente no presente, é como uma meditação estendida. Um estado que é difícil definir, mas fácil de sentir enquanto está durando. Sinto que voltei diferente, mas não posso dizer em quê, nem por quê.

P: Percebemos uma relação entre você e a motocicleta, há muito detalhes na obra de como você a comprou e a reformou para a aventura, conte-nos como começou essa paixão?

R: Sempre tive paixão por máquinas, engenhos, tecnologias. E por aventuras, talvez por conta das leituras da infância. Quando tinha uns 12 anos, um de meus tios apareceu com uma velha motocicleta, que pegara como pagamento de um negócio. Eu adorava aventurar-me em correrias sobre um velho pangaré, mas a máquina logo me seduziu e, enquanto ela esteve disponível, não voltei ao lombo do animal. Essa primeira experiência, interrompida por muitos anos, até eu poder comprar a minha primeira motocicleta, foi a origem de uma paixão pelas duas rodas que nunca arrefeceu e provavelmente nunca vai arrefecer. Além de pilotar, fascinou-me a motocicleta enquanto engenho. Fiz estágio em oficina, comprei livros, ferramentas e aprendi o que me foi possível na arte da mecânica. Compreender o funcionamento, testar vários modelos, compará-los, verificar o melhor de cada um passou a ser também um objetivo e cheguei mesmo a escrever avaliações de motocicletas recém-lançadas que foram publicadas no Facebook e num blog de uma revista especializada.

Houve depois outra fase breve. Tendo feito alguns passeios com o H.O.G. (Grupo de Proprietários de Harley), acabei comprando motocicletas dessa marca e me envolvendo com o grupo. Durante algum tempo, participei inclusive da diretoria do H.O.G. da Tennessee de Campinas. De modo que por algum tempo, além dos passeios solitários, envolvi-me com a vida gregária. Hoje já não vivo no universo Harley-Davidson, mas alguns dos melhores amigos com quem convivo foram o ganho suplementar daqueles bons tempos.

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O AUTOR

Paulo Franchetti foi professor titular no Departamento de Teoria Literária da Unicamp e presidente da editora da mesma universidade por muitos anos. Publicou pela Ateliê Editorial os livros de estudos literários: Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa e Crise em Crise – Notas sobre Poesia e Crítica no Brasil Contemporâneo. Publicou também o livro de ficção O Sangue dos Dias Transparentes e A Mão do Deserto (memória de viagem), além dos livros de poesia: Deste Lugar,  Memória Futura, ente outros. Seu livro de haicais, Oeste, representa uma das mais admiráveis experiências na recente poesia brasileira. Para a coleção Clássicos Ateliê organizou também O Primo Basílio, Dom Casmurro, Iracema, O Cortiço, A Cidade e as Serras, Clepsidra e Esaú e Jacó.

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Um caminho de haicai


Faz tempo que não me dedico ao haicai. Mas acompanho de modo pouco sistemático o que se produz sob essa designação. 

Um dia desses, ocorreu-me a ideia de que talvez valesse a pena criar um grupo para aqueles que estão dispostos a percorrer um específico caminho de haicai. Um caminho entre outros, sem pretensão de ser o melhor, nem temor de ser o pior. 

Mas por que isso valeria a pena? Que tipo de prática seria essa e qual a sua necessidade ou função nos dias de hoje?

Bom, eu pensei numa atividade que se diferenciasse, por um lado, do haicai tradicional, tal como praticado no Brasil e em boa parte do mundo; e, por outro, também daquilo que se poderia chamar de haicai sem lei nem caminho, no sentido de uma prática indiscriminada, na qual cada um faz o que quer, usando a palavra haicai para designar qualquer arranjo de palavras que o seu autor ache ou queira que achem que é haicai.

Enquanto tentava esclarecer para mim mesmo essa proposta, comecei a pensar nas diferenças entre ela e o que se reconhece como haicai tradicional no Brasil, uma vez que não reconheço nenhuma relevância no outro tipo, isto é, no tipo de haicai banalizado como terceto espirituoso ou sentimental.


De imediato, creio que haveria duas diferenças principais entre o haicai que me interessa e o tradicional. Uma que diz respeito à forma do verso, outra que diz respeito a um elemento do seu “conteúdo”.



