domingo, 10 de novembro de 2024

Haicai no Brasil*

 

“apenasmente discípulo fiel de Bashô”, Goga (1)

 


No canto número 12 da Odisseia, vemos Ulisses ter de tomar uma dura decisão. Ele precisa passar pelo estreito de Messina, que divide a Sicília da Península Italiana. Circe, a feiticeira que se apaixonou por ele, explica a situação. De um lado do estreito vive o monstro Cila. A história de Cila não vem ao caso aqui. Basta saber que ela foi uma bela ninfa, transformada em monstro por uma feiticeira furiosa. O que realmente importa é que Cila atacava os navios, devorando os marinheiros, quando eles passavam muito perto do rochedo onde ela vivia. Mas por que algum navio passaria junto a ela, se o perigo era tão grande? Porque do outro lado do estreito estava um monstro ainda pior: Caríbdis, que de tanto em tanto sugava para uma gruta profunda as águas do mar, para depois cuspi-las. Com isso destruía por completo as embarcações.

Ulisses foi aconselhado por Circe a evitar Caríbdis e ceder parte da tripulação a Cila, o que ele fez, perdendo 6 homens, devorados pelas 6 cabeças do monstro. Desde a Odisseia, “andar entre Cila e Caríbdis” é uma metáfora para os perigos de uma travessia na qual haverá necessariamente perdas e/ou desastres. 

Eu poderia ter escolhido uma fábula japonesa de mesmo sentido, se conhecesse uma. Como não conheço, vali-me da nossa própria tradição para falar de algo que me parece importante numa outra travessia: a do haicai japonês para o Brasil, passando pelo estreito do idioma, entre o rochedo da forma fixa e o sorvedouro do exotismo superficial.

Mas antes de prosseguir, gostaria de dizer o que me parece de fato importante nessa navegação, nessa odisseia do haicai, que saiu do Japão quando terminou o isolacionismo da era Tokugawa e veio até a grande floração dos grêmios espalhados pelo Brasil, passando pela orientalização da cultura pop na segunda metade do século passado.

As perguntas que sempre fiz a mim mesmo, desde quando tomei contato com o haicai japonês foram estas: O que há de novo no haicai? O que dele valeria a pena aproveitar e incorporar na nossa própria tradição? E daí a pergunta final: vale a pena fazer haicai em português ou em outra língua ocidental? Se valer, o que a experiência mostra? Quais os frutos?

Na aclimatação do haicai, a primeira questão que se apresentou foi a forma exterior do texto, a sua versificação. A convenção adotada foi que o haicai em português seria um terceto composto por um verso de cinco sílabas, um verso de sete sílabas e um último de cinco. Trata-se de uma convenção que não leva em conta que em japonês o haicai não é composto por 17 sílabas, mas por 17 moras, isto é, 17 unidades de tempo. Uma nasal, por exemplo, conta duas unidades. Em português, as unidades de medida são as sílabas, pronunciadas à maneira normal, com as contrações da oralização. E só se contam até a última sílaba forte, ou tônica. 

Para muitos, isso define o haicai: um terceto de 5-7-5 sílabas contadas à nossa maneira. Mas seria isso que ganharíamos com a importação e aclimatação do haicai? Um terceto sem rima nem títulos, com versos contados à maneira portuguesa e de extensão diversa? Não parece valer a pena...

Para um bom poeta como Guilherme de Almeida não valia. Tanto que ele criou dois procedimentos em todos os seus haicais: um esquema interessante de rimas obrigatórias (uma unindo os versos primeiro e terceiro, outra interna ao verso segundo) e um título.

Já para aqueles que se dedicam ao haicai de molde tradicional, o terceto continua sem rima nem título. Para a maior parte dos praticantes, o traço formal que o caracterizaria como haicai é a composição por justaposição ou por tópico-e-comentário. Usualmente, o primeiro ou o último verso constitui uma notação e os dois outros constituem uma frase só. Na maior parte dos casos, a contraposição é feita entre uma anotação genérica e uma que se refere a um dado momento ou sensação precisa. E o registro do momento preciso na sucessão das estações, por meio de uma palavra convencional, é outra determinação formal desse tipo de haicai.

Isso é o que temos, formalmente. Então eu pergunto, como sempre me perguntei: é só isso o que queremos importar, quando nos pomos a fazer haicai em português?

Não creio. Penso que há algo mais no haicai que nos chama a atenção e nos faz querer incorporá-lo.

Guilherme de Almeida apontou esse algo mais, quando definiu o haicai desta maneira: “o haikai é a anotação poética e sincera de um momento de elite”. (2) E frisou um ponto importante ao particularizar: “anotação breve e poética. E pela sua qualidade de ser poesia espiritual, sincera, não pode deixar de ser feita no momento: no verão não se faz um haikai da primavera. Além do mais, é de um momento de elite.”

Há aqui dois pontos a destacar. O primeiro é que o haicai é uma “anotação”. Guilherme de Almeida captou bem esse lado do haicai japonês: um registro, uma anotação, algo feito no momento. O segundo é que o que é anotado é um momento especial. Ele diz “de elite” como quem diz: um momento de melhor qualidade. E a questão da qualidade aparece logo ligada ao espiritual. Haicai é anotação de um momento especial, singular, e é anotação sincera, imediata.

Nisso, ele está de acordo com a mais importante atitude definida pela escola de Bashô, que é aquela que diz que quando se está embebido de haicai, o espírito seleciona da realidade externa aquilo que se casa com o momento, e a poesia flui. Se fosse na linguagem de T. S. Eliot, diríamos que o haicai é a composição que se faz pela anotação imediata dos correlatos objetivos.

Do meu ponto de vista, estamos agora já em plena travessia do Japão para o Brasil, pois já temos algo novo: anotação imediata de um momento espiritual, estrutura bipartida do poema composto por justaposição, e pertencimento a uma estação do ano (que Guilherme de Almeida muito corretamente vincula à sinceridade e imediatez da anotação)

Algumas décadas depois de Guilherme de Almeida, vimos a orientalização da cultura pop no mundo todo. Desde a Califórnia, o Budismo zen se espalhou pelo Ocidente. D. T. Suzuki e Alan Watts vincularam o haicai ao zen, no que foram precedidos pela figura maior na difusão do haicai no Ocidente. R. H. Blyth.

Blyth impregnou a contracultura americana e derivada. No icônico romance Vagabundos iluminados, de 1958, Jack Kerouac o menciona como leitura inspiradora. Entre nós, Paulo Leminski dizia que por mais de 10 anos o livro de Blyth tinha permanecido como seu livro de cabeceira.

Conhecendo profundamente o japonês, Blyth não se preocupou, nas traduções, com a métrica. Centrou sua atenção na atitude espiritual – que ele denominava Zen – e nos sentidos que derivavam da composição por justaposição.

No Brasil, depois de Guilherme de Almeida, dois poetas responderam pela divulgação do haicai. E tiveram o mérito de fazer do haicai um interesse geral. 

O primeiro foi Millôr Fernandes, que denominou haicai um terceto sem métrica, sem justaposição e sem palavra de estação. Seu haicai reside inteiramente na “sacada”, na anotação de um momento de elite, se nessa definição incluirmos a percepção humorística.

O segundo foi o já mencionado Paulo Leminski, que também praticou um haicai sem determinação formal, igualmente centrado na “sacada”, na esteira de Millôr. Mas nele a “sacada” não é mais anotação de momento de elite, como ainda é, em grande medida, para Millôr; mas anotação “esperta”, animada, que pode se sustentar apenas num trocadilho, num jogo de palavras, numa alusão política ou numa sonoridade interessante. Nos seus melhores haicais, entretanto, a “sacada” busca também um alcance existencial, almeja a algum tipo de iluminação.

Outras perspectivas também sopraram o barco do haicai entre nós. 

