Um dos textos que me marcaram quando eu comecei a me dedicar seriamente ao estudo do haicai foi escrito em português: “De renga a haicai”, por Teiiti Suzuki. Tive a felicidade de conhecer, embora brevemente, o seu autor. E acho que todo aspirante a poeta de haicai, assim como todo interessado no assunto, pode aprender muito com a sua leitura.
Lembrei-me dele por conta de um comentário de Thomaz Albornoz Neves à minha postagem anterior. E junto com essa lembrança veio outra, de um episódio divertido. E foi este: quando descobri esse texto, fiquei exultante; na sequência do entusiasmo, com dois colegas que tinham interesse pela arte, embora nada familiarizados com o haicai, fiz uma leitura em voz alta do kasen ali traduzido.
Em certo ponto, um deles não se conteve e exclamou: “Esse Bashô é um estraga-prazer, um chato!” E como eu perguntasse por que, respondeu que sempre que o poema começava a ficar mais interessante ele tratava de estragar, por uma operação de desfoque ou rebaixamento. Admirei a justeza da percepção, mas não o julgamento, pois também sinto que é essa a direção que o Mestre parece querer impor ao renga. O seu papel “regulador”. Contenção, modéstia, cotidiano, fuga ao brilho fácil das palavras. A diferença é que, do meu ponto de vista e para a minha sensibilidade, justamente nisso, nesse contraponto corretivo está o melhor desse kasen.
Mas é claro que tanto ele quanto eu podemos estar errados. Por isso mesmo, indico aqui o link onde os eventuais interessados poderão ler esse excelente texto do Prof. Suzuki – a quem presto aqui esta pequena homenagem de reconhecimento – e tirar as suas próprias conclusões.
Ainda revisitando o mundo do haicai me deparo com o desenho que Bashô fez para ilustrar um seu haicai famoso. Aquele que diz: um corvo pousado num ramo seco – entardecer de outono. Ou: um corvo acabou de pousar num galho seco - entardecer de outono. E me lembro: quando li esse haicai pela primeira vez eu não conhecia esse desenho, nem tinha visto como nele vem o haicai grafado quase todo em silabário. Minha imaginação, ao ler, pintou a cena: uma árvore sobre uma paisagem desolada, na qual a ave aparecia em posição de destaque. Talvez na origem dessa fantasia estivesse o corvo do Poe, com sua figura funesta dominando o busto de mármore, e eu apenas o tivesse transposto para um lugar ermo, mas em primeiro plano. Fosse como fosse, a verdade é compus mentalmente uma cena carregada. Algum tempo depois, quando preparava o livro sobre a história do haicai, deparei com o desenho que Bashô fez para acompanhar o haicai e fiquei um pouco perplexo. Então era isso? Aquele passarinho pousado num arbusto que mais parecia um bonsai? E o haicai vinha lá em cima, em duas linhas bem compridas, por conta da forma de escrita escolhida? Não havia dramatismo ali. Pelo menos, não do tipo que eu imaginava na minha cena quase fantasmagórica. Acredito que essa experiência, a princípio um pouco deceptiva, trouxe uma lição e orientou, dali por diante, a minha maneira de imaginar e interpretar as cenas pintadas apenas com palavras nos haicais.
31Maria Lúcia Outeiro Fernandes, Sandra Mara Franchetti e outras 29 pessoas
Acabo de ver um vídeo fantástico, no qual Paulina Chiziane, com os pés junto a uma fogueira, faz um agradecimento comovido a Zeferino Coelho, da Caminho, que a editou em Portugal. Sua voz se embarga um pouco ao mencioná-lo.
A mim, tudo impressionou nesse vídeo. Mas depois, pensando nele enquanto tentava ler uma monografia, ocorreu-me o motivo por que essa última parte do depoimento me moveu mais.
É que eu também tive e tenho a felicidade de ter um editor no sentido pleno dessa palavra. Quero dizer: um editor receptivo, alerta, que lê o que publica, e escolhe, e orienta. E isso, infelizmente, não é uma experiência comum.
