terça-feira, 4 de junho de 2013

Álvares de Azevedo e seus contemporâneos



Álvares de Azevedo e seus contemporâneos[1]



         Entre os poetas românticos brasileiros mais lidos ao longo dos anos, três fazem parte da chamada 2ª geração : Casimiro de Abreu, Junqueira Freire e Álvares de Azevedo. Desses, o que exerceu maior influência nas gerações imediatamente seguintes foi Álvares de Azevedo, embora o mais popular tenha sido, sem dúvida, Casimiro de Abreu, cujo lirismo intimista e relativamente simples, em que a sensualidade, embora às vezes perversa, nunca se revelava de maneira brutal e o tornava o predileto das declamações em saraus e salões.
         A influência de Álvares de Azevedo se exerceu sobretudo pela sua faceta ostensivamente byrônica, de que há marcas nas várias gerações que vieram depois dele na Academia de Direito de São Paulo. Para que se compreenda o alcance e a natureza dessa influência, portanto, é necessário entender o que significou o byronismo no Brasil e no mundo.
         A designação deriva do nome do poeta inglês George Gordon Byron (1788-1824), que se tornou internacionalmente conhecido em 1812, com a publicação da primeira parte de um longo poema narrativo intitulado Childe Harold's Pilgrimage ( Peregrinação de Childe Harold) e cuja fama só aumentou com seus textos subsequentes: The Giaour (1813), A noiva de Abydos etc.A característica principal do estilo de Byron é a apresentação de um herói descrente, corroído por uma angústia indefinida, sempre pronto a afirmar seu caráter de exceção e a fazer longas digressões sentimentais, que hoje nos parecem completamente desinteressantes. Em outros textos, como Don Juan (1819), temos a outra faceta de Byron: sua ironia e seu tom mordente que também foram largamente imitados.
         O fenômeno internacional do byronismo, no entanto, não derivava apenas da leitura das obras de Byron: talvez até mais do que as próprias obras, faziam furor as histórias que circulavam sobre os atos do poeta, sobre seu caráter, sobre as orgias que promovia em sua residência na Inglaterra e na Itália, sobre a relação incestuosa que teria mantido com uma sua meio-irmã etc. E assim, quando dizemos byronismo pensamos em mais do que em um estilo literário: pensamos em um modo de vida, uma visão de mundo, uma moda. Jovens poetas de todo o Ocidente imitavam não só os versos e as personagens de Byron, mas a sua peculiar maneira de se vestir (o colarinho à Byron, p. ex.) e se comportar. Pode-se dizer que o inglês foi a maior figura literária de sua época, a encarnação do romantismo, a realização dos seus ideais. E o mínimo que se pode dizer dele é que foi coerente com esses ideais, tendo inclusive morrido à frente de uma expedição que financiara para lutar pela libertação da Grécia, ou seja, morrido num ato de revolta e de afirmação da liberdade.
         E é como representante desse amplo movimento da sensibilidade e da literatura internacional que Álvares de Azevedo é mais conhecido no Brasil: basta ler os contos que formam seu texto mais vezes editado, Noite na Taverna, para que se possa ter uma ideia do que foi o byronismo no Brasil. Aqui, como em vários outros lugares, ele consistiu em um apelo ao cinismo, ao pessimismo e à ironia e em um especial apego a descrições mórbidas e funerárias, à imagética diabólica e à mistura de tedium vitae com lubricidade desenfreada.
         No entanto, há uma diferença interessante entre Azevedo e seus modelos europeus: enquanto Byron tinha uma vida momentosa e cheia de acidentes eróticos e mundanos, e enquanto o outro modelo, o francês Alfred de Musset, tinha também as suas glórias românticas, como a viagem que empreendera com George Sand à mesma Itália do inglês, o nosso poeta vivia na pequena, provinciana e mal urbanizada São Paulo da primeira metade do século, em uma sociedade acanhada, de poucas possibilidades intelectuais e de poucos atrativos românticos.
            Mesmo para os estudantes, que formavam uma espécie de grupo social à parte, ao qual era permitida uma liberdade maior, São Paulo era muito menos do que um bairro das capitais do romantismo europeu. Como a "autenticidade" e a "sinceridade" eram conceitos importantes para a estética romântica, vários críticos lamentaram a pobreza do meio em que viveu e morreu prematuramente Álvares de Azevedo e que condenava seus textos a serem considerados meros delírios adolescentes. Outros buscaram criar um substrato vivencial que pudesse justificar, a seus olhos, a obra do poeta, criando para Azevedo uma vida nos moldes da dos modelos byronianos.
         Há, de fato, relatos de tentativas de imitar aqui as comentadas orgias empreendidas por Byron e amigos, mas seriam, sem dúvida, uns pobres simulacros e, a julgar pelas cartas de Álvares de Azevedo e pelo relato de memórias de um seu contemporâneo, Ferreira de Rezende, são pura invencionice as histórias que chegaram a passar por documentos, como as de Pires de Almeida, em seu livro A escola byroniana no Brasil. Para ter uma ideia das fantasias desse autor, veja-se esta descrição do quarto do poeta em uma de suas "repúblicas" em São Paulo:

