quarta-feira, 25 de abril de 2012

O haicai de Issa


Jornal (2)

ISSA

            Kobayashi Issa nasceu em 1763, em uma aldeia do atual distrito de Nagano, e faleceu em 1827. Sua obra tem sido objeto de avaliações bastante divergentes, e entre os grandes haicaístas do Japão certamente nenhum gerou mais controvérsia do que ele. Para o leitor ocidental, Issa é talvez o mais acessível dos grandes haicaístas. É mais fácil lê‑lo e gostar dele do que de Bashô ou Buson.
Alguns críticos japoneses e ocidentais pensam que isso se deve ao que consideram “sentimentalidade excessiva” ou “excessiva subjetividade” dos seus versos. Essa tem sido uma opinião moderna, que ganhou força após a "restauração" do haicai empreendida por Masaoka Shiki (1867‑1902).
Os críticos que defendem tal julgamento insistem em retraçar a sua biografia para explicar o tom específico do seu haicai: perdeu a mãe aos dois anos, teve uma vida marcada pelas desavenças familiares, pela morte de vários filhos e outros desgostos. Daí que leiam nos seus versos o  “complexo de inferioridade”, a sensação de “rejeição”, a “consciência de ser o enteado”, o “desamparado” etc. Ou seja: daí que pensem que foi essa biografia conturbada que tornou Issa incapaz de evitar a exposição de sentimentos e afetos que não combinariam bem com o haicai.
Mas será que tais explicações, fundadas num psicologismo tão banal, têm ainda algum interesse?
            Mesmo que tivessem, não dariam conta do fato de que também no Japão, até hoje, Issa é um dos poetas de haicai mais lidos, sendo majoritariamente considerado um dos “quatro grandes” da sua arte.
            Uma outra vertente crítica vê como virtude o que é visto como defeito pelos que se apóiam em Shiki. René Sieffert e Reginald H. Blyth, por exemplo, não apenas consideram Issa um dos “quatro grandes”, mas ainda afirmam que ele é um dos poucos poetas japoneses ‑‑ senão mesmo o único ‑‑ a ombrear com Bashô. No entendimento desses dois reconhecidos estudiosos do haicai, o “sentimentalismo” de Issa é um alargamento das fronteiras da poesia de haicai, uma novidade positiva, que revitalizou o gênero.
            O sucesso de Issa entre leitores de todas as idades e nacionalidades parece dever-se principalmente ao efeito de humor franco e simples de boa parte de seus textos e à sua preferência por temas ligados à vida e comportamento de animais e insetos. Isto é: ao seu excelente domínio do registro humilde. É isso também o que explica a sua maior acessibilidade aos leitores não-japoneses: por não utilizar o registro “elevado”, ele quase nunca se vale do procedimento mais comum da poesia japonesa, que é a alusão a fatos, locais, poemas e personagens das obras clássicas chinesas e nipônicas, indecifráveis para a maior parte dos leitores ocidentais.
            Para que se possa ter uma amostragem significativa do estilo de Issa, seguem-se alguns textos do autor, comparados com outros, escritos por diferentes poetas japoneses.


As dez noites do Nambutsu

Ah, o som sagrado.
O chá também diz da‑bu da‑bu
- estas dez noites!   (Buson)

A noite é longa.
É muito, muito longa:
Namuamida.     (Issa)

            Os dois haicais têm como tema a recitação do Namuamidabutsu (Glória ao Buda Amida), palavra que é incessantemente repetida nos templos da seita da Terra Pura, durante dez noites, em outubro. O de Buson permite duas leituras: uma, a de que todas as coisas, cada qual a seu modo, dizem as palavras sagradas e participam da mesma ordem; outra, a de que o poeta, cansado de ouvir o nembutsu, começa a ouvi‑lo por toda a parte, mesmo no borbulhar do chá para fora da chaleira. A primeira leitura é piedosa; a segunda, enfatiza a ironia; e a graça do poema é justamente a oscilação entre ambas. Já o de Issa, embora possa ser lido como levemente irônico, é sobretudo pungente. O que nele triunfa é a percepção de abandono do homem no meio das trevas de onde emergem as palavras sagradas e, com elas, a possibilidade de encontrar algum sentido nas coisas, por meio da graça concedida pelo Buda.
Os dois textos são profundamente diferentes: o de Buson é sobretudo espirituoso, evidentemente trabalhado; o de Issa, mais empenhado num tom despojado, coloquial, direto.