Desde uma novela fragmentária até um livro recente de estudos de literatura, passando por quase uma dezena de outros trabalhos, sempre pude contar não só com a leitura atenta e produtiva, mas também com generosidade e compreensão: se eu precisava de 30 páginas prefaciais, podia escrever; se precisasse de 50, também; e houve até casos em que a apresentação de um livro pequeno terminou por ocupar o número absurdo de 70 páginas de texto corrido. Na verdade, nunca sequer perguntei de quantas laudas poderia dispor, nem me preocupei com isso: simplesmente fui escrevendo, até a questão que me propus abordar estar bem delineada ou resolvida, e depois lhe enviei, certo de que tudo seria publicado na íntegra.
Na verdade, mais do que um editor, sempre tive nele um parceiro. No último livro, o que narra uma viagem de motocicleta, foi ele o primeiro leitor da primeira versão. E foi a sua receptividade e o seu “quero publicar!” que me animaram a empenhar os meses seguintes na apuração do texto, de modo que fosse digno de livro.
Mas houve outro momento que pode dar uma ideia mais precisa de até onde vai a paixão pelo livro, por dar forma ao original informe. Uma paixão tão intensa que pode parecer até mesmo tingida de alguma loucura. E foi quando enviei ao Plínio Martins Filho – pois é dele que se trata – um conjunto de poemas malvados, obscenos, pornográficos, de escárnio e maldizer. Enviei-os para deleite privado, pois eram cheios de referências intertextuais, e porque me pareciam bem divertidos, apesar das maldades que deles escorriam. Ou talvez justamente por conta delas.
Ele não teve dúvidas: queria publicar. Eu lhe disse que de forma alguma. Aquilo não era para circular. Era impublicável. Mas ele insistiu e me propôs algo muito surpreendente.
Aceita a proposta, pedi a Alcir Pécora que escrevesse um prefácio para o livro obsceno, no que ele se saiu, como sempre, da melhor maneira possível, com um texto agudo e erudito, que tentava inclusive, eu acho, minimizar um pouco a maldade explícita.
Plínio então contratou um desenhista, que fez ilustrações à altura, ou talvez fosse melhor dizer à baixura, do livro. Com isso compôs um belo volume de capa dura e mandou imprimir exatos 98 exemplares. Ficou com meia dúzia e me deu os demais, de presente.
Esse livro nunca foi posto à venda, nunca foi exibido numa livraria, nunca esteve à disposição de qualquer público, exceto as pessoas a quem o enviei. Um livro, portanto, quase em circuito fechado: do autor para o editor e do editor para o autor, até mesmo um pouco contra a vontade deste último.
Se isso não é uma boa definição do que seja um editor, capaz de submeter todas as questões práticas à paixão de publicar um livro de que gostou, então não sei qual seria.
Paulo Leminski era exatamente dez anos mais velho do que eu. Só o encontrei uma vez, já no final da sua vida, quando veio fazer uma palestra sobre haicai em Piraciaba. Durante ela, projetou uma série de pranchas do livro "Haiku" ou do "A history of haiku", de R. H. Blyth, e fez uma exposição inteiramente baseada na leitura desses livros. Naquela época, eu tinha descoberto os tratados canônicos da escola de Bashô e começava a colocar em causa um tipo de leitura que confinava com a dele. Foi nessa linha que lhe apresentei um comentário/pergunta, e ele, antes de não responder, disse com notável espontaneidade e num tom engraçado que jamais pensaria encontrar em Piracicaba alguém que conhecesse o Blyth. Depois da palestra, conversamos um pouco. Muito pouco. Ele não parecia muito interessado em debater teoria, história ou prática do haicai. Para abreviar a conversa, convidou-me para acompanhá-lo ao bar para onde o levariam, mas senti que não era hora nem local. Algum tempo depois, tive notícia de seu falecimento. Era meados de 1989. Eu estava fora de Campinas. Tinha ido fazer uma palestra. Creio que em Assis. Já tinha entregue à Editora da Unicamp, para publicação, o "Haikai - antologia e história", que sairia no ano seguinte e que eu contava enviar-lhe assim que possível, pois esperava que aquele livro pudesse ser, a seu modo, a continuação do diálogo efetivo que não houve. Demorei para superar o choque. Um estranho choque. Tanto que um mês depois anotei umas linhas que talvez sejam injustas, talvez sejam muito derramadas, talvez apenas insossas, mas que deram conta. Nunca as publiquei, é claro. Em algum momento as enviei, como homenagem meio torta, a Alice Ruiz. Nestas noites de insônia, neste país que a cada dia parece mais desmoronado, a memória faz, de um jeito ou de outro, o trabalho de reconstrução. E resolvi, depois de tantos anos, voltar a estas linhas, este desajeitado pastiche, encharcado de melancólica revolta, que ao mesmo tempo que iluminou o afeto parece ter obscurecido ou carregado o julgamento.