1. Quanto à forma


Por mera convenção, considera-se no Brasil que o haicai exige a métrica 5-7-5 sílabas, contadas à maneira moderna.

Talvez nem todos saibam que até 1851 a contagem das sílabas do verso português era como a do verso espanhol e do verso italiano.

Um verso como “uma rã mergulha” era denominado hexassílabo, porque se contavam todas as sílabas do verso. Como aliás é até hoje em espanhol. A partir de certo momento, por conta do Tratado, de Antonio Feliciano de Castilho, a maneira nova de contar os versos, mais próxima da francesa, torna-se dominante entre nós: contam-se as sílabas só até a última tônica.

Ora, em japonês, se não estou em erro, nem sequer se pode falar em sílabas para definir o verso. O que se conta são os tempos (moras). Assim, uma sílaba simples seguida de nasalização vale dois tempos: por exemplo, a palavra “livro”, que se diz “hon”, vale por duas moras em japonês. E a palavra Bashô, como tem a última sílaba longa, vale por 3 tempos e não dois como quando a utilizamos em português.

Então, do meu ponto de vista, não faz sentido o preciosismo de querer fazer haicai em versos contados à maneira moderna em português. Eles têm quase sempre uma sílaba a mais por linha, em relação a um haicai japonês, pois só podemos falar em esquema 5-7-5 se ignoramos as átonas após as tônicas. E a estrofe, dentro da nossa tradição, não parece sustentar-se (por isso mesmo Guilherme de Almeida tratou de lhe dar mais consistência, por meio da inclusão do esquema de rimas).

Então, pergunto, qual o sentido de nos esforçarmos para manter uma métrica que nada tem a ver com o original que nos inspira? Uma métrica que, na nossa própria tradição, não nos diz nada, pois sequer construímos uma estrofe regular?

Há outras coisas muito mais importantes no trabalho de aclimatação do haicai do que esse preciosismo algo desfocado.

Portanto: o número de 17 sílabas me parece apenas um parâmetro, uma baliza, jamais um ideal ou uma obrigação.

Já a estrutura, em si mesma, creio que deva ser a do haicai tradicional, porque é da justaposição que resulta o efeito particular desse tipo de arte da palavra.

Assim, compostos em 3 versos, estes são os parâmetros que vale apena observar: o verso intermediário mais longo e ligado sintaticamente a um dos versos externos menores, para permitir o balanço característico da forma, e – claro – a justaposição.



2. O “conteúdo”


Aqui quero falar do “kigo”, a palavra de estação. No Japão, país de clima temperado e pequena extensão longitudinal, as estações são bem definidas. O haicai é, pela origem, como todos sabem, o terceto que traz uma indicação sobre a estação em que foi composto. Essa indicação, por força da tradição, se cristalizou em palavras e expressões convencionais. Neblina implica primavera, frio indica inverno, lua sem qualificação é kigo de outono, e muitas atividades humanas típicas de determinada estação indicam o momento do ano em que ocorrem. 

O “kigo” é, assim, uma forma muito econômica e eficaz de despertar associações com um determinado momento e com a disposição de espírito que a ela se liga de alguma forma. É como um acorde, que define um tom e um clima, e abre um leque de possibilidades de harmonização.

No Brasil, país de enorme extensão em longitude e latitude, há poucos kigos unânimes. A maior parte deles associados ao calendário profano ou religioso (Carnaval, Natal, Dia de Finados, Dia dos Pais, Dia das Mães, Dia do Trabalho...) ou à sazonalidade das frutas regionais. 

Não creio, por isso, que faça sentido nos apegarmos aos kigos e compormos os haicais a partir deles. Podemos, claro, criar com o tempo um repertório de kigos, mas não de modo abstrato. Não como ponto de partida para a composição do haicai.

Com isso quero dizer que temos de nos centrar numa experiência, numa sensação ou num estado de ânimo originado de uma percepção objetiva (de preferência sensória). Com o tempo, pela repetição da associação da experiência sensória com uma época do ano ou uma disposição do espírito, poderemos ter algo parecido com o kigo, no sentido japonês. Nem isso, porém, deve ser o objetivo principal da prática, do meu ponto de vista.