Seu aposento era um completo museu mortuário. Nas paredes e no teto, forrados de preto, viam-se ornamentos singulares, bem como estrelas e lágrimas prateadas, e diabretes semelhando fogo.As poucas cadeiras eram decoradas no mesmo gênero; e a um dos ângulos da peça, notava-se uma espécie de divã em forma de tumba que lhe servia de cama.A mesa de estudo eram duas lousas, sobre cavaletes encarnados; e a livraria, que ocupava todo o espaço de uma parede, constituía-se da reunião de cinco pedras tumulares, intercaladas de crânios (...) Sobre a plancha de mármore superior, várias corujas e morcegos empalhados; e à cabeceira do aludido leito, solene urubu-rei, cujas asas abertas abrigavam o poeta. (...) Sua mesa de estudo era simplicíssima: por tinteiro, uma rótula cavada no centro, posta sobre duas clavículas em cruz (...) Alguns crânios de feto, dispersos e sem ordem, (...) serviam-lhe de guarda-penas, lacre, obreias, selos, etc.

         Quando lemos os textos da época, vemos que essas coisas eram associadas comumente a uma afirmação da "profundidade" do poeta, dos poemas e das atitutes byrônicas. Hoje nos é difícil perceber de imediato que profundidade haveria naquele conjunto de atitudes e objetos mórbidos, e em um gosto duvidoso e tão estilizado pelo lado "maldito" da vida e da morte. Um paralelo com um fenômeno similar – pela abrangência e pelo apelo à juventude – e recente pode ser útil aqui: com o chamado fenômeno hippie. A associação pode parecer extemporânea, mas muitos aqui presentes certamente se lembram daquelas cenas dos anos 60-70, em que toda a sabedoria e profundidade de pensamento de uma geração parecia estar em não cortar o cabelo, usar tal ou qual roupa e ficar sentado com os olhos parados, falando de modo truncado. Para os participantes, no entanto, as coisas eram claras, as conversas plenas de sentido. Também havia aí o peso do lado socialmente maldito: a droga, o sexo livre.  E há uma gravidade insuspeitada, passado algum tempo, no mais simples ato de afrontamento consciente das normas sociais. Assim, podemos imaginar que, na época e na sociedade de Álvares de Azevedo, celebrar o vício do fumo e do álcool em versos equivalia à celebração das drogas em música popular nos anos 60-70; e tematizar o desvario sexual, referir o incesto e o crime passional, talvez possa ser associado ao escândalo da celebração do amor homossexual há apenas alguns anos. Vendo por esse ângulo, não é difícil compreender por que, para o rapazinho de bem, que só frequentava algumas casas escolhidas e só dançava com algumas famílias, o byronismo, a descrença, a referência a fumo, álcool e orgias assumiam uma dimensão prometeica, libertária, contestadora. Nas imaginárias ou reais orgias "regadas a cachaça", Álvares de Azevedo e seus companheiros se colocavam no mesmo nível de todos os paradigmas fáusticos que já levantaram a voz contra a sociedade e contra Deus.
         Mas, embora tenha sido essa a faceta que mais influência exerceu na nossa literatura, a obra de Álvares de Azevedo é bem mais do que isso e pode-se dizer com segurança que a sua contribuição mais original e atual à poesia brasileira está em poemas como “Ideias íntimas”, “Namoro a cavalo”, “Spleen e charutos”, em que a linguagem coloquial, o humor e o gosto pelos aspectos mais prosaicos da existência são de surpreendente modernidade.
         E é essa originalidade que é colocada em destaque por Antonio Cândido, para quem Álvares de Azevedo