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Eu não gostava muito de você, Leminski.
Você tinha as unhas sujas
E era muitas vezes meio chato.
Falava de haicai de um modo incompleto,
E o seu Jesus era muito concreto.
Também não gostava de seus poemas,
Só de alguns, estou sendo sincero.
Nem da prosa que você fazia, que me aborrecia.
No entanto, estou sentindo a sua falta.
Não sei o que é, mas você faz falta.
Estou aqui como um bobo lhe fazendo versos
E quando vivo mal pudemos nos falar
Sobre pinga, peixe e poesia, em Piracicaba.
Um pouco de judô, um pouco de Blyth, o nosso vovô.
Em 1993 conheci, em Los Angeles, Emmanoel Santos. Sua simpatia me causou profunda impressão e nos estendemos em longa conversa, como se não fosse o primeiro encontro. Quando nos despedíamos, disse-me ele que eu precisava conhecer sua mulher, Gilda, porque ela era como eu. Usou a seguir uma palavra do campo semântico da palavra “dínamo”, que depois pude constatar ser muito apropriada para descrevê-la, mas não a mim, muito mais lento, e acomodado. Gilda estava em Santa Barbara e para lá segui, no final de semana, para encontrá-los na casa de Mecia de Sena. A partir daquele momento estava selada uma das amizades mais gratificantes, que foi a do casal Santos, e estava criada a condição para uma longa troca de correspondência com Mecia, com quem, apesar de ter regressado várias vezes aos EUA e de ela ter vindo algumas ao Brasil, não tive a oportunidade de ter outro encontro pessoal. Nesse diálogo epistolar, que se estendeu até o começo dos anos 2000, tratamos um pouco de tudo: da obra de Jorge de Sena, que me entusiasmara, dos percalços editoriais, dos seus esforços para editar e divulgar a obra e de um projeto, que não consegui levar a cabo, que era ajudar na publicação da correspondência de Sena com Alexandre Eulálio. Várias vezes pensei que valeria a pena publicar as cartas que me mandou, mas alguma confusão nos meus papeis fez com que desaparecessem. Em vão as procurei, porque em duas delas havia informações sobre Camilo Pessanha que teriam sido úteis quando escrevi o livrinho da coleção O Essencial. Lembrava-me, aliás, perfeitamente do que tinha lido, mas sem as cartas não me atrevi a incluir nenhuma informação. Também sentia muito não encontrar essas cartas, por conta de ela ter feito, num comentário justamente a um artigo que escrevi sobre a biografia de Pessanha, observações muito interessantes quanto a fantasias biográficas sobre Fernando Pessoa. Numa dessas noites de insônia, quando a gente termina por fazer algo apenas para passar o tempo e aguardar o começo do dia, finalmente encontrei-as num lugar improvável, onde jaziam há anos fora do alcance. Tive vontade de reuni-las, transcrevê-las e publicá-las numa revista, para preservar a sua memória. E talvez ainda o faça. Mas como não é certo, pensei que valeria logo a pena, sem nenhum aparato nem transcrição, dar a conhecer a mais interessante delas, datada de 24 de março de 1994.