Parece-me, em suma, um engano compor o haicai a partir do kigo tradicional. Isto é, o haicaísta sair em busca do haicai que caiba no kigo. É ruim para a prática, para a aprendizagem e para a fruição, isto é, para a descoberta que o leitor faz do que vem naqueles poucos versos.

O contrário é mais produtivo: compor o haicai por impulso, a partir de uma sensação ou percepção. E depois ver se o que disparou o haicai encontrou uma palavra própria ou não. E não se apegar ao haicai assim produzido, pois ele é um registro, uma consequência e não um objetivo. Como experiência e exercício espiritual, apegar-se a ele, querer produzir um haicai brilhante ou então tentar salvar a todo custo um haicai mal formulado, isto é, tentar construir com palavras o que a intuição não cristalizou de imediato, é perder o caminho no momento mesmo em que se tenta trilhá-lo.


Portanto, resumindo: o mais importante para o tipo de haicai que julgo interessante é ele se apresentar como registro objetivo de uma sensação. É em volta dessa sensação ou percepção objetiva que se deve articular o haicai, é para isso que deve apontar, independente de qualquer outra ressonância que ele tenha. 

Sem sensação, sem haicai: eis o lema que acho mais profícuo. Haicai só feito de palavras e de abstrações não me parece digno de respeito (para parafrasear as palavras do mestre). O haicai que acho valer a pena é aquele centrado na verdade e na percepção objetiva.


Haveria muito a dizer ainda. Sobre a forma, sobre as tentações que lançam sombra no caminho. E também valeria a pena repisar um ponto: um tal haicai não deve pretender ser “literatura”, produto, mas vivência, prática, aprendizado, atitude. Um jeito de estar no mundo e na linguagem. A “visão própria”, a vaidade, o desejo de compor algo bonito ou brilhante, o desejo de explicar, de compor adivinhas e outras coisas fáceis, como jogos de linguagem, são os perigos e os entraves da prática. Mas isso seria discutido com vagar, na prática de cada dia, se eu fosse levar adiante este projeto.



terça-feira, 14 de setembro de 2021

Nos Andes, de motocicleta

 Na cordilheira (um relato)

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Texto publicado na revista Conhece-te, edição de setembro, como apresentação do livro "A mão do deserto" (Ateliê Editorial, 2021).

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Na primavera de 2019, resolvi fazer uma viagem de moto. Uma viagem solitária. Há quatro anos tinha perdido minha mãe. Ela sofria de fibrilação atrial, uma arritmia cardíaca que pode induzir a formação de coágulos. E teve um AVC. Faleceu depois de dois anos acamada, sem falar, sem poder se mexer. Eu sofria do mesmo mal. Dois anos após a sua morte, resolvi submeter-me a uma cirurgia para que se cauterizasse uma parte do meu coração e ele voltasse ao ritmo desejado. Mas a cura não foi completa: suprimiram o gatilho, mas a bala continuou na agulha e o cão continuou armado. De modo que o médico me receitou um normalizador do ritmo e um anticoagulante, que deveria proteger-me dos coágulos. Dois anos depois da cirurgia, os exames mostraram que eu estava estável, mas condenado a tomar os medicamentos para sempre.

Na primeira consulta após a cirurgia, com o uso de anticoagulantes, a motocicleta era algo proibido. Assim como qualquer esporte ou atividade que pudesse causar acidentes e sangramento. Mas desde os doze anos, a motocicleta foi parte da minha vida, e abdicar dela seria abdicar de algo que era mais do que um prazer, era uma elemento de identidade. Então não parei.

Quando, finalmente, soube que tomaria o remédio para o resto da vida, resolvi fazer a viagem da minha vida. Uma viagem sem companhia, durante a qual, compensando os riscos, eu poderia dialogar comigo e com os meus mortos, bem como com os vivos com os quais deixei de conversar ao longo dos anos, por um motivo ou por outro, ou sem nenhum motivo.