foi o primeiro, quase o único antes do Modernismo, a dar categoria poética ao prosaísmo quotidiano, à roupa suja, ao cachimbo sarrento; não só por exigência da personalidade contraditória, mas como execução de um programa conscientemente traçado.

         A referência de A. Cândido a um "programa conscientemente traçado" nos leva de imediato para o cerne mesmo de sua melhor poesia, que se articula sobre uma dicotomia fundamental, claramente expressa no prefácio à segunda parte da Lira dos vinte anos que, apesar de muito conhecido, merece ser transcrito novamente:

Cuidado, leitor, ao voltar esta página! Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Baratária de D. Quixote, onde Sancho é rei (...) Quase que depois de Ariel esbarramos com Caliban. A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.

         É a essa binomia que se deve não só o contraste entre textos como o antológico “Lembrança de morrer” e o debochado “Um cadáver de poeta”, entre o conhecido “Soneto à virgem do mar” e o destemperado e classista “É ela! É ela! É ela! É ela!”, mas também as melhores páginas de prosa de Álvares de Azevedo, que são as de Macário.
         E é a esse duplo movimento do espírito que devemos algumas das mais curiosas páginas da crítica literária de Álvares de Azevedo, como aquela em que ele censura Mendes Leal pela excessiva idealização da mulher, que justamente caracteriza tantos de seus próprios poemas; ou aquela em que o autor de Noite na Taverna escreve em defesa do "fim moralizador" do teatro e contra o gosto contemporâneo, que abusava dos "quadros de terror e abuso de mortualha".
         A crítica de Álvares de Azevedo mereceria um estudo à parte, pela sua singularidade e por ser a faceta de sua obra a respeito da qual mais divergem as críticas, já que os mesmos críticos que têm razoável coincidência de opiniões a respeito de sua lírica ou de sua prosa, consideram-na ou inteligentíssima e penetrante ou absolutamente sem interesse. Seus textos de crítica e teoria literária, de fato, são no geral de leitura cansativa, pelo acúmulo de impressões desordenadas e pela referência entusiástica a obras, temas e autores que hoje já quase não nos dizem nada. Há, porém, boas surpresas para o leitor curioso, como, por exemplo, o elogio que faz à peça do português Antonio Ferreira, a Castro, pela sobriedade e pelo respeito às regras clássicas – elogio esse que termina por propor Antonio Ferreira como modelo para os jovens escritores, pois nele haveria "todo o brilhante fascinador do romantismo e o puro da severidade arquitetônica do classicismo”.
         Mas a questão mais interessante desse belo texto de Azevedo intitulado “Literatura e cultura em Portugal” é a posição que toma frente à momentosa questão da existência ou inexistência de uma literatura genuinamente brasileira e da importância do tema, do assunto e da cor local como critérios de brasilidade. Se essa, como se sabe, tem sido uma questão delicada e polêmica mesmo em nossos dias, é fácil imaginar a importância de que se revestia em pleno romantismo, algumas décadas apenas depois da independência política.
         A posição assumida por Álvares de Azevedo é a de que, pelo menos até Gonzaga, não há porque falar em duas literaturas e acrescenta, irônico:

E demais, ignoro eu que lucro houvera – se ganha a demanda – em não querermos derramar nossa mão cheia de joias nesse cofre mais abundante da literatura pátria; por causa de Durão, não podermos chamar Camões nosso; por causa, por causa de quem?...(de Alvarenga?) nos resignarmos a dizer estrangeiro o livro de sonetos de Bocage!