Quando me iniciava na prática do haicai, enviei a Masuda Goga, pedindo sua avaliação, um conjunto de tercetos. Algum tempo depois, surpreso, recebi em casa alguns exemplares de um livrinho em que eles se juntavam. Era um objeto bem bonito, pequeno, quase uma caderneta, medindo 19x10 cm, com 76 páginas. A capa era linda: trazia Sabará, numa pintura de Alberto da Veiga Guignard que, a um olhar mais rápido, até poderia passar por japonesa, ou chinesa. Intitulava-se simplesmente haicais'.
Massao Ohno ou alguém a quem ele atribuiu a tarefa escolheu para texto de orelha um artigo publicado num dos dois jornais de Campinas da época, o Diário do Povo. Intitulado “Haicai: de gênero poético a filosofia”, vem datado de 8 de agosto de 1992 e não traz assinatura.. Eu não sabia e não sei ainda quem o escreveu, nem como chegou ele ao editor que, provavelmente, achou que o autor teria sido eu mesmo.
Na verdade, como já deve ter ficado claro, eu não fazia sequer ideia de como tinha nascido aquele livro e só fui descobrir quando deparei com uma página prefacial em japonês, sem tradução, assinada por Masuda Goga, que mencionava o trabalho que fiz com Elza Doi, Haikai – antologia e história, de 1990, bem como o haicai com que eu tinha ganho um concurso, naquele mesmo ano, acrescentando gentilmente que, embora o haicai (aquele em que os grilos cantavam apenas do meu lado esquerdo) pudesse fazer pensar que eu era velho, isso não era verdade.
Uma curiosidade a mais: em certo ponto do livro intrometia-se um tanka algo desequilibrado e brincalhão, que eu enviara como piada, junto com os haicais, ao Goga. Diz assim:
o peixe nadava
em círculos no barril.
Issa lhe compôs
um haikai bem dolorido
e o comeu depois, cozido.
Não faço ideia de por que Goga resolveu incluí-lo no livro. Nem por que motivo ele veio onde deveria vir o título do conjunto de haicais que se seguem, que integravam um dos dois diários de viagem de que, junto com os avulsos, se compunha o conjunto do material que lhe enviara... Mas confesso que não desgostei.
Vários anos depois, Masuda me enviou outra surpresa: esses mesmos haicais traduzidos por ele para o japonês, na forma tradicional, acrescidos de alguns outros, que lhe tinha enviado depois – mas agora sem o tanka brincalhão. Foram esses que utilizei na publicação de Oeste/Nishi (2008) pela Editora Ateliê, do que resultou que nesse segundo livro se encontrassem repetidos todos os do primeiro.
O que é compreensível, e talvez desculpável, frente ao fato de que haicais, publicado pela Massao Ohno com a Aliança Cultural Brasil-Japão em 1994, foi um livro de cuja preparação não participei, nem tive notícia. Uma surpresa. Um presente inesperado.
Não terminavam aí, porém, as novidades. Ao abrir o livro, vi que Goga escolhera um haicai de Bashô para figurar como epígrafe. A tradução deve ser dele. Diz assim:
Nestes arredores,
a vista sempre descobre
ambientes frescos.
Gostei muito dessa escolha. Fui imediatamente procurar o original e encontrei isto: kono atari me ni miyuru mono wa mina suzushi.
Recebi-o como um gesto de gentileza, um cumprimento generoso, um aceno do velho mestre.
Na verdade, era sobre essa epígrafe que eu gostaria de falar, antes que a memória me levasse para longe dela. Então falarei depois.
