quinta-feira, 21 de maio de 2020

Conversa sobre o poema "Profundamente", de Manuel Bandeira


Um poema e uma leitura

Acabo de ouvir a leitura que Alcides Villaça fez do poema “Profundamente”, de Manuel Bandeira. Desde quando fui seu aluno, admiro a sua sensibilidade e forma de ler e de comentar. Naquele tempo, éramos dois jovens, em 1976. Hoje somos dois velhos, mas continuo ouvindo e aprendendo.
E, como sempre fizemos, animado pela leitura, gostaria de conversar sobre ela e sobre o poema a que se dedicou.
Ouvi com muito interesse a narrativa das duas leituras, a primeira, entendendo o “ontem” como se referindo a um tempo passado distante, explicitado na segunda seção do poema; e a segunda – a partir de uma observação “ingênua” de uma aluna – entendendo o “ontem” como o dia imediatamente anterior ao “hoje”.
Creio que a primeira se devia à longa habitação da poesia de Bandeira por Alcides: para uma pessoa como ele, que tanto leu, viveu e ensinou essa poesia, creio que o poema já não “aparece” à leitura de forma sequenciada. Ele termina por ser como um ideograma: um conjunto de traços com um sentido, ou com sentidos concorrentes, mas sempre unidos, como num feixe. E creio que essa primeira leitura de fato só se sustenta como re-leitura – independentemente dos dados factuais, como o fato de existirem ou não existirem bondes no tempo em que Bandeira vivia em Recife.
Digo isso porque, para mim, essa leitura nunca tinha ocorrido. E porque, ainda um pouco distante, não me esquece aquilo que seria, por assim dizer, a fenomenologia da leitura do poema.
Quero dizer: quando se lê pela primeira vez, quando o poema “surge” para nós, o sentido literal se impõe: ontem é o dia anterior. No máximo, qualquer um dos dias anteriores, o passado. Mas numa frase como “quando ontem adormeci, na noite de São João”, a determinação temporal objetiva parece clara. O poeta fala no dia seguinte à noite de São João.
Essa leitura parece confirmar-se (ou ao menos manter-se indisputada), na sequência: acordei no meio da noite, ouvi o ruído de um bonde, vi os balões que passavam e me perguntei onde estavam todos.

Na versão manuscrita desse poema, os versos que vão de “No meio da noite despertei” até “Profundamente” aparecem reentrados, isto é, alinhados alguns espaços mais para a direita do que os anteriores e os posteriores.

Na edição em livro, o poeta desfez essa espacialização e alinhou todos os versos à esquerda.
O que isso sugere? Ou melhor: o que a primeira distribuição espacial destacava? Destacava o paralelismo entre as duas primeiras estrofes de cada parte: Quando ontem adormeci / Quando eu tinha seis anos. Alinhados, a relação ficava clara num bater de olhos. Mas o poeta eliminou o recurso.
Ao fazê-lo, retirando o destaque, como que adiou ou deixou de enfatizar o paralelismo. A leitura por assim dizer “denotativa” corre solta até o último verso dessa primeira parte. Lê-se ali o acordar solitário de um homem no meio da noite e a sensação principal, destacada pela anotação sobre o ruído do bonde, é a de solidão. Nada se ouve: o balão passa silenciosamente, não há vozes nem risos. E a imagem em que comparece o bonde acentua o silêncio. O ruído do bonde corta o silêncio como um túnel. Como bem descreveu Alcides, um túnel corta uma montanha, uma massa de pedra. O silêncio, assim, é maciço, palpável, cortável, quase algo físico.

Do meu ponto de vista, o primeiro estranhamento ou sobressalto da leitura vem do último verso da primeira parte. Ele se reduz à palavra que intitula o poema. Um advérbio em -mente, como o que qualifica o passar dos balões: silenciosamente, profundamente.

O estranhamento a que me refiro é que, na leitura factual, de repente fica estranha a afirmação de que todos dormem profundamente. Digamos assim: até a última estrofe, que constitui a resposta à pergunta que encerra a antecedente, todo o narrado se conformava com a experiência pessoal e subjetiva do poeta. O que ele ouvira até adormecer, o que vira e ouvira ao acordar no meio da noite. Já a afirmação de que todos dormem não é do mesmo tipo. Os que brincavam e riam podem estar no bonde, podem estar acordados como o poeta em silêncio, podem dormir sobressaltadamente... 
Assim, a mudança do ponto de vista, ou do alcance da visão objetiva que caracterizava o poema até esse ponto, mais a ocorrência da palavra que dá título ao poema, insinuam uma leitura outra, figurada, embora o registro denotativo (“plano”, digamos assim) ainda possa se manter.