         Está claro que esse é um discurso destoante do coro dos que se ufanavam da literatura brasílica a ponto de, como fez Santiago Nunes Ribeiro, em um famoso ensaio, afirmar e gabar a maior cultura de nossos poetas em relação aos confrades lusos, e se deliciar com versos de Durão, enquanto indagava: "Acha-se porventura nos poemas portugueses espalhada com tanta profusão a poesia religiosa, entusiástica e pitoresca?" Contra esse tipo de atitude se colocava frontalmente Álvares de Azevedo, para quem a lembrança nacionalista de Nunes Ribeiro era "senão ridícula, de mesquinha pequenez".
         Já em relação ao outro tópico, o da importância da temática nacionalista – cuja manifestação mais pura, o indianismo, lhe era contemporânea –, escrevia, como também escreverá Machado de Assis:

Crie o poeta poemas índicos, como o Thalaba de Southey, reluza-se o bardo dos perfumes asiáticos como nas Orientais, Victor Hugo, na Noiva de Abydos, Byron, no Lallah-Rook, Tomas Moore; devaneie romances à europeia ou à china, que por isso não perderão sua nacionalidade literária os seus poemas.

         Não é de admirar, assim, que um ardoroso historiador da "tradição afortunada" do nacionalismo literário, Afrânio Coutinho, simplesmente exclua essas reflexões de Azevedo do panorama que pretendeu dar dessa questão em um de seus livros, transcrevendo desse estudo apenas a parte em que trata de Bocage, sem maior interesse, aliás, do ponto de vista da sua contribuição à polêmica nacionalista.
         Voltando agora ao que julgamos a parte mais importante da obra de Álvares de Azevedo, seus poemas irreverentes, cômicos e os poemas em que o realismo e o coloquialismo irônico dão o tom mais moderno de nossa poesia romântica, talvez seja interessante observar que, embora ainda haja poucos estudos a respeito, parece possível afirmar que Azevedo faz parte de um movimento mais amplo da poesia e sensibilidade de seu tempo, a que pertenceram, com maior ou menor importância, pelo menos três de seus contemporâneos e amigos: José Bonifácio de Andrada e Silva, Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa.
         Desses três, o poeta mais importante parece ser Bernardo Guimarães, que, entre outros, escreveu versos como os seguintes, a que se sucedem mais de cento e cinquenta no mesmo tom:

Cantem outros os olhos, os cabelos/ E mil cousas gentis/  Das belas suas: eu de minha amada/  Cantar quero o nariz./ Não sei que fado mísero e mesquinho/  É este do nariz,/ Que poeta nenhum em prosa ou verso/ Cantá-lo jamais quis(...)

         Em outro poema, Bernardo Guimarães satiriza a moda feminina de seu tempo;; num terceiro celebra o cigarro; em outro, trava uma batalha contra exércitos de jornais que o assaltam em sonho. E o poeta da deliciosa Orgia dos duendes e do pornográfico O Elixir do Pajé era ainda exímio cultor do "bestialógico" e do "disparate rimado":

O queijo, – dizem os sábios, –/ É um grande epifonema,/ Que veio servir de tema/ De famosos alfarrábios./ Dá três pontos nos teus lábios / Se vires, lá no horizonte ,/ Carrancudo mastodonte,/ Na ponta de uma navalha,/ Vender cigarros de palha,/ Molhados na água da fonte...// Há opiniões diversas/ Sobre dores de barriga:/ Dizem uns que são lombrigas;/ Outros, – que vêm de conversas./ Porém as línguas perversas/ Nelas veem grande sintoma/ De um bisneto de Mafoma,/ Que, sem meias, nem chinelas/ Sem saltar pelas janelas,/ Num só dia foi a Roma.