Aproveitei o resto do último dia para vagar outra vez pelo deserto (A Mão do Deserto)
A Ateliê Editorial publica a obra A Mão do Deserto, do escritor e professor Paulo Franchetti. Pode-se dizer que é o livro mais pessoal de Franchetti, de sua vasta trajetória literária. Quem concorda com essa afirmação é o também crítico e professor Alcir Pécora, pois no texto de orelha ele escreveu: “O que gostaria de declarar aqui portanto é que, quando Paulo Franchetti conta as suas aventuras solitárias pelo Atacama adentro, ele está falando de uma coisa muito séria para ele: o cerne de um assunto que ele estudou nos livros e também experimentou no corpo a vida toda”.
De forma literária e num relato preciso desde o planejamento da viagem, passando pelo trajeto de 11 mil quilômetros, até o final da jornada, o autor nos leva junto na garupa em uma narrativa imersiva e emocional, colaborando para um itinerário de espaço e tempo, do humano e da máquina, da imensidão da paisagem da América do Sul, de um estrangeiro em busca de um desafio a duas rodas. “Sempre tive vontade de fazer uma longa viagem solitária de moto. Eu já tinha feito muitas viagens pelo Brasil, tanto sozinho como em companhia. A viagem para o Atacama – que é um desejo de quase todo motociclista – foi um projeto sempre adiado. Ora por compromissos profissionais, ora por motivos familiares. Ora por motivos de saúde”.
Em entrevista para a Ateliê, Paulo Franchetti falou sobre a ideia de elaborar a sua aventura em livro: “Quando decidi escrever, surgiu-me a primeira cena de um modo tão natural quanto inesperado. Em vez de começar a contar a viagem desde o começo, de repente me revi praticamente no meio dela, pouco antes de cruzar os Andes, subindo outra montanha”. Ele também comentou sua relação com a motocicleta, sua companheira de viagem: “Sempre tive paixão por máquinas, engenhos, tecnologias. E por aventuras, talvez por conta das leituras da infância”. Além de confessar a sensação pelo trajeto realizado: “Durante a viagem eu tinha publicado notas objetivas. Dicas para os amigos que no futuro se decidissem a seguir aquele caminho. Mas evitei tentar dar forma escrita às sensações, pensamentos e emoções, porque eu queria a vivência bruta e imediata da beleza e da solidão”.
Confira abaixo a entrevista na íntegra:
Ateliê Editorial: Paulo, antes de tudo, como se originou o desejo de viajar de moto pela América do Sul até o Atacama?
Paulo Franchetti: Sempre tive vontade de fazer uma longa viagem solitária de moto. Eu já tinha feito muitas viagens pelo Brasil, tanto sozinho como em companhia. A viagem para o Atacama – que é um desejo de quase todo motociclista – foi um projeto sempre adiado. Ora por compromissos profissionais, ora por motivos familiares. Ora por motivos de saúde.
Um dia, ao sair de uma consulta médica, soube que teria de tomar um remédio anticoagulante pelo resto da vida. Isso porque, para evitar o mesmo destino de minha mãe, já que tínhamos o mesmo problema cardíaco, tinha me submetido a uma cirurgia dois anos antes. Julgava-me recuperado. E estava. Porém não fui dispensado do remédio e, com ele, da recomendação de evitar qualquer situação de risco que pudesse gerar sangramento. Enquanto caminhava de volta para casa, pensei que eu já tinha adiado muito, que o tempo tinha passado muito rápido e que ou era naquele momento ou não seria nunca mais. Lembro-me perfeitamente do momento em que tomei a decisão. Era uma manhã fria, de céu muito azul. Eu subia a pé a rua na direção de casa, trazendo, num envelope, mais um eletrocardiograma, que atestava a condição normal e controlada. Tinha já feito tantos… Naquele dia não o levei comigo: depositei-o na primeira lixeira que encontrei na rua. Quando entrei em casa, fui direto ao computador e tracei a primeira rota, automática, que depois seria totalmente refeita, com base no que fui ouvindo, lendo e me aconselhando com pessoas. Estava decidida a viagem. Ou, melhor dizendo, ela já tinha começado.
P: Complementando a primeira pergunta, como, também, originou a escrita de um livro sobre essa experiência?