Uma delas foi a formalista, herdada da aproximação de Haroldo de Campos ao haicai. Para Haroldo, informado pelo trabalho de Fenollosa sobre o ideograma chinês, o haicai é basicamente ideogramático. Sua tradução busca trazer à superfície os sentidos insinuados ou entrevistos nos elementos que constituem os kanjis. Essa perspectiva me parece menos interessante, principalmente porque o uso de kanji ou hiragana na anotação do poema depende seja de quem anota o poema dito pelo poeta, seja da necessidade formal de composição do quadro em que o haicai surge, em diálogo com a imagem. Finalmente, em parte oriunda da mesma fonte, uma pressuposição que se tornou muito difundida. Se, para Pound, poesia é condensação, então o haicai seria o suprassumo da poesia, porque ele seria essencialmente síntese, no sentido de dizer o máximo com o mínimo – e nisso os kanjis desempenhariam um papel central. Mais ou menos como uma fórmula física como E = MCsintetiza toda uma dedução longa.

De minha parte, como disse, não é a mais interessante, pois perde a diferença, perde aquilo que vem de fora do nosso universo referencial, a essência do exotismo como percepção dos nossos limites, como experiência radical de alteridade. 

Com Leminski, Watts, Suzuki e Blyth, eu acredito que se destaca algo que o haicai de Bashô pressupõe e nos ensina, como prática coletiva ou individual: que a poesia pode ser um caminho de desenvolvimento espiritual. Ora, para isso, como vemos nos livros da escola de Bashô, é preciso um intenso treinamento, seja da forma, seja da atitude. A forma pode ter interesse, mas é a atitude que me encanta mais: o apagamento do “eu”, a simplicidade, a disposição generosa frente ao mundo. Desse ponto de vista, haicai (para repetir uma fórmula criada há tempos) não é a arte de dizer o máximo com o mínimo, mas sim a arte de, com o mínimo, produzir o suficiente para a integração do leitor no texto e na experiência que o originou.

E aqui voltamos a Guilherme de Almeida: anotação sincera de um momento de elite. E voltamos ao começo desta apresentação, à metáfora com que abri estas reflexões. Porque de fato eu entendo que o haicai brasileiro navega ainda hoje, como navegou desde sempre, entre Cila e Caríbdis. 

O monstro mais perigoso, do meu ponto de vista, é a obsessão da forma fixa. Digo isso porque muitas vezes a obsessão do 5-7-5 termina por descuidar ou mesmo por matar uma parte importantíssima da tripulação do navio: em nome da métrica às vezes se sacrifica a naturalidade de expressão, com supressão de artigos e formação de frases que parecem produzidas por um falante de outra língua; sacrifica-se também frequentemente a anotação plena, porque a descrição pode exigir mais sílabas, ou mesmo, em direção contrária, a economia da linguagem, porque se a descrição ou o registro é breve o poeta não deveria se ver obrigado a preencher a medida. 

O mesmo perigo de formalismo, eu creio, se encontra quando se tem exagerada obsessão pelo kigo. No Brasil não temos tradição generalizada de palavras de estação, porque o país é muito vasto em latitude e também em longitude. Por exemplo: o que é inverno no Amazonas e o que é inverno em Santa Catarina? Como é o registro das chuvas e dos ventos no Pantanal, no interior de São Paulo, na região de Pelotas ou no Nordeste? E as festas populares? Sem a preparação adequada – trabalho ainda em curso, cujo primeiro passo foi dado por Goga e Teruko Oda – e sem vincular decididamente o kigo a um clima espiritual ou sensação bem definida, o haicai brasileiro poder perder mais esse tripulante tão importante (o seu piloto, por assim dizer), que é a imediaticidade da notação, pois ninguém anota espontaneamente um nome científico ou pouco conhecido de uma árvore ou flor, e é difícil fazer do centro do poema um fenômeno sazonal desconhecido da maior parte dos leitores. Mas se essa é Cila, devemos notar que mesmo com tripulantes a menos, o barco do haicai tem navegado muitas milhas, de norte a sul, pois todos os anos são publicados muitos volumes. A quantidade, entretanto, não nos deve esquecer do destino que queremos para esse barco, e até onde gostaríamos de chegar.

Do outro lado do estreito está Caríbdis, que identifiquei com o exotismo superficial. Ali reside, por exemplo, a arrogância de tantos iniciantes que se arvoram o direito de chamar de haicai o que nada tem a ver com o haicai japonês. “Haicai é o que eu chamo de haicai” – dirá essa Caríbdis, ansiosa por auferir os lucros do nome sem o ônus do esforço espiritual. Mas há também outra, que é a que reduz o haicai a pura “sacada”, a puro “lance zen”. Suas vítimas, aqui também, são a naturalidade da expressão, e principalmente a modéstia, a contenção que caracterizam o haicai da escola de Bashô. 

Mas chega de metáforas, de Cila e de Caríbdis. O barco do haicai não afundou no redemoinho, nem sua tripulação foi dizimada. Continuou a travessia desde o Japão para a língua portuguesa e a cultura do Brasil. Somos a prova, e somos a tripulação atual. Algumas partes de nós foram, em algum momento – e digo isso tomando a mim mesmo como exemplo –, ameaçadas por um daqueles monstros. Nossa espontaneidade e nosso treinamento espiritual foram às vezes ameaçados pela vaidade de ser “autor” ou pela vaidade de acreditar que só nós temos a chave para o cofre do haicai. Mas o esforço prevalece e nos reunimos em busca de apoio mútuo e ensinamento, em muitos grêmios, concursos e reuniões como esta.

Quanto a mim, o destino e a carga preciosa que o barco do haicai nos traz são claros. Seu destino é a nossa consciência, nossa forma de usar a linguagem, de estar no mundo e mesmo de estar na linguagem. Sua carga valiosa é o exercício da modéstia, a postulação da arte como caminho de vida, a radicação da poesia na experiência sensória e o ideal de produzir um poderoso efeito estético e emocional pelo agenciamento dos correlatos objetivos, pela seleção daquilo que o espírito, embebido de haicai, recorta da realidade exterior e faz confluir para a forma do verso.

Se eu fosse ousado o suficiente, comporia um haicai para encerrar esta fala com um elogio do registro objetivo do aqui-e-agora como razão suficiente para essa poesia que nos fascina. 

Como não sou, faço falar por mim um conhecido haicai de Issa:

 

 

Apenas estando aqui,

Estou aqui – 

E a neve cai.

 

 

 

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* texto lido na Bunkyo, no dia 09/11/2024 

Referências:


(1)   Goga. Frase final no documentário “Goga, discípulo fiel de Bashô”

Disponível em: https://www.kakinet.com/caqui/gogav.shtml#parte2


(2)    Guilherme de Almeida. “Haicai – poesia de estação”. Entrevista concedida a Genésio Pereira Filho em 29 de setembro de 1941.