Os olhos da libélula

É quase nada
a cara da libélula:
somente olhos.  (Chisoku )

Nos olhos da libélula
refletem‑se
montanhas distantes.   (Issa)

A libélula é um inseto que se associa tradicionalmente à estação do outono e à idéia de mobilidade e de transitoriedade. Estes dois haicais se constroem sobre a observação dos enormes olhos do inseto. No entanto, a diferença é muito grande. No poema de Chisoku, o sujeito observador e o objeto observado estão rigidamente separados e a “objetividade” leva a uma observação cômica. No de Issa, todas as coisas se compreendem, se refletem e correspondem: o símbolo da mobilidade é capaz de conter, ao menos nos grandes olhos, a imagem da permanência e solidez das grandes montanhas distantes. É, portanto, um poema "piedoso". Do mesmo tipo de piedade que Bashô ensinou a um seu aluno, , quando lhe censurou o seguinte haicai: “uma libélula – tirando-lhe as asas, uma pimenta!”. À violência e ao riso, Bashô preferiu outra coisa, e por isso refez assim os versos do discípulo: “uma pimenta – pondo-lhe asas, uma libélula!”. Também Issa, ao invés de opor e reduzir, tratou aqui de integrar e de ampliar.


A paisagem branca

A neve cai mais forte
quando me detenho
de noite na estrada.  (Kitô)

Não há céu nem terra,
apenas a neve
caindo sem parar.   (Hashin)

Nós contemplamos
Até mesmo os cavalos
Nesta manhã de neve!  (Bashô)

Apenas estando aqui,
estou aqui,
e a neve cai.    (Issa)

            De todos esses haicais, o de Issa é o que apresenta menos elementos, E, no entanto, é muito impressivo. Produz, num ambiente budista, um grande efeito de “sabedoria” ou “desenvolvimento espiritual”, de que foi necessário "envelhecer" muito para simplesmente poder estar ali, inteiramente ali, enquanto algo acontece.

A arte de "apenas estar desperto"

            É contra esse mesmo pano de fundo do pietismo e da “iluminação” budista – isto é: num quadro tradicional, e não em função da biografia do poeta, ou num quadro psicologista –, que se devem ler alguns dos seus versos mais famosos, como os que aqui são publicados.
            Com ou sem humor, tratando de temas que podem ou não ser colocados em função da sua biografia, o que de fato importa no haicai de Issa é a maestria com que atualizam, numa dada forma literária, elementos centrais da tradição budista.
O despojamento da linguagem, a facilidade dos poemas, o “sentimentalismo”, a ausência de alusões eruditas e até a biografia atormentada (que Issa é o primeiro a explorar em diários e em poemas) são, assim, elementos que não podem ser considerados separadamente, mas como parte de uma “poética”. Ou seja, são elementos organizados por um ponto focal e que têm, por isso, uma determinada ação sobre o leitor. E esse ponto focal é o que ecoa a resposta de Buda à pergunta sobre o que o tornava Buda: "Apenas estou desperto".

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Breve antologia do haicai de Kobayassi Issa:

Venha brincar comigo,
Pardalzinho
Sem pai e sem mãe.

Dia de Ano‑Novo.
Que sorte, que grande sorte:
Um céu azul‑claro!

Em solidão,
Como a minha comida –
E sopra o vento do Outono.

Vou sair.
Divirtam-se fazendo amor,
Moscas da minha cabana.

A neve está derretendo –
A aldeia está cheia
De crianças.

Chuva de primavera –
Uma criança
Ensina o gato a dançar.

A lua da montanha
Gentilmente ilumina
O ladrão de flores.

Da ponta do nariz
Do Buda do campo
Desce um filete de gelo.

Primeiras neves:
Meu maior tesouro
É este velho penico.


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Para saber mais:
Nos livros:
Blyth, R. H. Haiku. Tóquio: The Hokuseido Press, 1972.
Franchetti, P. et al. Haikai – antologia e história. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
Leminski, P. Matsuó Bashô. São Paulo: Brasiliense, 1983.
Verçosa, Carlos. Oku – viajando com Bashô. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo, 1996.

Na internet:

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Quem? O quê?:

Haicai -- ou haiku: poema japonês breve, que apresenta objetivamente, em linguagem quotidiana, uma cena ou um evento natural.
Matsuó Bashô (1644-1694): o criador do gênero tal como ainda se pratica no Japão.
Yosa Buson (1715-1783): um dos quatro grandes mestres do haiku (os outros são Bashô, Issa e Shiki).
Masaoka Shiki (1867-1902): é tido como o restaurador do haiku nos tempos modernos.