A viagem começou pela Argentina, na fronteira de Foz do Iguaçu. Prosseguiu primeiro para Oeste, na direção de Posadas e Corrientes e por fim Termas de Rio Hondo. Ali sofreu uma inflexão para norte, na direção de Salta e depois Humahuaca. Em seguida, de novo para o oeste, andei pelas Salinas Grandes, um deserto de sal, cujas placas grossas sustentam carros sobre um mar de água transparente, e então cruzei os Andes.

Pilotando a 4850 metros acima do nível do mar, entre vulcões gelados, segui para San Pedro de Atacama, que divisei ao longe, entre um vasto círculo de picos cobertos de neve, ao lado de grandes salares, no altiplano que se conhece como Puna.

Desde San Pedro, rodei em várias direções pelo deserto, com rumo ou sem rumo, ora buscando o silêncio interior, concentrado na respiração e no ruído do motor, ora dialogando com os rostos que pareciam brotar das dunas, entre a rara vegetação, sob o sol quente ou sob a luz fria da lua brilhante. A todos prestei as homenagens, a todos perdoei do que nem sabia que precisava perdoar, e a todos também pedi, sem buscar a clareza dos motivos, perdão.

As viagens solitárias têm esse poder de conhecimento sem revelação: da mesma forma que a paisagem é desconhecida, o sentido das coisas não precisa se transformar em dado explícito para impor a sua força de sentido obscuro e de emoção incontida.

Da minha cabana de adobe, no meio do deserto, segui depois para a costa do Pacífico. Passei pela Mano del Desierto, aquele monumento estranho: uma mão humana semienterrada, ou sendo erguida desde o fundo, à margem de uma rodovia, entre colinas.

E na sequência da viagem, percorri a dura costa do Chile, com a sua miséria e riqueza mineral, até Santiago, de onde cruzei novamente os Andes, em direção à adorável Mendoza. Dali para Córdoba e a seguir de volta ao Brasil.

Foram onze mil quilômetros e 25 dias de quase solidão. Digo quase, porque o viajante solitário está aberto às experiências da estrada. Não está se movendo numa pequena bolha de relações de familiaridade. Nem mesmo se pode isolar e proteger no invólucro seguro da sua própria língua. 

Quando voltei, um amigo com o qual tinha perdido o contato há anos quis saber da viagem. E lhe mandei o seguinte relato breve, do qual excluo a parte que repete o que contei acima:

“Houve momentos em que a sensação era de total solidão e vulnerabilidade, como quando cruzei uma parte da Argentina chamada El Chaco. Ali, o que há são retas infinitas, desabitadas. Grandes caminhões cruzam por nós com uma velocidade espantosa e o ar que deslocam é como uma pancada no peito. Na época em que passei por lá, chovia. E fazia frio. Normalmente é quente demais. Mas chovia.

Ao longo da estrada havia animais. Carneiros, burricos, porcos. Em manadas ordeiras, pastando nas margens. E passavam os caminhões em carreira e eu mesmo a 180 km/h, só diminuindo ao avistar um grupo mais próximo da pista. O principal problema eram os pássaros. Centenas deles ficavam na pista, em intervalos curtos, comendo as sementes que o vento trazia. Eu ia buzinando e encolhido atrás do para-brisa, para me proteger. E mesmo assim, com todo o barulho, atropelava sempre vários, que iam caindo pelas beiradas da moto. Um deslocou a lanterna, outro bateu no meu capacete. Mesmo assim, por buzinar, matei poucos. Um amigo que passou por lá depois, embora eu tivesse dito que precisava buzinar muito, matou duas dúzias, alguns dos quais ficaram grudados, esmagados contra os ferros da moto.

Depois, em certa parte, não havia nada, exceto imensos ninhos abandonados nas árvores altas, numa paisagem de fim de mundo. Uma linha de postes de energia no horizonte era o único testemunho humano, além da estrada. Retas que se perdiam, burricos bravos e ovelhas cobertas de lã, porcos pastando em grupo. 

Quando parava a moto, o silêncio era atordoante. Principalmente porque parava o vento. Deixava a moto e caminhava até uma distância da qual a pudesse ver contra aquela paisagem rústica. 