Reproduzida em: https://www.kakinet.com/caqui/gaen.htm


segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Papo meio sério

 

Um dos princípios bem conhecidos do New Criticism, que depois também foi atuante na crítica estruturalista e pós-estruturalista, é a recusa do que se denominou “falácia intencional”. Um texto, diziam, deve ser entendido, estudado e mesmo avaliado sem recurso à intenção de quem o criou. Sem, na verdade, sequer pressupor que a intenção possa ter alguma importância. Junto com a “falácia intencional” vinha a crítica a outra falácia, a emotiva: um texto não deveria ser lido em função da emoção que o autor teria sentido e que o determinaria de alguma forma. O texto é um objeto de linguagem e a atenção dos formalistas estava no jogo dos elementos que o constituem, especialmente nas tensões internas que o organizam. Na época do sarampão estruturalista, o ideal da história literária seria uma história de formas, na qual até mesmo o nome dos autores poderia ser suprimido dos textos alinhados num eixo cronológico.
Mas agora os tempos são outros. Temos máquinas que podem fazer poesia. Máquinas que podem emular estilos e que podem criar objetos textuais complexos. A questão que emerge é: quando lermos um livro de poesia, quando nos aproximarmos de um, vai ser indiferente saber se foi escrito por um ser humano ou por uma máquina? Poderemos ainda orgulhosamente nos apegar ao texto e dizer que a intenção não importa? E poderemos ainda desprezar tão seguramente a ideia de que um texto foi produzido a partir de uma emoção, ou mesmo num momento de emoção? Por fim, será possível sonhar com uma história literária que só leve em conta os textos?
Creio que de agora em diante, com o aprendizado progressivo e rápido das máquinas, a produção de textos bem escritos, bem estruturados, complexos, vai dar saltos sucessivos. Creio mesmo que pode chegar um momento em que não consigamos saber se um autor existe fisicamente ou não. E podemos nos deliciar com poemas produzidos por máquinas. Mas será a mesma coisa?
Dizendo de outra forma, apesar dos ditames da teoria, mesmo nós, os profissionais das Letras, quando nos aproximamos de um poema pedimos apenas formas, ritmos, tensões internas, harmonias ou dissonâncias? Estaremos preparados para prescindir do contrabando da aposta na intenção e na emoção originária?
Uma frase banalizada é “o estilo é o homem”. Mas e quando o estilo puder ser uma máquina, ainda será estilo? Em que sentido?
É um assunto sério, mas talvez a melhor forma de lidar com ele agora seja com o humor e a piada da redução ao absurdo, como nós estamos fazendo aqui nesta página há alguns dias, mesmo que, apesar da piada, possamos gerar só cansaço com a monotonia do assunto.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Saudação

 Creio que esta será a última provocação no tópico (mas não só...)


Numa língua que conheço mal ou da qual tenho apenas rudimentos, prefiro ler traduções literais de poemas, ao lado do texto original.
Nisso, o meu modelo – eleito ainda na adolescência – foi a antologia de Pablo Neruda publicada pela Editora Sabiá: o texto do original em versos, no corpo da página, ocupando o lugar principal; em rodapé, humilde, em texto corrido, com a quebra dos versos marcada por um sinal gráfico, a tradução plana, literal. Foi o modelo que sempre depois tentei conseguir de poetas que me interessavam, ainda que a prosa fosse não em português, mas em espanhol ou francês.
Porque em línguas ocidentais não é difícil oralizar e perceber o ritmo e as sonoridades. E tendo o texto em prosa literal, usufruir das duas coisas: a sucessão das palavras, imagens e conceitos, e a sucessão, a repetição e a variação dos sons e mesmo a disposição das letras. Por isso mesmo, quando organizei o livro “Haikai – antologia e história”, tratei de fornecer ao leitor a tradução palavra por palavra ao lado de outra, mais escorreita, mas ainda assim literal.
Já as traduções que buscam recuperar aquilo que em certa época se denominou “função poética”, ou – como se diz - recriar ou transcriar o original, poucas vezes me atraem ou convencem. Primeiro porque não sei o que poderia haver a ganhar em recuperar uma rima à custa da mudança do registro da palavra; ou uma aliteração, alterando a imagem; ou um acoplamento sintático de verso a outro quebrando a relação determinada entre frase e verso, ou provocando inversões que não há no texto original.
Para mim, desde que eu consiga ver isso tudo no original, e juntar o que vejo (ou ouço) com o que a tradução mais elementar me mostra, já está bom. E se o tradutor do texto em prosa generosamente acrescentar notas para esclarecer o que achar que merece ser esclarecido nas opções que fez, melhor ainda.
É o meu limite. E se na poesia lírica prefiro a tradução literal, acompanhada do original, mais ainda na tradução da épica tenho predileção pela prosa o mais possível literal.
Por exemplo, eu gostei de ler a Ilíada, na adolescência, na tradução em versos de Carlos Alberto Nunes, que me seduziu pelo ritmo. Tanto que, enquanto a lia, qualquer trabalho escolar ou mesmo carta, terminava por se conformar ao batidão de “logo que aurora de dedos de rosa surgiu matutina” ou “todos as mãos estendiam tentando alcançar as viandas” – versos que posso estar referindo errados, mas que se fixaram assim na minha memória. Mas estou seguro de que preferiria a ter lido desde sempre numa boa tradução em prosa corrente.
Assim como preferi, depois de ter lido a Eneida em versos, a prosa da tradução de Giulio Davide Leoni e Neyde Ramos de Assis. Foi essa a Eneida que mais me satisfez e satisfaz como leitor, ao longo do tempo, e foi ela a que usei quando, anos depois, pude compreender um pouco de latim e assim ler em paralelo. Por isso, na escala das minhas preferências, traduções como as Odorico e seus descendentes ocupam um lugar bastante modesto. Há quem garanta que ali se recupera muito da sonoridade ou do sentido das palavras do grego, e do latim. Não sei avaliar, e penso que possam ser, por isso mesmo, bom material de estudo. Mas a verdade é que nunca consegui ler nenhuma delas de modo extensivo, só por amostragem – e ainda assim sem entusiasmo nem prazer.
Mas me ocorreu hoje esse tópico por conta da disponibilidade de máquinas inteligentes, capazes de traduzir muito melhor do que o velho Google Tradutor.

Então me lembrei deste poema de Mallarmé:

Salut

Au seul souci de voyager
Outre une Inde splendide et trouble –
Ce salut soit le messager
Du temps, cap que ta poupe double
Comme sur quelque vergue bas
Plongeante avec la caravelle
Ecumait toujours en ébats
Un oiseau d’annonce nouvelle
Qui criait monotonement
Sans que la barre ne varie
Un inutile gisement
Nuit, désespoir et pierrerie
Par son chant reflété jusqu’au
Sourire du pâle Vasco.

A mim esse poema interessou sempre por dois motivos: por ser de fato um belo sonetilho, em versos de 8 sílabas; e por ter sido composto quando dos quatrocentos anos da viagem de Vasco da Gama, no mesmo ano, portanto, em que Camilo Pessanha publica o díptico “San Gabriel”.

A tradução mais conhecida talvez seja esta, de Augusto de Campos:

Brinde

À só tenção de ir além de
Uma Índia em sombras e sobras
− Seja este brinde que te rende
O tempo, cabo que ao fim dobras

Como sobre a vela da nave
Mergulhando com a caravela
Espumante a ávida ave
Da novidade sempre vela

A cantar com monotonia
Sem jamais volver o timão
Uma jazida ali à mão
Noite demência e pedraria

Que se reflete pelo casco
Ao riso pálido de Vasco.

Gosto muito pouco do resultado. Primeiro porque é aquele tipo de tradução em que, em nome de uma aliteração ou uma rima, se sacrifica uma parte importante do sentido, algo que parece constitutivo do seu sentido.

O poema é um brinde a uma coisa e não a outra. Mallarmé brinda à viagem, não ao objetivo dela. À viagem e não à conquista de um lugar luxuoso e turvo. Brinda apenas à inquietação de viajar, a uma viagem portanto além da Índia. O brinde ocupa os dois primeiros versos. O terceiro se refere ao próprio brinde e diz que o fato de ser feito quando é feito o torna uma espécie de mensageiro do tempo. Vasco da Gama dobrou o tempo, ultrapassou-o, e não só ao Cabo das Tormentas.

Na tradução de Campos, o tempo é que rende (?) um brinde ao navegador. E a Índia comparece agora “em sombras e sobras”, o que não ecoa mais a atração do luxo e a confusão que o verso de Mallarmé lhe atribuía como atributos. É a fissura da aliteração, embora não haja aliteração nesses versos. É, portanto, o tal perde-ganha: há uma aliteração em outro verso, que é irrecuperável, então se compensa onde não há.