         Do outro companheiro de geração, Aureliano Lessa, há referências de poemas cômicos e fesceninos, enquanto de José Bonifácio temos estes versos:

Adorem outros palpitantes seios,/ Seios de neve pura,/  De angélico sorrir meiga fragrância/  Ou sobre colo de nevada garça,/ Caindo a medo em ondas alouradas,/  Bastos anéis de tranças perfumadas.(...)// Não! não quero painéis de tal encanto!/ Tenho gostos humildes:/ Amo espreitar a negligente perna,/ Que mal se esconde nas rendadas saias,/ Ou ver subindo o patamar da escada,/ Sem asas, a voar, um pé de fada (...)//  Poeta do amor e da saudade,/  Depois de morto, peço,/ Em vez de cruz sobre a funérea pedra,/ A forma de seu pé: foi o meu culto.../  Quero sonhar o resto, enquanto a lua,/  Chorosa e triste, pelo céu flutua.    
              
         Como se vê, Azevedo, quanto ao aspecto do humor e da comicidade, não está isolado em sua geração. Pelo contrário, aquilo que constitui uma das partes mais vivas e interessantes de sua obra parece compor, com esses outros poetas, um instigante contraponto à face mais séria e divulgada da poesia do que se convencionou chamar de segunda geração romântica.


[1] Este texto é antigo: foi lido em 1987. Na sequência, desenvolvi algumas dessas ideias no artigo “O riso romântico – notas sobre o cômico na poesia de Bernardo Guimarães e seus contemporâneos”, disponível na internet em http://www.germinaliteratura.com.br/enc_pfranchetti_ago5.htm. Mas como há aqui uma ou outra formulação que não foi lá aproveitada, resolvi exumá-lo do computador.

Outro texto da mesma época: http://www.germinaliteratura.com.br/enc2_pfranchetti_ago06.htm
 

terça-feira, 16 de abril de 2013

Flaubert: Novembro - resenha



Flaubert - Devaneio e turismo sexual



[Jornal 14]