Na sequência, em paralelo, o poeta começa a evocar outro tempo: o sono da criança antes do fim da festa, que equivale ao sono do poeta durante a festa, mas é contrariedade, enquanto o dele é conformação – ele adormece sem se incomodar com o barulho festivo, e parece mais sensível ao silêncio que se sucedeu. 

(Um parêntese: vale a pena observar aqui que ao mesmo tempo em que elimina a disposição gráfica que acentua o paralelismo, o poeta interfere em outro nível para o reforçar: substituindo o verbo “dormir” por “adormecer” – muito mais suave, como bem observou Alcides, mas curiosamente usado apenas na segunda versão, pois na primeira usar o “dormir” para referir a ação no tempo dos seis anos, pois a criança cansada dorme, não adormece. E o acerto, a eficácia dessa substituição se evidencia no comentário de Alcides, que radica na utilização da mesma palavra a possibilidade de coincidência temporal ou a retroação do sentido da segunda para a primeira parte).

Retomando o fio da leitura: o paralelo que se dá entre as estrofes que abrem as duas partes agora é claro: dá-se entre as vozes e cantigas do passado imediato, que não são ouvidas no meio da noite pelo poeta, e as vozes que habitavam a infância, “as vozes daquele tempo”. E então, depois de nomear as pessoas desaparecidas e por elas perguntar, surge o termo comum, decisivo para a manifestação da tonalidade do poema: dormem profundamente.

É nesse momento, creio, que se dá o processo de retroação, já insinuado desde o primeiro paralelo. A palavra “profundamente”, na sua terceira ocorrência, faz do despertar no meio da noite uma experiência de perda, uma indagação pelo desaparecimento do passado. Mais que isso: uma pergunta formulada num quadro de impermanência e vacuidade – todos dormem profundamente, e no céu flutuam sem rumo os balões para ninguém ver, no silêncio raramente cortado. Ou seja: o paralelismo das duas estrofes finais de cada parte projeta sobre a primeira a ideia de aniquilação do passado e das “vozes, cantigas e risos ao pé das fogueiras acesas”. Essas mesmas, vozes, cantigas e risos desse momento em diante e para sempre relidas não mais apenas como registros de fato, mas como figuras das alegrias passageiras.

Voltando à leitura de Alcides, creio que foi essa percepção que o fez, num primeiro momento, segundo conta, ler no poema desde o começo o seu efeito total. O que me parece mais interessante na sua segunda leitura é que ela não elimina desde o começo aquilo mesmo que constitui o ato de leitura de um poema: a construção gradual do sentido, pela impregnação dos sons e imagens, até que, uma vez cumprido o percurso, o todo se torne como que uma só palavra. 

A questão pode parecer menor, uma vez que chegamos ao mesmo ponto. Mas a mim parece que há uma diferença entre tentar entender e mostrar a forma como o poema se constrói no leitor, pela sucessão do som e do sentido das partes, até que o conjunto de repente surja redimensionado e todas as partes se ressignifiquem mutuamente, e lê-lo de uma maneira, digamos, teleológica – isto é, como se desde o começo estivesse presente, na consciência do leitor (ou fosse a ele de alguma forma acessível) a interpretação só propiciada pelo fim.

Já quanto ao poema em si, na sua construção sonora, chamou-me a atenção a forma rítmica das passagens paralelísticas, porque creio que ela também produz sentido, também nos diz alguma coisa.

Por exemplo, na primeira estrofe é notável a nenhuma regularidade métrica. Temos ali versos de 7, 6, 8, 11, 7 e 8. A única sucessão de ritmos iguais se dá no verso de 11 sílabas, que é um decassílabo da velha medida, formado por dois versos de 5, com cesura.
Já na primeira da segunda parte, o trabalho do poeta foi na mesma direção, porém de um modo muito significativo. De fato, no manuscrito lemos:

Quando eu tinha seis anos
Não vi o fim da festa de S. João
Porque dormi.