Há outros problemas, do meu talvez limitado ponto de vista. A ave da nova anunciação, ou seja, a anunciação de uma nova era ou novo mundo, vira uma ave da novidade, que é sempre ávida – talvez de mais novidade. Ou de mais aliteração.

Também fica um pouco obscurecida a ideia de que nada fazia o navio perder o rumo (esse é um dos sentidos da palavra gisement – que é ainda jazida e jazigo – o ângulo formado entre o eixo longitudinal (ou linha de proa) de um navio e a direção de um ponto externo (fixo ou móvel). Na versão de Augusto, em vez de não desviar nada do rumo pré-traçado, temos “volver”, que dá ideia de retorno ou mudança voluntária de rumo. Tampouco gosto do “casco” rimando com Vasco, mas isso já é o de menos.

Mário Faustino fez uma tradução mais literal (tenho anotada num caderno, mas não encontro o livro, por isso desculpem alguma imprecisão):

Com a única inquietação de viajar
Para além de uma Índia esplêndida e perturbada -
Seja esta saudação o mensageiro do tempo
Cabo que tua popa dobra

Como certa verga baixa
“Mergulhante” junto com a caravela
Espumava sempre em folguedos
Um pássaro de nova anunciação

Que apregoava monotonamente
Sem que variasse a cana do leme
Um inútil jazigo
Noite desespero e pedraria

Por seu canto refletido até o
Sorriso do pálido Vasco.

Por fim, uma tradução de máquina. A de Claude.ai:

Saudação

Apenas com ânsia de viajar
Além de uma Índia esplêndida e turva -
Esta saudação seja a mensageira
Do tempo, cabo que tua popa dobra

Como sobre alguma verga baixa
Mergulhando com a caravela
Espumava sempre em movimentos
Um pássaro de novo anúncio

Que gritava monotonamente
Sem que o leme variasse
Um inútil jazigo
Noite, desespero e pedraria

Por seu canto refletido até
O sorriso do pálido Vasco.

Prefiro ler na de Faustino, embora o primeiro verso me pareça melhor na de Campos. Mas para aqueles poemas que eu não puder ler no original e que Faustino ou outro que ensaie uma tradução literal não traduziu, é bom saber que agora tenho a tradução artificial.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

T. S. Eliot, Fernando Pessoa e a inteligência artificial


 

A IA pode escrever boa poesia? Essa é uma questão candente. Boa parte das respostas negativas se baseia na falta de sensibilidade da máquina. Ela faria apenas pastiches de coisas já ditas. À IA faltariam duas coisas: capacidade de produzir o novo, isto é, originalidade; e experiência humana. Não há por trás do texto produzido por IA, isso é claro (por enquanto), um ser consciente, não há mente, apenas algoritmos, grades de programas, regras de pesquisa e combinação e adaptação do já escrito. Entretanto, valeria a pena mediar as reações pela leitura de um texto muito conhecido e influente, “A tradição e o talento individual”. Por exemplo: “A poesia não é uma liberação da emoção, mas uma fuga da emoção; não é a expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade.“ Também há um outro texto de Eliot que podia ser convocado aqui nesta provocação. Um sobre Hamlet, no qual ele fala do “correlato objetivo”. Isto: “A única maneira de expressar a emoção em forma de arte é encontrar um correlato objetivo, em outras palavras, um grupo de objetos, uma situação, uma cadeia de eventos que serão a fórmula dessa emoção particular, de modo que quando os fatos externos, que devem terminar em experiência sensorial, são fornecidos, ele evoca imediatamente a emoção.” Eu creio que o “correlato objetivo” tem muito a ver com o haicai. Houve, inclusive, quem aventasse a hipótese de Eliot ter formulado a ideia a partir do contato com a poesia oriental. Não duvido, nem acredito, e essa não é a questão. O que eu queria sugerir é que a IA talvez possa ser uma máquina eliotiana de compor poemas. Assim como ele fez em “The Waste Land”, pastichando e incorporando outros poetas; ou como fez em Prufrock, no que toca ao correlatos objetivos; ou ainda nos Quartetos, quando a paráfrase de textos bem conhecidos gera um tom que para alguns parece até muito sentencioso. O que quero dizer é que não penso que um poeta como Eliot fique desmerecido se o descrevermos como uma máquina muito sofisticada de seleção e agenciamento e incorporação dos textos do passado, isto é, da tradição. Se for assim, não creio que seja impossível que um supercomputador (uma máquina neural) não seja capaz de produzir poemas do mesmo nível, se considerado apenas o aspecto técnico. Mas o que mais há que possa ser avaliado objetivamente em arte além da realização técnica? O que nos leva a outra questão: a perplexidade quanto ao que o leitor tem à sua frente (isto foi produzido por IA ou por humano?) pode, a longo prazo, fortalecer uma tendência já sensível, que é a de valorizar o texto diretamente vinculado a uma experiência. Temos visto já a grande ascensão de um tipo de texto, e do interesse acadêmico nele: o texto de testemunho. De modo que aqui vai uma última provocação: se o interesse for pelo vivido, pelo testemunhado, e se a desconfiança quanto ao texto “impessoal” aumentar, pode-se dar uma curiosa inversão, que é a de preferir os textos menos claramente literários, menos realizados literariamente, desde que mais testemunhais. O que teria um ar de família com o teste que se faz hoje para saber se um artigo foi produzido por humanos ou por IA: se não houver erro, a chance de ser IA é grande. Por isso mesmo, alguns vendedores de facilidades já anunciam textos de IA em que a própria IA introduz pequenos deslizes, de modo a emular o humano. Mas há ainda um outro exemplo que eu queria trazer aqui. Fernando Pessoa escreveu em vários estilos. A poesia de Caeiro pouco tem a ver com a de Álvaro de Campos, por exemplo. Pessoa criou as personalidades e até fez delas horóscopos, que é uma forma de conseguir parâmetros “pessoais”, que seriam juntados a parâmetros estilísticos. Qual a experiência real do poeta? A que aparece em Caeiro ou nos poemas iniciáticos de Pessoa ele-mesmo? Onde ele está sentindo, onde ele está inteiramente como pessoa? Ora, se a beleza dos poemas dos heterônimos é produzida com base em uma espécie de matriz que inclui desde o horóscopo até a suposta formação filosófica, passando pela imaginada experiência de vida e pelo diagnóstico do tempo de modo a inserir cada um dos heterônimos no debate contemporâneo, por que uma IA sofisticada não poderia fazer o mesmo? Nós nos emocionamos com os poemas desses seres fingidos por um humano, por que não nos emocionaríamos com os que viessem de um ser fingido por uma máquina?

 

 

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Inteligência artificial - 4

 Continuando o assunto do post anterior sobre poesia contemporânea… Pedi à Claude.ai que reescrevesse uns versos horrorosos (compostos em pastiche piorado do que tenho lido aqui e ali). Ela não produziu bons poemas. Mas estamos apenas no começo da viagem, e o domínio linguístico da máquina já é muito admirável – especialmente nas justificativas que ela apresenta para as escolhas que fez. Fico me perguntando como serão os livros de poesia apresentados em concurso de agora em diante, à medida que a IA for se tornando mais conhecida, acessível e aperfeiçoada.

Eis aqui:

** Claude.ai: Bom dia! Como posso ajudar você hoje?

** PF: Reescreva isto em boa poesia: Meu amor me deixou, meu dia estragou, / Tenho saudades da infância, quando / Tudo que eu queria era crescer. / Agora que cresci, me desiludi. / Quero ser criança de novo, / Mas como se tudo mudou?

** Claude.ai:

# Paradoxo do Tempo

Na amplidão vazia deste quarto escuro,
Onde ecoam passos do amor que partiu,
Mergulho em memórias de um tempo mais puro,
Quando o futuro era sonho que fluiu.