Novembro (Ed. Iluminuras, R$ 28) acaba de chegar às livrarias. São dois textos de Gustave Flaubert pouco conhecidos no Brasil: a novela que dá nome ao volume (Novembro -- fragmentos num estilo qualquer) e treze cartas, em que o romancista francês escreve a um amigo sobre as paisagens, os costumes e as aventuras eróticas experimentadas numa longa viagem que fez ao Oriente próximo e à Itália.
A novela, que foi escrita em 1842, quando Flaubert tinha 21 anos,  ocupa um total de 73 páginas do volume. As cartas, datadas de fins de 1849 a meados de 51, somam 93 páginas. A novela é interessante. As cartas são deliciosas.
O melhor das cartas não é o que elas possam conter de confissão ou dados documentais sobre o autor e os lugares visitados por ele, ou ainda sobre o turismo sexual europeu há 150 anos. Tudo isso vem junto. Mas o que as torna excepcionais é serem um excelente texto, um brilhante exercício de estilo contra o estilo. O assunto e a linguagem oscilam rápida e brutalmente. Passa-se diretamente da apreciação literária e da reflexão histórica ou estética à celebração de um priapismo orgulhoso, voraz e desprovido de culpa; da análise de cambiantes sentimentais ao registro mais cru das sensações eróticas; do desenho de um estado complexo de espírito ao puro gosto do palavrão ou à recolha de histórias e cenas exóticas que são bizarras, repulsivas ou simplesmente miseráveis.
O resultado da leitura é uma imagem convincente do artista enquanto jovem explorador, em busca de assuntos, formas e experiências.
A novela é também um exercício de estilo. Melhor: de estilos, pois se trata de um texto bipartido. Na primeira parte, tem-se uma autobiografia sentimental, cujo tom está dado logo na frase inicial: "Amo o outono, essa triste estação combina com as recordações". Segue-se uma série meditações, confissões, estremecimentos de espírito, vazadas numa linguagem romântica que lembra Chateaubriand. Tudo tão anacrônico que o leitor não poderá deixar de se perguntar, junto com o narrador: "por que escrever isso? Por que continuar, com a mesma voz lastimosa, o mesmo relato fúnebre? Quando o iniciei, eu o considerava belo, mas à medida que prossigo, minhas lágrimas caem sobre o coração e me extinguem a voz".
Não é verdade, porém. Essa voz não se extingue em lágrimas. Pelo contrário, prosseguem ambas, voz e lágrimas, por mais 50 páginas. Quando cessa, assume a narração um narrador em terceira pessoa. A primeira parte se revela, então, uma transcrição de manuscrito, e as dez páginas em terceira pessoa respondem pelo interesse maior do texto, pois esse narrador segundo funciona como um crítico do primeiro: "Era um homem que se comprazia no quimérico, no incompreensível, e fazia grande abuso dos epítetos". É esse registro metalingüístico e irônico que torna o texto legível, porque de resto, tudo é já sentido como falso. Inclusive a própria morte do herói/narrador, desencadeada apenas pelo seu pensamento, e que o segundo comenta assim: "o que parecerá incrível às pessoas que sofreram muito, mas que convém tolerar num romance, pelo amor ao maravilhoso".

Sendo os textos do volume tão diferentes em gênero, a questão é: por que nesta edição eles vêm publicados conjuntamente e sob o mesmo título? O organizador do volume e tradutor dos textos, Sérgio Medeiros, afirma que os dispôs assim porque "se completam um ao outro". Ambos seriam autobiográficos e o nexo principal seria, além da temática amorosa e erótica comum, o fato de o defunto narrador de Novembro imaginar uma viagem ao Oriente, que o autor Flaubert realiza alguns anos depois. Essa é a sua tese. O livro é, como diz, "uma espécie de ensaio crítico que usa a tradução e o rearranjo como meios e não a argumentação acadêmica".
Essa questão esgota o texto introdutório. Do meu ponto de vista, a montagem crítica de Medeiros padece de uma crença pouco razoável na substancialidade da sua construção. Em última análise, parece que ele acredita que todos (Maxime du Camp, o narrador de Novembro, o remetente das cartas da viagem, os autores citados na bibliografia e ele mesmo, Medeiros) -- todos estão falando e querendo descrever a mesma e unívoca "pessoa". Seu objetivo, com a montagem, parece ser propiciar um retrato fiel do jovem Flaubert e das contradições que caracterizariam a sua personalidade.
Aceita a clave, é até possível ler os textos como um conjunto de testemunhos. Mas é pouco interessante e pouco produtiva a perspectiva estritamente biográfica. Ela só se torna eficaz quando dá origem a um texto de natureza ficcional. Sartre, por exemplo, que era um bom romancista, biografou Flaubert e Baudelaire. Mais modernamente, Marguerite Youcenar fez sucesso com as Memórias de Adriano. Mas quem, hoje, leria qualquer desses livros em busca da personalidade, das motivações e da "verdade" do seu assunto e não do seu autor?
Novembro, reunindo dois conjuntos textuais muito diversos em gênero, vigor e interesse, propõe uma leitura seqüencial que os prejudica. Faz deles um conjunto inverossímil, sem unidade ou graça, senão para os amantes convictos de especulações biografizantes.
Como conjunto, o volume não se sustenta. Mas pelas suas partes, vale muito a pena. O leitor que quiser duas horas de leitura animada pode comprá-lo. Para garantir-se de não perder tempo, deve tratar de ler logo os textos de Flaubert, na ordem que melhor couber ao momento ou à disposição do seu espírito.