O que temos aqui é uma sequência composta por um decassílabo e dois seus quebrados: 6, 10, 4. O decassílabo funciona como momento de equilíbrio entre os quebrados, pois pode decompor-se em 4+6 ou 6+4 sílabas, pois tem tônicas na quarta e na sexta posição. Apesar da polimetria é, portanto, uma estrofe harmônica.

Na versão final, a estrofe ficou assim:

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.

Bandeira, mais do que qualquer outro poeta modernista, mostrou-se um grande conhecedor da métrica tradicional, envolvendo-se inclusive em longa polêmica sobre o assunto. E basta ler, além de seus textos de reflexão sobre o verso, o "Itinerário de Pasárgada" para constatar a sua perícia e atenção minuciosa aos jogos sonoros significativos.

Nesta nova estrofe, a leitura percebe um verso de seis sílabas, seguido de um de 12, que não é um alexandrino clássico, pois não tem cesura. É antes um verso de 12 sílabas composto de dois de 6, sendo o primeiro segmento terminado em paroxítona. Assim, o ritmo se impõe, e visualmente o verso breve que encerra sugere que ali também se encontraria o mesmo padrão. Mas isso não ocorre. Pelo contrário, dentro do padrão estabelecido pelos anteriores, trata-se de um verso truncado: 5 sílabas, terminado em oxítona. Seja qual for o valor que se dê a essa dissonância, ela é clara e parece ter sido o objetivo da alteração. Porque a simples manutenção da forma original (“porque dormi”), em número par de sílabas, seria menos dissonante.

Já nas estrofes que encerram as duas partes, a alteração é mínima: os verbos passam do imperfeito para o presente. O efeito de sentido semântico é claro. Na primeira estrofe, “estavam”, um verbo conjugado no passado a partir do presente imediato, indica uma ação que não é terminal. Estavam dormindo, quando acordei no meio da noite. É isso que se diz. Nada se diz sobre se continuam dormindo e no contexto é de supor que não. Já na última o tempo presente do verbo obriga à atualização do sono como conhecida metáfora da morte. O sentido aqui é tão evidente que quase dispensaria o comentário, não fosse pelo fato de que o imperfeito tem uma sílaba a mais que o perfeito. E isso produz um efeito de sentido que vale a pena comentar.

No autógrafo, a última estrofe da primeira parte era assim:

Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados dormindo
Profundamente

E, como já foi dito, essa estrofe estava no trecho reentrado (deslocado para a direita). Na versão em livro, quando o poeta eliminou esse recurso, evidenciou-se não só o paralelo da primeira estrofe de cada parte (como parecia ser o objetivo da disposição), mas também o da última. E por isso talvez essa estrofe ficou sendo:

- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Se lermos de modo “normal” esses versos, temos 3 segmentos de sete sílabas, pois “dormindo profundamente” é um perfeito verso de redondilha maior. Já na primeira versão, como a palavra “dormindo” ocupava o final do verso, repetindo a do verso anterior, a leitura corrente dificultaria a formação do sintagma “dormindo profundamente”, porque se teria antes imposto a leitura “estavam todos deitados dormindo”. E assim a palavra “profundamente” ficaria isolada após uma pausa.

Com essa disposição, além da possibilidade de recompor o verso de 7 sílabas e assim dotar o trecho de maior regularidade, isto é, pacificação rítmica, o paralelo visual com a última estrofe fica perfeito.
Vejamos agora a última.

- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Do ponto de vista métrico, esta é mais complexa do que a outra. Com os verbos no presente, temos 2 versos de seis sílabas, seguidos por um de 2 e um de 4. Mas a leitura que, na primeira, produz a regularidade métrica, aqui a destrói, pois, com se viu, “dormindo profundamente” tem 7 sílabas e o conjunto seria, portanto, assim: 6 6 7.

A única forma de obter equilíbrio rítmico aqui, nos moldes da versificação tradicional, é forçar a pausa depois de “dormindo”, pois assim a estrofe teria: 6 6 2 4. Isto é, dois hexassílabos e dois quebrados dele.

O efeito de sentido dessa leitura seria algo como destacar a última palavra, que é justamente a que dá título ao poema e concentra a sua carga emocional. A estrofe perde em velocidade. A última palavra fica mais “pesada”. Diria mesmo que mais lentamente pronunciada. Fato que parece ter sido algo almejado pelo poeta, que no manuscrito a grafou de uma maneira muito especial, espalhando-a graficamente, separando as suas sílabas, como se a quisesse alongar.