Criança inquieta, eu corria sem medo,
Ansiando pelo dia de enfim crescer.
Guardava nos olhos um doce segredo:
A pressa insana de adulto ser.

Ironia do tempo, agora entendo:
A infância era ouro que não soube ver.
Na pressa de crescer, fui me perdendo,
E hoje, adulto, só quero esquecer.

Como voltar ao jardim da inocência,
Quando o mundo era feito de aquarela?
O tempo transformou minha existência
Numa tela em tons de cinza, já não bela.

Ah, quem me dera ter a sabedoria
De saborear cada momento então!
Mas o tempo, em sua dança fugidia,
Só deixou saudade no coração.

Transformei seu texto em um poema mais estruturado, usando versos em quartetos com rimas alternadas (ABAB). O poema mantém os temas centrais da sua versão original - a perda do amor, a nostalgia da infância e o desejo de retornar ao passado - mas desenvolve essas ideias com maior profundidade poética e imagética mais elaborada.

Utilizei metáforas como "jardim da inocência" e "mundo de aquarela" para representar a infância, e contrastes como os tons de cinza da vida adulta para enfatizar a mudança. O título "Paradoxo do Tempo" reflete a ironia central do poema: quando éramos crianças, queríamos crescer; agora adultos, desejamos voltar a ser crianças.

Gostaria que eu fizesse alguma modificação no poema?

** PF: Reescreva em terza rima

** Claude.ai:

# Ciclos do Tempo

No vazio do quarto abandonado,
Onde o amor seus rastros já desfez,
Contemplo o tempo que foi sonhado.

Na infância, tudo era pequenez -
Queria ser maior, forte, crescido,
Correndo contra o tempo, de uma vez.

Mas hoje, com o coração ferido,
Percebo o erro dessa pressa vã:
O paraíso estava ali, perdido.

A inocência que tive, tão sã,
Escorreu por entre dedos distraídos,
Como orvalho que evapora de manhã.

Os sonhos de criança, coloridos,
Cederam lugar à realidade
E seus tons de cinza desabridos.

Agora busco aquela liberdade
Que tinha e não sabia preservar -
Do tempo jovem sinto só saudade.

Mas como poderia retornar
Ao jardim puro da minha inocência,
Se o tempo não nos deixa voltar?

Resta aceitar essa dura ciência:
Que a vida flui num único sentido,
E nela aprender nova sapiência.

Reescrevi o poema em terza rima, uma forma poética que Dante imortalizou na "Divina Comédia". Cada terceto segue o esquema ABA BCB CDC, etc., onde cada verso do meio (B) rima com os versos externos (A) do próximo terceto.

O poema mantém a temática original, mas a forma da terza rima permite um desenvolvimento mais narrativo e fluido da história, como um rio que segue seu curso natural - o que combina bem com a temática do tempo que não volta.

Gostaria que eu fizesse algum ajuste na nova versão?

** PF: Não.

Poesia contemporânea

 Tenho lido bastante poesia contemporânea brasileira. Meu interesse no gênero me levou, por exemplo, a participar como jurado do Prêmio Jabuti, na categoria em que se inscrevem poetas que publicaram no ano passado seu primeiro livro. Foi uma experiência muito interessante, pois encontrei coisas boas. A leitura de tantas obras, entretanto, me fez notar algumas coisas. Primeiro, que há algumas editoras muito ativas, que publicam poesia aparentemente sob demanda (e pagamento) do autor. Não penso que isso seja ruim. Do meu ponto de vista, quanto mais poesia publicada, melhor. De modo geral, má poesia ainda me parece melhor do que nenhuma poesia. Independente da qualidade do que vem encadernado, e apesar das frequentes dedicatórias à mãe e agradecimentos em primeiro lugar a Deus, seguidos da lista dos parentes todos, e apesar principalmente de prefácios, posfácios, orelhas e quartas-capas laudatórias, que parecem agora partes necessárias de qualquer livro de poesia, é de alguma forma gratificante perceber que tanta gente busca se expressar em versos. Mas minha segunda observação tem uma zona de contradição com a primeira. É que em um número muito grande de casos dá para perceber que o autor tem um domínio precário do idioma e dos recursos poéticos. Na verdade, tenho frequentemente a impressão de que muitas pessoas escolhem a poesia porque não têm recursos linguísticos para sustentar a prosa. É que em prosa recortada em linhas irregulares as carências tendem a ser interpretadas (ou desculpadas) como intencionalidade expressiva. Na verdade, essa parece ser a esperança do poeta. Já na prosa corrida, a conversa é outra: a construção dos parágrafos, o desenvolvimento de cenas ou argumentos, os elementos de ligação entre as partes do discurso, a escolha e manejo do tom, tudo isso demanda trabalho, treinamento, competência linguística. Então a necessidade ou vaidade de se expressar parece escolher a poesia porque ela surge como o caminho mais fácil para a encadernação de sentimentos e ideias. Isso é bastante chato, porque o resultado normalmente é bastante ruim. Mas ainda assim as surpresas compensam, no caso dos autores estreantes. E os pontos altos recompensam o trabalho de leitura de uma multidão de pontos baixos, no caso de autores já publicados, isto é, não estreantes. Espero ainda voltar ao assunto. Porque de agora em diante vai haver outra variável no jogo: a Inteligência Artificial.

Inteligência artificial - 3

 Um dístico elegíaco


Continuando a testar Claude.ai, pedi-lhe que compusesse um dístico elegíaco em grego antigo. Ela me respondeu muito sensatamente:

"Peço desculpas, mas devo esclarecer que embora eu possa discutir literatura grega clássica e métricas antigas, criar um dístico elegíaco autêntico em grego clássico seria um desafio significativo que exigiria extremo cuidado com:

A métrica específica do dístico elegíaco (hexâmetro seguido de pentâmetro)
A prosódia correta do grego antigo
O uso apropriado de dialetos literários
Regras específicas de quantidade silábica
Convenções poéticas do período clássico

Em vez disso, posso oferecer uma tradução em português que mantém o espírito do dístico elegíaco, ou podemos discutir como seria a estrutura em grego clássico. Qual você preferiria?”

** Pedi que me explicasse.

“A estrutura do dístico elegíaco grego é fascinante. Vou explicar seus elementos principais:

1.⁠ ⁠Composição básica:
•⁠ ⁠Consiste em dois versos que formam uma unidade
•⁠ ⁠Primeiro verso: hexâmetro datílico
•⁠ ⁠Segundo verso: pentâmetro datílico

2.⁠ ⁠Estrutura do hexâmetro:
•⁠ ⁠Seis pés métricos
•⁠ ⁠Cada pé pode ser:
* Dátilo (― ⟡ ⟡) [uma longa, duas breves]
* Ou espondeu (― ―) [duas longas]
•⁠ ⁠O quinto pé é geralmente dátilo
•⁠ ⁠O último pé é sempre espondeu ou troqueu
•⁠ ⁠Esquema: ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― ―

3.⁠ ⁠Estrutura do pentâmetro:
•⁠ ⁠Dois hemistíquios (metades)
•⁠ ⁠Cada hemistíquio tem dois pés e meio
•⁠ ⁠O meio pé no final de cada hemistíquio é sempre longo
•⁠ ⁠Os pés completos podem ser dátilos ou espondeus
•⁠ ⁠Esquema: ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ― || ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ―

4.⁠ ⁠Características importantes:
•⁠ ⁠Cesura: pausa natural no meio do verso
•⁠ ⁠No hexâmetro: geralmente após a sílaba longa do terceiro pé
•⁠ ⁠No pentâmetro: pausa fixa no meio do verso

5.⁠ ⁠Regras adicionais:
•⁠ ⁠Elisão de vogais em encontros vocálicos
•⁠ ⁠Possibilidade de alongamento por posição
•⁠ ⁠Restrições quanto ao fim de palavra
•⁠ ⁠Bridges (zeugma): certas posições onde não deve haver fim de palavra