Antes de partir comprei um aparelho rastreador. Ele tem um botão para pedir ajuda e outro para pedir resgate. Não depende de celular, porque nesses lugares não há sinal. É tudo por satélite. Em caso de pane da moto, pressionando um botão para pedir ajuda, uma mensagem em SMS vai para um número pré-configurado, com um texto pré-definido e a localização no mapa. Em caso de real perigo de vida, um botão denominado SOS envia um pedido para a central nos EUA, com a localização. Nesse caso, o compromisso da empresa é providenciar um resgate o mais rápido possível, pelo meio disponível: helicóptero, caminhonete, lombo de burro. E conheço casos, ocorridos nessa mesma região, de gente que se acidentou, quebrou perna e braço e foi resgatada na montanha, quando estava a ponto de morrer de hipotermia.

Quando descia nesses lugares, apertava na mão o aparelho, como garantia de segurança. Mas curiosamente eu adorava essa sensação: a vulnerabilidade, a solidão, o vazio. 

Por exemplo, antes de cruzar os Andes, resolvi ver aquele morro de várias cores, de cuja fotografia você gostou. Para chegar até lá, tive de andar 70 km pelo deserto real. Cerca de 50 em estrada asfaltada e o resto sobre pedras soltas. No final do asfalto havia uma cabana, gerida por uma indígena. Lá havia um poço e energia por placa solar. Parei, comi uma empanada, tomei um café e conversei um pouco com ela, ouvindo como era a vida ali, naquele descampado no planalto, ao pé da montanha.

Depois resolvi subir. Foram 25 km para chegar a 4300 metros de altitude, por uma estrada vazia, com um precipício ao lado e pontas de pedras do outro. Em pé sobre as pedaleiras da moto, para maior firmeza, sentia as pedras sendo jogadas para o lado pelos pneus. E fui. Quando cheguei ao topo e comecei a andar, não tinha fôlego. Andar 20 metros nessa altitude é uma coisa muito difícil: falta o ar, a cabeça gira e dói. A gente tem de andar em câmera lenta e se concentrar.

Chegando, sentei-me a ouvir aquela solidão enorme, e só levantei quando percebi que o dia começava perigosamente a baixar. E então tive de fazer o caminho contrário, na ribanceira até a cabana da índia, que já estava fechada, e dali seguir, enquanto o sol descia muito rapidamente, até o vilarejo onde iria me hospedar, antes de seguir no rumo da parte chilena do deserto.”

Meu amigo gostou do relato intempestivo. Disse-me que eu deveria escrever mais longamente sobre essa experiência, contar tudo, complementar a viagem. Com isso ele quis dizer, eu acho, que era preciso viver outra vez, agora com palavras, aquilo que tinha sido vivência bruta e pura, pois uma coisa que eu lhe dissera na mensagem é que eu tinha feito grande esforço para não fazer mentalmente literatura ao longo do trajeto. Isto é: evitei dar forma verbal elaborada às emoções e sentimentos. Tinha mesmo feito um esforço constante de não ceder à tentação de querer fazer poesia nos vários lugares pelos quais passei. Nem à tentação de recolher as impressões com o objetivo de as transformar posteriormente em literatura.

Por isso mesmo, disse ele, agora você o poderá fazer melhor. Nesse sentido é que será um complemento – e eu quase entendi “uma superação” - da viagem.

Nos meses seguintes, foi o que fiz. Mas curiosamente não apresentei a primeira versão do livro a ele, e sim ao meu editor, que é também meu amigo. Queria uma leitura mais isenta, sem o contexto da conversa.

Decidida a publicação, aí sim a enviei ao amigo que me incentivara a escrevê-la. Na sequência, conversamos longamente durante as várias versões, nas quais eu tentava tornar mais claras ou mais próximas as coisas intuídas e vividas.

Desse trabalho, nasceu o livro há pouco lançado. Intitula-se – em homenagem ao momento intenso da contemplação do deserto e do improvável gesto de aceno, que interpretei conforme a minha própria vida, perdas e lembranças – “A Mão do Deserto”. E traz os dois primeiros destinatários ali inscritos, as duas pessoas sem as quais ele não existiria: o editor, Plínio Martins filho, com a sua chancela, que é mais do que meramente editorial; e o meu amigo Alcir Pécora, com o diálogo constante e ainda com o brilhante texto de apresentação nas orelhas da capa.