[Publicado na página LIVROS, do jornal Correio Popular, de Campinas, em 09 set. 2000]

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Haicai - um depoimento


DEPOIMENTO 
(HAICAI)


            O interesse do conhecimento de outras culturas me parece ser a ampliação das nossas formas de sensibilidade, nosso jeito de estar no mundo. Creio que essa é uma das razões por tanto nos interessarmos pelos eventos e costumes externos ao círculo da nossa cultura, distanciados no tempo ou no espaço do que definimos como o nosso presente.
No que diz respeito à arte, a aprendizagem das formas de significação, dos princípios e das expectativas da recepção, o choque com outras convenções, revela mais claramente as estruturas da nossa maneira habitual de ver, de expressar e de construir. Confronta-nos com a historicidade de nosso próprio modo de ser e permite ver mais claramente os limites convencionais do que, por inércia, termina por ser naturalizado e universalizado.
Para mim, o haicai constituiu uma espécie de revelação. Acostumado a pensar a poesia como obra de arte literária, isto é, como objeto dotado de autonomia estética e valor “universal”, confrontei-me com algo frente ao qual meus conceitos de avaliação estética, bem como as técnicas interpretativas pareciam girar em falso.
É certo que é possível reduzir o haicai à nossa própria dimensão. Podemos lê-lo, por exemplo, com as nossas ferramentas: investigar a sua estrutura (ainda que sendo ele extremamente breve) em busca de correspondências fônicas, de acoplamentos sintáticos, de figuras de linguagem. Talvez possamos ainda procurar nele um caráter documental sobre as formas de vida em cada época da sua produção. Mas é uma tarefa, além de difícil, inglória. O método de leitura seleciona o objeto, criando uma tabela de valores que normalmente tem como ponto mais alto os objetos nos quais o método pode exercer-se em plenitude. Ora, a primeira constatação que faz um estrangeiro é que o cânone que ele compõe a partir da aplicação de formas ocidentais de leitura difere profundamente dos cânones autóctones, ainda que estes também variem de acordo com a escola ou o momento histórico.
De fato, é difícil compreender em que consiste o haicai mais famoso do mundo, aquele que todos os ocidentais que já ouviram falar dessa forma de poesia identificam como o mais típico do gênero: o de Bashô, que apresenta uma rã pulando para dentro da água de um velho tanque. O que diz esse haicai? Qual seria a paráfrase possível, nos termos em que fazemos paráfrases de poemas? E porque, entre tantos, seria este exemplar? Sua estrutura fônica diz pouco: furuikeya kawasutobikomu mizunooto. Para alguns, o interesse do poema residiria no verbo tobikomu, formado por dois outros: saltar e cair.
Mas quando lemos a literatura crítica produzida no Japão, por críticos literários ou por outros mestres de haicai (como é o caso de Masaoka Shiki, o restaurador do haicai no século XIX, que comentou longamente esse poema), não encontramos ênfase na qualidade do verso, na sua forma ou no emprego do verbo. Segundo Shiki, o poema nunca foi apresentado como o melhor de Bashô, mas apenas como o que inaugura sua maneira – e que o seu valor está justamente na sua simplicidade e na recusa à figuração ou antropomorfização da rã, bem como às alusões ou referências a poemas clássicos. Para ele, nesse poema a rã (ou as rãs, pois em japonês não há marcas morfológicas de plural) faz apenas o que as rãs fazem – isto é, saltar para a água – e a sua grande relevância histórica é a redução ao registro objetivo. Uma análise que quase poderia ser tomada como uma afirmação da poesia pela recusa aos procedimentos poéticos.
Pequeno rendimento teria também, uma vez lido esse artigo de Shiki, valorizar o haicai de Bashô considerando-o uma violência contra a tradição. A sua escola persistirá para além do seu próprio século, atravessando o XVIII, o XIX e o XX – e até hoje é a base da prática internacional. Ou seja, não é (nem foi) a novidade da maneira de Bashô a base da sua eficácia e persistência.
Uma tentativa de compreender o haicai “por dentro” (por assim dizer) confronta o interessado com questões que ele não poderia imaginar apenas lendo os textos e escolhendo, entre os haicais disponíveis, os que considerasse os melhores, segundo a sua forma usual de avaliar poesia.