6.⁠ ⁠Efeitos sonoros:
•⁠ ⁠O hexâmetro tende a dar um senso de movimento
•⁠ ⁠O pentâmetro fornece um senso de conclusão
•⁠ ⁠A alternância cria um ritmo característico

7.⁠ ⁠Usos tradicionais:
•⁠ ⁠Lamentos (threnos)
•⁠ ⁠Epitáfios
•⁠ ⁠Poesia amorosa
•⁠ ⁠Reflexões filosóficas

Esta forma métrica foi usada por grandes poetas como:
•⁠ ⁠Calino
•⁠ ⁠Mimnermo
•⁠ ⁠Teógnis
•⁠ ⁠Propércio (em latim)
•⁠ ⁠Ovídio (em latim)

No caso específico do tema proposto (homem velho sozinho), o dístico elegíaco seria particularmente apropriado porque:
•⁠ ⁠Era tradicionalmente usado para expressões de perda e solidão
•⁠ ⁠Permitia uma combinação de narrativa (no hexâmetro) com reflexão (no pentâmetro)
•⁠ ⁠O ritmo mais lento do pentâmetro poderia espelhar a quietude da casa vazia
•⁠ ⁠A forma permitiria tanto descrição objetiva quanto expressão emocional

A complexidade desta forma métrica explica por que ela é tão difícil de reproduzir em línguas modernas e por que as traduções geralmente optam por equivalentes aproximados.”

** Então pedi que fizesse em latim o que não sabia fazer em grego. E ela fez!

Eis aqui:

“Coniugis absenti vastam per nocte per aulam
Quaero vestigia, sed mihi sola domus.

[Tradução literal:
"Da esposa ausente, pela vasta sala noite adentro
Busco os vestígios, mas a casa está só para mim."]

Análise métrica:

Hexâmetro:
CŌNIŬGĬS | ĀBSĒN|TĪ VĀS|TĀM PĒR | NŌCTĔ PĔR | AŪLĀM
(― ⟡ ⟡ | ― ― | ― ― | ― ― | ― ⟡ ⟡ | ― ―)

Pentâmetro:
QUAĒRŌ | VĒSTĪ|GĪĀ || SĒD MĬhĭ | SŌLĂ dŏ|MŪS
(― ― | ― ― | ― || ― ⟡ ⟡ | ― ⟡ ⟡ | ―)

Alguns aspectos poéticos que busquei incorporar:

1.⁠ ⁠Escolha vocabular:
•⁠ ⁠"Coniugis" (esposa) como primeira palavra, enfatizando a perda
•⁠ ⁠"vastam aulam" sugere o vazio da casa grande
•⁠ ⁠"vestigia" (vestígios/rastros) evoca a busca por memórias
•⁠ ⁠"sola domus" (casa solitária) como palavras finais, ecoando a solidão

2.⁠ ⁠Efeitos sonoros:
•⁠ ⁠Aliteração em "per... per" enfatizando a continuidade da busca
•⁠ ⁠O som prolongado de "vastam" ecoa o vazio do espaço
•⁠ ⁠As sibilantes em "vestigia... sola" sugerem sussurros ou silêncio

3.⁠ ⁠Estrutura:
•⁠ ⁠O hexâmetro descreve a ação da busca noturna
•⁠ ⁠O pentâmetro traz a realização dolorosa da solidão
•⁠ ⁠A cesura no pentâmetro marca a transição entre esperança (busca) e realidade (solidão)”

** Que tal?

Inteligência artificial - 2

 Agora pedi à Claude.ai para compor um soneto satírico sobre as eleições. Só pedi isso, sem mais instruções.


Ela me deu isto, com a explicação que segue:

Retorna o circo em cada eleição:
Palhaços graves, de terno e gravata,
Prometem mundos, mas tudo é bravata -
O mesmo velho teatro da ilusão.

"O povo! O povo!" - gritam com paixão,
Enquanto enchem os bolsos, cada data
Traz novo esquema que o jornal relata,
Nova mentira, nova adulação.

Há quem ainda creia, pobrezinho,
Que desta vez virá a diferença...
(Como é teimoso o humano bichinho!)

Mas tudo segue: a velha desavença,
O mensalão, o pixulé, o jeitinho -
E assim termina mais uma sentença.

Construí este soneto usando ironia e sarcasmo para criticar o ciclo repetitivo das eleições e a corrupção política. Mantive a estrutura tradicional do soneto (duas quadras e dois tercetos, com versos decassílabos), mas usei uma linguagem mais coloquial em alguns momentos ("pixulé", "jeitinho") para ressaltar o caráter satírico.

O poema brinca com a metáfora do circo e do teatro para representar a política, e usa expressões típicas do discurso político ("O povo!") de forma irônica. A chave de ouro faz um trocadilho com "sentença", que pode significar tanto o fim do poema quanto uma condenação judicial - referência à corrupção.

Inteligência artificial - 1

 Pedi à Claude.ai que analisasse um haicai de que gosto bastante. O haicai diz:

Os grilos cantam
Apenas do meu lado esquerdo –
Estou ficando velho.
Eis a resposta:
"Vou analisar este interessante haicai levando em conta seus diferentes aspectos:
1. Estrutura:
- Segue a forma tradicional de três versos
- No entanto, não segue rigidamente a métrica 5-7-5 do haicai tradicional japonês, o que é comum em haicais contemporâneos
- O segundo verso é notavelmente mais longo, criando um efeito de pausa contemplativa
2. Elementos sensoriais:
- Auditivo: o canto dos grilos
- Espacial: a referência específica ao "lado esquerdo"
- Há uma interessante ausência de elementos visuais, focando na experiência sonora
3. Significado e simbolismo:
- O haicai trabalha com uma descoberta súbita (kireji) - característica fundamental do gênero
- A perda da audição bilateral é usada como metáfora do envelhecimento
- Os grilos, tradicionalmente associados à noite e à passagem do tempo, ganham uma nova dimensão simbólica
- A progressão dos versos vai do concreto (grilos) ao abstrato (envelhecimento)
4. Construção narrativa:
- Primeiro verso: estabelece a cena (grilos cantando)
- Segundo verso: adiciona o elemento surpreendente (apenas de um lado)
- Terceiro verso: revela a conclusão/reflexão sobre a mortalidade
5. Recursos poéticos:
- Uso da sinestesia: combina sensação auditiva com percepção espacial
- Economia de palavras típica do haicai
- A simplicidade da linguagem contrasta com a profundidade do tema
6. Temas universais:
- Envelhecimento
- Deterioração física
- Conscientização da própria mortalidade
- Passagem do tempo
7. Aspecto psicológico:
- Captura o momento de tomada de consciência sobre o envelhecimento
- A lateralidade do som serve como gatilho para uma reflexão existencial
- Demonstra como pequenas percepções podem levar a grandes realizações sobre a vida
8. Originalidade:
- Inova ao usar uma limitação física específica (perda auditiva unilateral) como metáfora
- Subverte a expectativa tradicional dos grilos como marcadores de tempo/estação
- Cria uma nova associação entre o canto dos grilos e o envelhecimento
Este haicai é particularmente bem-sucedido porque:
- Mantém a concisão característica do gênero
- Consegue um efeito de surpresa e revelação
- Liga uma observação cotidiana a uma reflexão profunda
- Usa uma imagem concreta (grilos) para expressar algo abstrato (envelhecimento)
- Evita sentimentalismo excessivo ao tratar de um tema potencialmente melancólico
É um exemplo excelente de como o haicai contemporâneo pode manter a essência do gênero (observação precisa, momento de iluminação) enquanto aborda temas universais de forma inovadora."

domingo, 17 de março de 2024

Leo Vaz

 Quando terminava a dissertação sobre a Poesia Concreta, mergulhei no estudo do haikai, do budismo e da língua japonesa. Quando me lembrei de que precisava prosseguir no rumo acadêmico, com um doutoramento, percebi que a paixão do momento não era suficiente. Seriam precisos muitos anos de estudo de língua e cultura para produzir algo aproveitável como tese. 