R: Durante a viagem eu tinha publicado notas objetivas. Dicas para os amigos que no futuro se decidissem a seguir aquele caminho. Mas evitei tentar dar forma escrita às sensações, pensamentos e emoções, porque eu queria a vivência bruta e imediata da beleza e da solidão. Não queria filtros, mediações. Quando voltei, reatando a conversa com um amigo, perguntou-me ele o que eu tinha feito nos últimos tempos. Disse-lhe que, entre outras coisas e viagens e trabalhos, tinha ido sozinho ao Atacama, de moto. Ele me pediu que lhe contasse algo e eu redigi um breve relato, de imediato, conforme me foram ocorrendo as lembranças principais. Esse amigo, Alcir Pécora – meu parceiro de trabalho de tantos anos -, gostou da narrativa e me animou a prosseguir: a refazer a viagem em palavras. Estávamos em plena fase aguda da pandemia. Minha próxima viagem, até o Peru, tinha sido cancelada. Aceitei a sugestão e durante uns meses me dediquei a rememorar a viagem. Eu tinha as anotações objetivas: lugares, datas, nomes, eventos. E tinha fotografias. Foram bons apoios, mas desnecessários em certo sentido, porque a viagem estava ainda viva e pulsante na minha lembrança.
Curiosamente, quando terminei de escrever a primeira versão, não a enviei ao Alcir. Achei que antes de apresentá-la a ele queria ouvir a opinião do Plínio Martins Filho. Creio que eu queria testar a força do relato com alguém cujo gosto e capacidade de leitura eu admirava, mas para quem eu não tivesse ainda dito nada sobre a viagem, nem mandado fotos ou relatos.
A resposta do Plínio foi animadora: disse logo que queria publicar aquilo. Mas havia algo que ele queria que eu tivesse escrito, algo que faltava e ele não sabia bem o que era.
Na sequência, enviei ao Alcir.
Alcir comparecia na história, porque o livro não trata só da viagem exterior, isto é, do trajeto até o Atacama. Trata também de tudo o que foi aflorando durante aqueles 25 dias: lembranças, emoções, pensamentos fugidios, sensações, alucinações. Num dos capítulos, eu narro um evento motociclístico de que ele fez parte. Mas minha grande expectativa quanto à sua leitura não era saber se ele se sentiria divertido e bem representado no episódio. Além do que sempre tivemos ao escrever juntos ou ler textos um do outro, isto é, crítica rigorosa e construtiva, eu confiava que ele poderia me dizer o que faltava ali, o que era a lacuna que o Plínio percebeu sem identificar claramente.
Alcir leu e logo deu pelo que seria: o que logo explicitei, inserindo o segundo capítulo e estava apenas indicado ou subentendido ao longo da narrativa.
Na sequência, sobre o livro já pronto em primeira versão, tivemos muitas conversas e fico sempre feliz de registrar que, sem elas, o livro provavelmente seria um pouco diferente do que é. O melhor, quanto a mim, foi o fato de apostar, desde o momento da escrita solitária, no diálogo com um leitor assim exigente. Porque eu acho que a gente sempre tem uma imagem de leitor ideal, quando escreve. E embora eu não lhe tivesse mostrado o livro em primeiro lugar, a verdade é que o escrevi tendo também em mente a sua leitura e feedback.
P: Na leitura da obra, somos impactados com a precisão de sua escrita em nos deixar imersos na narrativa e trajeto, como se estivéssemos viajando contigo na garupa, como foi o trabalho e o processo de escrita do livro?
R: Eu não sei bem o que dizer. Quando decidi escrever, surgiu-me a primeira cena de um modo tão natural quanto inesperado. Em vez de começar a contar a viagem desde o começo, de repente me revi praticamente no meio dela, pouco antes de cruzar os Andes, subindo outra montanha. Não sei bem por que comecei por ali, nem mesmo como fui organizando a narrativa e a costura entre o passado e o presente. Eu gostaria de dizer que foi um processo muito consciente, que houve tal planejamento que a metade do livro coincide com um marco importante da viagem. Mas não é verdade. Eu tinha uma trilha para seguir, que eram as anotações tópicas: datas e lugares, basicamente. À medida que ia escrevendo, fui revivendo intensamente os passos e os eventos, e eles se foram encadeando, em lógica própria, com reminiscências ocorridas durante a viagem e lembranças outras que foram surgindo durante a escrita.