Por exemplo, se lesse os documentos da escola de Bashô, reunidos nos livros dos seus primeiros discípulos, logo perceberia que o ensinamento do mestre era pautado não apenas pela rígida disciplina para obter o domínio da técnica do corte e equilíbrio interno dos segmentos de fala (digo “fala”, pois o haicai-renga era um texto oral, recolhido a seguir por um escriba), bem como pela técnica das palavras indiciadoras da estação do ano, mas também por regras de conduta e de busca de aprimoramento espiritual que não eram acessórias ou externas, mas tendiam a transformar-se em padrões de avaliação. O haicai era um caminho, um “dô”. E por isso um dos principais obstáculos à prática correta era a atitude espiritual errada. Um mesmo poema podia ser considerado “bom” pelo mestre se tivesse sido escrito por um dos discípulos, mas “ruim” se fosse escrito por outro – dependendo de o que ele dissesse ser sincero e espontâneo ou afetado e artificioso. Por isso mesmo, o principal obstáculo à prática do haicai era a “visão própria”, sendo a objetividade e a despersonalização um objetivo não apenas da realização textual, mas da atitude frente ao mundo.
Daí decorrem os repetidos conselhos para fugir ao desejo de fazer um bom poema, para evitar ter em mente as qualidades que se gostaria que o poema tivesse. Diz Bashô: “Os versos de alguns, porque eles querem atribuir‑lhes brilho, carecem precisamente de brilho. O brilho não consiste em dizer as coisas de modo brilhante. Os versos de alguns outros carecem de delicadeza. É porque eles querem atribuir‑lhes delicadeza que a delicadeza lhes falta. Nos versos de outros, ainda, à força de artifício, a espontaneidade se perde. As obras produzidas pelo espírito são boas, mas as produzidas apenas com artifícios de palavras não são dignas de respeito.”
Já o bom haicai é aquele no qual “o sentimento interior se funde com as coisas exteriores para determinar a forma do verso, e tão bem que o objeto é apreendido tal qual ele se apresenta, sem que a visão própria crie a menor divergência”.
Já o mau haicai é produto do artificialismo e do puro trabalho com as palavras: “Se o espírito, pelo contrário, não se depurou, a visão própria entra em ação e a pessoa tende a buscar a perfeição no arranjo das palavras. E isso constitui apenas a vulgaridade de um espírito que não se esforça para encontrar a verdade.”
O que está na base do objetivismo do haicai é, portanto, algo muito sutil: a postulação de que os objetos devam ser apreendidos pela observação não intencional, e que só assim conseguem compor uma unidade com o estado de espírito do observador. E aí também está a origem da recusa a que o sentimento organize ou se junte ao dado recolhido desse tipo de observação: o sentimento enlameia o haicai, diz a escola de Bashô.
Outras novidades aguardam o leitor que se aventurar pelo universo do haicai tradicional: o seu caráter de arte ensinada e prática coletiva, a valorização extrema da modéstia, da simplicidade e da “magreza” do poema.
De modo que, após o mergulho no haicai, o olhar que retorna sobre a poesia da sua própria tradição vem marcado pela experiência da alteridade, da experiência (ainda que limitada) do que está fora do círculo usual de referências: não se apenas valorizam mais algumas características comuns, que antes passavam despercebidas ou ficavam sem relevo, mas também se incorporam alguns dos conceitos e valores à prática usual, ampliando o leque das possibilidades de construção e de leitura. A consideração da história da poesia moderna e contemporânea permite ver facilmente as formas aparentes desse intercâmbio, especialmente nos países de língua inglesa. Bastaria referir a obra de Pound, a ideia do correlato objetivo de Eliot, bem como muitos poemas de Cummings ou de William Carlos Williams. E ainda da Poesia Concreta.
Quando meu interesse pelo haicai aumentou – na exata medida da minha dificuldade de dar conta dele –, dediquei-me a três tarefas simultâneas: estudar a língua japonesa, ler os tratados japoneses disponíveis em tradução, bem como os textos religiosos principais da tradição budista, além de outros clássicos orientais como o Tao Te King e as obras de Confúcio, e, finalmente, praticar o haicai em português, nos moldes tradicionais japoneses.
Creio que em tudo o que tenho feito a partir desse momento se refletem os efeitos dessa convivência. Na minha própria poesia, e não só na de haicai, aquilo que construí a partir da leitura dos autores japoneses constitui provavelmente o que possa haver nela de interesse. E, claro, minhas escolhas de objetos poéticos no exercício da atividade crítica e docente também trazem as marcas dessa iniciação.
Muitas vezes, quando falo de haicai a auditórios acadêmicos, percebo no ar a suspeita de que talvez nós, seus cultores ocidentais, apenas estejamos utilizando o espaço e a cultura distantes como terreno de projeção de nossos desejos. É possível que seja assim e não vejo mal em que fosse assim, pois do que não tenho dúvida é de que se trata de uma prática produtiva – literária e criticamente –, além de consistir num gesto de recusa a outra idealização, essa sim perniciosa: a de que é possível eliminar, por meio do controle da distância crítica, a projeção dos desejos e a ação das crenças na escolha e no trato dos objetos culturais.

[Publicado em Textos e Pretextos, n. 15. Lisboa: Universidade de Lisboa, outono/inverno 2011]