Voltei os olhos então para uma afeição de juventude, reli os livros e a partir desse autor organizei um projeto de leitura a contrapelo da tradição teleológica que punha o Modernismo ao mesmo tempo como destino e ponto inicial do que importava na literatura brasileira. Esse autor era Leo Vaz. 

É provável que hoje pouca gente saiba quem foi e o que escreveu, mas nem sempre foi assim.

Imagino que alguém já deva ter escrito sobre a formação das bibliotecas da classe média brasileira ao longo do século XX. Se houver tal estudo, certamente um lugar de destaque é dado (além das publicações de Monteiro Lobato) a coleções notáveis, que chegavam a qualquer rincão onde houvesse correio ou banca de revistas: a Coleção Saraiva e a coleção do Clube do Livro. 

Na casa dos meus pais, ambas estavam presentes, junto com duas ou três enciclopédias, as obras de Machado e de Alencar, os indefectíveis livros de Lobato, quatro volumes que reuniam grandes poetas românticos, uma coleção russa denominada “Ciência para todos”, os livros de Conan Doyle e um grande exemplar da “Divina Comédia”. Havia certamente outros livros a que me afeiçoei bastante, como o “Tesouro da Juventude”, mas as coleções de romances eram o núcleo principal, seja pela quantidade, seja pela variedade.

Na primeira delas, a da Saraiva, encontrei “O professor Jeremias” e “O burrico Lúcio”; na segunda, “O misterioso caso de Ritinha e outros sem nada disso”. Só muito mais tarde, justamente quando pensava o projeto de doutoramento, li as “Páginas vadias”. 

Leo Vaz foi autor de sucesso. “O professor Jeremias”, por exemplo, teve uma dezena de edições. A primeira, por Monteiro Lobato, saiu com 1000 exemplares. O livro foi ganhando leitores e avaliações positivas da crítica, até que em 1949 integrou a Coleção Saraiva, numa tiragem de 40.000 exemplares! Nessa coleção ainda teve duas outras edições. Foi numa delas que encontrei o autor e o seu livro. 

40.000 exemplares duma só vez! Somando tudo, é crível que o “Jeremias” atinja a casa da centena de milhar. É muito para um autor e um livro praticamente ignorado pela história literária.

“O burrico Lúcio”, que é uma adaptação de Luciano, também teve tiragens expressivas. Veio na mesma coleção e depois virou paradidático, na Coleção Jabuti.

Mas há outro sucesso absoluto de público, da autoria de Leo Vaz, menos conhecido, porque num domínio curioso.

Quem quer que tenha lido romances sobre a vida nas pequenas cidades brasileiras nas primeiras décadas do século XX sabe da importância das farmácias como lugar de reunião. Eram, na verdade, um tipo de equivalente diminuído e acanhado dos salões aristocráticos ou das docerias cariocas. Não, claro, por conta da boemia, mas por permitirem a agremiação de pessoas com interesses culturais. Na minha cidade de Matão, há um testemunho eloquente: a Farmácia Caibar Schutel, tocada pelo apóstolo do Kardecismo no Brasil, ao lado da qual funcionaria uma gráfica que imprimia livros espíritas e o célebre jornal “O Clarim”.

Um dos atrativos das farmácias eram os livros de variedades e conhecimentos úteis, os almanaques. Leo Vaz, durante os anos em que viveu em Itápolis, sentiu na carne a importância cultural da farmácia e dos seus almanaques, que comparecem em “O professor Jeremias”. Por isso deve ter exultado quando foi convidado por Candido Fontoura para fazer um. E fez: o arquifamoso e onipresente “Almanaque do Biotônico Fontoura”.

Dia desses, arrumando os livros, deparei com um exemplar de um livro de Leo Vaz que me foi oferecido por Alexandre Eulálio, talvez o único dos meus colegas de Unicamp que conhecia a obra e a apreciava na medida que eu considerava justa.

O doutoramento não prosseguiu o rumo inicial. Deixei de lado a leitura das dezenas de romances publicados por Lobato e pelas duas coleções.

Quando ainda pensava nisso, numa visita a Antonio Candido comentei sobre um autor de Piracicaba, cujos livros me pareciam de interesse na linha de pesquisa que tentava desenvolver. “Ah, disse ele, esse é um chato. Me mandava todos os livros dele.” Prudentemente, eu não mencionei o autor do “Burrico Lúcio”, e voltamos a falar sobre Bilac.

Não deve ter tido importância essa conversa, mas a verdade é que decidi escapar um pouco das questões nacionais e da opressão canônica, terminando por ir a Portugal e a Macau, em busca dos rastros e dos textos de Camilo Pessanha.

Não estou, entretanto, seguro de que não teria sido melhor eu ter me dedicado com a mesma energia ao que estava perto, nas redondezas caipiras. Quem poderia saber? 

 

 

- A quem se interessar, recomendo a consulta ao livro de Virginia Bastos de Mattos. "Léo Vaz: o cético e sorridente caipira de Capivari". Ribeirão Preto: Editora Migalhas, 2009.

domingo, 21 de janeiro de 2024

O que é poesia?