·         Publicado no jornal Correio Popular, em 02 de dezembro de 2000.

BUKOWSKI EM PORTUGUÊS





Poesia de Bukowski em português

 [Jornal 13]



Os 25 melhores poemas de Charles Bukowski foi um dos últimos trabalhos de Jorge Wanderley. É um bom livro. Lendo-o, impressiona por manter em português o mais característico da obra de Bukowski: a informalidade, o aparente desleixo de linguagem, o registro baixo que emerge de súbito e salta à cara do leitor, bem como o imprevisto lirismo que surpreende com o sinal oposto. Principalmente, ressalta o difícil equilíbrio desses registros, a combinação própria, que dá o sabor específico da poesia e também da melhor prosa de Bukowski.
Há muitas maneiras de avaliar uma tradução. E há mesmo, sobre tradução, muito debate e acirradas divisões em vertentes teóricas. E, como muitas vezes acontece, essas discussões alimentam não apenas revistas especializadas, mas ainda podem ramificar-se em importantes divisões acadêmicas que, em casos extremos, fundam, fendem ou fundem departamentos inteiros.
Sem querer disputar com os especialistas nem o jargão, nem a base de fundamentos ou de crenças, muito particularmente julgo que uma boa tradução é aquela que mais prescinde do original. Aquela na qual o tradutor encontra uma forma de dizer que basta por si mesma.
É claro que um bom livro de poemas traduzidos deve trazer, lado a lado, o texto de base e o texto traduzido. Isso funciona mais ou menos como uma garantia, um gesto de confiança e de generosidade. O leitor pode comparar, pode ler verso a verso em uma e outra língua, pode ler aos blocos, poemas inteiros, em sucessão. Se gostar da tradução, fica com ela; se não gostar, sempre tem ao lado o texto na língua em que foi primeiramente escrito.
Mas o que me parece o triunfo do tradutor é aquele momento no qual, depois de conferir, meio desconfiado, alguns tantos versos e poemas, e percebendo a propriedade ou a coerência das escolhas, o leitor percorre apenas o texto na sua própria língua, para ver como soa aquele poeta na língua que não era dele, mas que é a do leitor. Para ler, afinal, uma interpretação.
Nesse sentido, é uma alegria, para os amantes do velho Hank, tê-lo assim tão carinhosamente vertido para o português (e charmosamente editado, da capa ao miolo).
É certo que um exame atento pode levar a concluir que o Bukowski-Wanderley é mais homogêneo em termos de linguagem. Os coloquialismos e a imitação de linguagem oral, presente em vários versos dos poemas escolhidos, acabam recebendo uma veste mais padronizada. Não há violência linguística, nos textos de Wanderley. E em alguns momentos, a impressão é a de que a linguagem de Bukowski sofre mesmo alguma elevação de tom.
No geral, porém, a operação de leitura é coerente e produz um texto harmônico. Dá-se algo parecido a uma canção, quando é transposta de tom. A mudança é sensível na modulação, mas o resultado conserva o desenho das frases, e o conjunto soa bem.
Os pontos que poderiam ser objeto de maior reparo são poucos. Há algumas rimas a mais, o que dá ao texto às vezes um caráter bastante diferente do que tem em inglês. O caso mais notável é o da tradução destes versos: “I cannot rhyme. / I am too tired to / steal”. Em português, ficou assim: “não sei rimar. / estou cansado demais para / roubar.” Se a assonância rhyme/tired encontrou equivalente adequado em rimar/demais, a inclusão da palavra “roubar” torna o terceto uma contradição em termos, pois em português o poeta diz, rimando, que não vai rimar... O que é o mesmo que dizer que na nossa língua temos um verso sarcástico, enquanto em inglês temos um verso apenas plano.