P: Há muitas descobertas íntimas que você compartilha com o leitor. O que mudou para o Paulo após essa viagem? E o que podemos extrair da leitura dessa reflexão?
R: Sinto que alguma coisa mudou, mas numa região interna a que não tenho muito acesso. Dizendo assim pode parecer estranho, mas o efeito da solidão e a vivência da vulnerabilidade e do desamparo deixaram marcas benéficas, que só consigo definir mais ou menos com a palavra pacificação. Foi, de alguma forma, uma viagem de reconciliação, de reencontro e de perdão. A viagem de motocicleta é o que mais se aproxima, para mim, do estado de meditação. Uma viagem de 25 dias, com pouco contato com pessoas e muitas horas preenchidas apenas com a contemplação da natureza agreste e com o esforço de apenas estar presente no presente, é como uma meditação estendida. Um estado que é difícil definir, mas fácil de sentir enquanto está durando. Sinto que voltei diferente, mas não posso dizer em quê, nem por quê.
P: Percebemos uma relação entre você e a motocicleta, há muito detalhes na obra de como você a comprou e a reformou para a aventura, conte-nos como começou essa paixão?
R: Sempre tive paixão por máquinas, engenhos, tecnologias. E por aventuras, talvez por conta das leituras da infância. Quando tinha uns 12 anos, um de meus tios apareceu com uma velha motocicleta, que pegara como pagamento de um negócio. Eu adorava aventurar-me em correrias sobre um velho pangaré, mas a máquina logo me seduziu e, enquanto ela esteve disponível, não voltei ao lombo do animal. Essa primeira experiência, interrompida por muitos anos, até eu poder comprar a minha primeira motocicleta, foi a origem de uma paixão pelas duas rodas que nunca arrefeceu e provavelmente nunca vai arrefecer. Além de pilotar, fascinou-me a motocicleta enquanto engenho. Fiz estágio em oficina, comprei livros, ferramentas e aprendi o que me foi possível na arte da mecânica. Compreender o funcionamento, testar vários modelos, compará-los, verificar o melhor de cada um passou a ser também um objetivo e cheguei mesmo a escrever avaliações de motocicletas recém-lançadas que foram publicadas no Facebook e num blog de uma revista especializada.
Houve depois outra fase breve. Tendo feito alguns passeios com o H.O.G. (Grupo de Proprietários de Harley), acabei comprando motocicletas dessa marca e me envolvendo com o grupo. Durante algum tempo, participei inclusive da diretoria do H.O.G. da Tennessee de Campinas. De modo que por algum tempo, além dos passeios solitários, envolvi-me com a vida gregária. Hoje já não vivo no universo Harley-Davidson, mas alguns dos melhores amigos com quem convivo foram o ganho suplementar daqueles bons tempos.
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O AUTOR
Paulo Franchetti foi professor titular no Departamento de Teoria Literária da Unicamp e presidente da editora da mesma universidade por muitos anos. Publicou pela Ateliê Editorial os livros de estudos literários: Estudos de Literatura Brasileira e Portuguesa e Crise em Crise – Notas sobre Poesia e Crítica no Brasil Contemporâneo. Publicou também o livro de ficção O Sangue dos Dias Transparentes e A Mão do Deserto (memória de viagem), além dos livros de poesia: Deste Lugar, Memória Futura, ente outros. Seu livro de haicais, Oeste, representa uma das mais admiráveis experiências na recente poesia brasileira. Para a coleção Clássicos Ateliê organizou também O Primo Basílio, Dom Casmurro, Iracema, O Cortiço, A Cidade e as Serras, Clepsidra e Esaú e Jacó.