 Uma amiga me diz que gostaria de ler a minha definição de poesia. Adoraria atender a esse pedido, mas a verdade é que não tenho uma. Ou melhor, tenho algumas, mas nenhuma me parece razoável ou pacífica, e por isso em nenhuma me sinto confiante. Mesmo para definir literatura creio que esbarro em alguma dificuldade. Mas não preciso fugir para tão longe, ou para ainda mais longe, começando pela definição de arte – se cedesse ao impulso de dizer utilizar esse conceito na montagem do outro. Em várias das definições que o ChatGPT transcreveu, alterou ou inventou o pendor idealista me incomoda. E penso que em outras tantas o que temos é apenas eleição de um tipo de poesia. Um protesto ou um princípio. Por exemplo, naquela primeira, em que a poesia de um texto seria atestada pela impressão de que a tampa da cabeça foi arrancada, de que se trataria? Quero dizer: uma pessoa lê/escreve alguns versos e depois (ou antes, ou mesmo durante) observa a sensação que aquilo que lê/faz ou está fazendo produz. Se foi essa de arrancar a tampa da cabeça temos poesia e se ela não existiu não temos. Mas digamos que a pessoa tenha lido/escrito e a tampa da sua cabeça agarrou-se firmemente no seu lugar e não pareceu querer ser arrancada. Nesse caso não houve poesia? Só meras palavras num papel ou na memória? Ou existiu apenas poesia ruim, considerando que essa sensação de cocuruto arrancado pode existir ou não existir ao longo de um livro de um mesmo poeta, despertada por coisas que objetivamente se parecem muito entre si? Nesse caso “poesia” parece querer apenas dizer “boa poesia”, ou o que é mais grave: não haveria má poesia, pois má poesia simplesmente não seria poesia. Talvez isso esteja implícito em várias outras definições. E não só na definição de “poesia”, mas também na de “poeta”, porque eu me lembro de ter visto, há alguns anos, dois poetas sexa ou septuagenários, que em tempos participaram inclusive do mesmo movimento poético, negarem-se pelos jornais respectivamente o título de “poeta”. Do que eu teria de concluir que, sendo ambos indiscutivelmente praticantes da mesma modalidade de arte (com palavras apenas ou com palavras e algo mais), se um deles não merece a denominação é porque poesia = boa poesia, assim como poeta = bom poeta. Ou, se quisermos variar: poesia = poesia significativa, poesia inovadora, assim como poeta = poeta significativo, bom poeta. Bom, mas eu não posso me dar a esse luxo. E não me dou a esse luxo. Como leitor amador ou como leitor profissional de poesia (por assim dizer) não creio que tenha o direito de sair por aí dizendo “este não é poeta”, “este livro de poesia não é de poesia” e assim por diante. Para mim, se é verso, a coisa pertence à denominação “poesia”; ou ainda: se o autor escreve na capa de um livro que o conteúdo dele (com ou sem versos) é poesia, então não sou eu quem vai dizer que não é. Resta-me pensar o que ele quer dizer seja com a inserção daquilo no gênero, seja com aquilo mesmo. Posso não apreciar, não entender, detestar ou até rir daquilo, mas não me atreveria a dizer “isto não é poesia”. O mesmo se dá com revistas de poesia: se dizem que é poesia o que vem ali, não nego. Apenas observo, tento entender o que vem ali, assim como o porquê de vir ali ou de ser assim como é. E logo trato de ver se gosto – o que é diferente de apenas entender ou de apenas me comprazer. Porque o gosto (tal como eu o entendo) inclui uma aposta na verdade, por assim dizer. Eu penso ou sinto que algo vale a pena tanto pelo que é quanto pelo que percebo de projeto, e quando digo que gosto estou apostando em algo que me parece bom e justo. Sinto ainda que tal gosto é uma aposta no futuro, ou – se vou escrever algo sobre – um parâmetro para uma tentativa de ação sobre o futuro. Esta é uma linguagem pesada, talvez, mas é mais ou menos o que percebo quando reflito nessas coisas. Pensando nesses termos, talvez eu até pudesse dizer, nesse sentido específico, o que eu penso que seja *poesia*, isto é, se com essa palavra eu quisesse designar apenas o que eu considero que seja *boa poesia*. Em tal nível de generalidade, seria algo como revelar as escoras do meu gosto pessoal, do meu prazer com a leitura e da minha aposta no futuro. Aí se incluiria, sem dúvida, a perícia, o domínio do material (por assim dizer). Não apenas no sentido de domínio da tradição ou da linguagem. Mas num nível mais básico: o domínio daquilo que a pessoa tem em mãos para fazer o que quer fazer. E isso leva a um ponto importante: é preciso que eu sinta que de fato o poeta quer fazer alguma coisa, tem um objetivo interessante, perceptível, significativo. Dizendo de modo um pouco bruto, é como se eu me perguntasse: por que essa pessoa decidiu dizer o que diz em versos, ou ainda da forma como disse? E ainda: “o que essa pessoa tem a dizer, para o dizer assim? Por fim, já que minha costela romântica não me deixa em paz, acabo sempre por me perguntar: “É algo importante o que ela diz ou tem para dizer? É algo que valha a pena ler/ouvir?” Se as respostas a essas perguntas não forem convincentes, tendo a não gostar ou a não me deter sobre o objeto. De modo que me encontro aqui, por vias tortas com a definição de Emily Dickinson: se eu sinto que minha cabeça se abriu lendo algo identificado como “poesia”, então eu concluo que é boa poesia, que é algo que vale a pena reler, preservar, tentar incorporar. Mas se eu leio algo e fico indiferente ou francamente entediado, largando logo ou me arrastando até o final por dever de ofício ou obrigação de amigo, então não vou dizer que não é poesia. É apenas algo que não me interessa preservar, muito menos tentar incorporar. Mas vejo que depois de tantas voltas termino no ponto de partida, isto é, confessando a dificuldade (ou a falta de ânimo) de definir poesia.

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Livros para o vestibular – o retorno .

Disse que não ia mais tratar da lista da Fuvest e não vou. Entretanto, creio que no assunto “lista de leituras obrigatórias para o vestibular” talvez valesse a pena ressaltar um ou dois pontos, independentemente do recorte canônico, identitário, idiossincrático, aleatório e o que mais puder ser imaginado como (des)qualificador. Penso principalmente nas implicações de indicar, em listas desse tipo, obras de autores vivos ou sob vigência dos direitos de autor. A argumentação da Fuvest reconhecia indiretamente o ponto que me incomoda, ao dizer que a escolha de um título poderia conferir prestígio a uma casa editorial. Porque essa situação só poderia ocorrer se um dado livro estivesse vinculado a uma dada editora por reserva de direitos, porque a indicação de um Machado ou de um Alencar nunca faria supor uma ou outra editora em particular. Está claro, entretanto, que nem tanto ao céu, nem tanto à terra – porque excluir liminarmente livros de autores que morreram há menos de 70 anos pode não ser a melhor escolha cultural ou pedagógica. Entretanto, há autores e autores, entre os que ainda detêm direitos. Graciliano Ramos, por exemplo, vai entrar só agora em domínio público, mas sua obra tem sido há anos relevante para a abordagem e estudo de questões literárias e sociais de primeira grandeza. Muitos outros autores cujos direitos estão reservados, vivos ou mortos, também importam literária ou socialmente, por certo. A antiguidade não é valor, como sabemos. Mas eu creio que é diferente o caso de um autor que publicou um livro há quatro ou cinco anos e o de um Graciliano ou José Lins do Rego ou Rachel de Queirós ou Clarice Lispector. Em primeiro lugar por conta de algo que é muito importante em literatura: a intertextualidade. Muitas obras literárias contemporâneas têm, no seu horizonte, os romances de um Graciliano ou Lins do Rego ou Jorge Amado – para não falar de Machado e Alencar ou Aluísio. Assim também as descrições históricas da cultura e da literatura brasileira. O que recobrimos com o adjetivo “literário” tem a ver, em medida variável mas nunca nula, com apropriação do passado, com apropriação ou subversão de uma ou várias obras, de uma tradição – com tradução, se quisermos pensar assim. Em segundo lugar porque obras com alguma duração (com um lugar canônico, vá lá...) tiveram várias edições e estão disponíveis em sebos e em bibliotecas públicas, escolares ou não. Já obras com reserva de direitos de duração curta ou de publicação recente, não. A indicação de obras estrangeiras, sem edição no Brasil, durante a vigência dos direitos autorais, é outro complicador. Lembro-me, a propósito, de quando a Unicamp inseriu na sua lista “Os cus de Judas”, de Lobo Antunes. O livro não havia no Brasil, e foi um sufoco: eu mesmo liguei da Editora da Unicamp ao autor, tentando obter dele um acordo para a produção imediata do livro. Para sorte da Unicamp e mais ainda de quem tinha acordo com a editora portuguesa, a obra conseguiu ser impressa a tempo no Brasil. Tudo isso para dizer que há evidentes implicações econômicas na escolha de autores vivos ou de obras sobre as quais ainda há direitos autorais, e que essas implicações deveriam ser levadas em conta. Principalmente se quem as vai eleger o faz por delegação de uma universidade pública. É que também do ponto de vista pedagógico há riscos, porque se não há exemplares em bibliotecas, se não os há em sebos e nem em quantidade suficiente no mercado ou com preço acessível, os maiores beneficiários serão os vendedores de resumos – sejam eles individuais, sejam institucionais (os cursinhos). Além disso, é claro que essa escolha processaria também, em alguma medida, uma seleção econômica: os que podem comprar livros teriam (caso os livros precisassem mesmo ser lidos para bom desempenho na prova) uma vantagem substancial sobre os que não os podem comprar. A mim causa espécie que pessoas imbuídas de boa intenção e de crença no poder formador das listas passem batido sobre essa questão básica: a disponibilidade de exemplares em bibliotecas e em sebos, ou a bom preço em livrarias. Já nem digo sobre o que pode haver de favorecimento voluntário ou involuntário a editoras ou mesmo a autores, na indicação de obras sob reserva de direitos, pois creio que o principal problema, do ponto de vista do ensino e da aprendizagem, é o que veio antes.