Há uma oscilação na hora de traduzir, ao longo do livro, algumas palavras repetidas. O caso mais flagrante é o de uma palavra cara ao poeta, whore. No poema “Entrevistado por um ganhador do Guggenheim”, lemos “esse sul-americano ganhador de um Gugg / entrou aqui com a prostituta dele”; logo abaixo, a mesma palavra já é traduzida por “puta”, da mesma forma que no poema “Muito”, onde lemos “é como uma cave, isso aqui: / cheia de morcegos e putas”. Nos três casos, em inglês temos a mesma palavra. E a mim me parece claro que, no primeiro caso, a palavra deveria ser a mais chula, inclusive porque o ritmo ficaria mais adequado, pois em inglês o segundo verso é sensivelmente mais breve do que o primeiro; e em português, além de próximo da extensão do primeiro, resultou um verso de medida clássica, um sáfico, cujo efeito aqui parece pouco adequado.
É preciso considerar, na hora de fazer reparos, que as traduções talvez não tenham tido uma revisão final do autor. Uma última leitura talvez eliminasse, por exemplo, no belo “The last generation”, o que me parece um problema na tradução do verso “many others broken in victory”. Em português, ficou: “muitos outros falidos na vitória”. Como o título foi traduzido por “A geração falida”, cria-se, a meu ver, um problema com a utilização do mesmo termo português para “last” e “broken”, porque quem lesse o texto apenas em nossa língua tenderia a ler o verso acima como o centro de força do poema. O que não é verdade. Ao menos, não como seria se a palavra do título, que é um trocadilho com a denominação “lost generation”, também aparecesse nesse verso, junto com a palavra “vitória”. E, sem dúvida, uma releitura cuidadosa eliminaria uns poucos tropeços maiores, como o do verso “and she has been looking for a job”, de “Conversa às três e meia da madrugada”, que resultou num insustentável “e ela tem estado procurando emprego”... 
Quanto à escolha dos poemas, dada a vastidão da obra poética de Bukowski, não posso dizer muito. Wanderley recolheu os poemas que traduziu de três livros: uma seleção dos melhores poemas, publicada pela primeira vez em 1960, uma coletânea da primeira parte da década de oitenta e o volume The Last Night of the Earth Poems, de 1992. Por certo, a apresentação de apenas 25 poemas sob esse título valorativo é uma aposta arriscada. Como todas as apostas das antologias, é certo. Mas aqui, dada a exígua dimensão do conjunto, o peso e o risco da seleção dos “melhores” parecem muito grandes.
Num prefácio comovido, que apresenta o sentido desse livro na vida de quem o traduziu, Márcia Cavendish Wanderley explicita o princípio e a opção: “Jorge Wanderley viu no bardo marginal uma reprodução de si próprio, dividido entre o permitido e o proibido, essa linha tênue que nos persegue em vida, condenando-nos ao banal ou elevando-nos ao epifânico”.
É certo que quase tudo que li de Bukowski ressalta a epifania que brota da banalidade, da sujeira e do rebaixamento. Mas não em toda parte encontramos o momento de revelação do desejo de ternura, ainda que impossível, e a cedência ao humor como redenção parcial e afetiva, numa síntese precária. No mais das vezes, o texto de Bukowski cristaliza um momento de frustração absoluta, da entrega ao destino sem futuro nem elevação.
Mas os termos da dicotomia formulada no prefácio são adequados para compreender o movimento desta antologia. E se existe um critério a orientar a seleção, sem dúvida ele consiste na busca de poemas que operam mais claramente essa elevação ao epifânico. E por poemas nos quais o tom sentimental tenha um lugar importante.
É uma escolha. E sendo uma escolha derradeira, esse conjunto de traduções que se publica, póstumo, se deixa ler como um testamento e como uma consolação.



O livro: Márcia Cavendish Wanderley (org). Os 25 Melhores Poemas de Charles Bukowski. Edição Bilíngüe com tradução de Jorge Wanderley. Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 2003.

Resenha publicada em Germina Literatura, em maio de 2004.