Na versão escrita, com o reforço do paralelismo, por meio da eliminação do recurso da indentação de parte do poema, e pela inserção de um travessão a iniciar cada uma dessas estrofes de resposta ao ubi sunt, o ritmo fez o que era preciso para que a palavra-título tivesse o peso que o poeta nela queria pôr.

E com estas observações pontuais, que não visam senão retomar o saudoso diálogo, rendo aqui a minha homenagem ao admirável leitor de poesia, com quem tenho podido aprender sempre ao longo de todos estes anos.
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Nota 1: os autógrafos reproduzidos estão no volume Manuel Bandeira. Libertinagem / Estrela da Vida inteira. Edição crítica de Giulia Lanciani. Madrid: ALLCA XX, 1998, p. 359-360.
Nota 2: a vídeo com a leitura de Alcides está aqui: 
https://www.facebook.com/alcides.villaca/videos/3029136863833168/?__tn__=%2CdK-R-R&eid=ARCCxPUphC1MIQC9NHbBVkitrPzEeFtoNq4FIF4rlBnpTkMoyN7teM5AkCRgS_K8gKRvx4smNO_mfJT7&fref=mentions





quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Arguição: regionalismo e outras fronteiras

No dia 07 de agosto de 2019, teve lugar a arguição dos trabalhos apresentados em concurso de livre-docência pelo Prof. Luiz Gonzaga Marchezan, na Unesp de Araraquara.
Tratava-se de um conjunto notável de trabalhos publicados após o seu doutoramento. Uma seleção dos textos que ele julgou mais representativos. Um material que demonstrava, na produção escrita, as mesmas notáveis qualidades das outras áreas de atuação do docente.
Foi um bom momento, celebrando uma carreira plena.
Na ocasião, para arguir o vasto material apresentado, escolhi uma questão pequena, mas que me interessou desde o início da leitura.
Como as considerações pareceram interessantes a algumas pessoas presentes, prometi colocar o texto neste blog. E é o que faço agora.

=+=+=+

Arguição de Sobre a prosa de ficção brasileira: coletânea comentada, de Luiz Gonzaga Marchezan

Foi com muito prazer que li os ensaios recolhidos e apresentados a esta banca. E foi com maior prazer que percorri as páginas iniciais, nas quais você descreve os critérios de escolha e ordenação deles, bem como faz uma apresentação de cada um e da ligação entre eles.
Creio que esse formato de livre-docência é francamente superior ao antigo. Há algum tempo, de fato, o material apresentado era uma tese. Eu mesmo, quando me preparava para o meu exame, dediquei-me a fazer uma tese. Entretanto, quando resolvi inscrever-me, a legislação tinha mudado e permitia-se, na Unicamp, apresentar, em vez da tese, um conjunto significativo de trabalhos produzidos após o doutoramento.
Como já tinha escrito a tese, apresentei-a. Mas não deixei de apresentar a exame outro material: um conjunto de artigos, como você faz, porque me parecia muito mais importante, para definir o perfil do livre-docente, considerar a sua produção ao longo do tempo, bem como a vinculação daquela produção com as atividades de ensino.
Foi, portanto, com grande satisfação que fui percorrendo o texto de apresentação e saltando dele para cada um dos ensaios que ele resumia ou comentava, porque assim pude acompanhar o desenvolvimento das suas inquietações e os resultados do seu trabalho em várias frentes.
E vi que estamos frente a um perfil notável de pesquisador e professor, que se apresenta a nós de corpo inteiro. Digo isso porque não temos aqui um conjunto de artigos amarrados à volta de um tema. Pelo contrário, o volume é dividido em duas partes bem distintas, a segunda das quais refletindo as inflexões contemporâneas do seu interesse e pensamento, que já vão longe das que deram origem à parte maior do trabalho.

Ao preparar esta fala, pensei em começar pelo assunto que melhor conheço. No caso, o artigo sobre Dom Casmurro, no qual você faz algo notável, que foi praticamente ignorar a leitura de Roberto Schwarz, o “paradigma do pé atrás”. De fato, ao ler o texto percebo que você faz um esforço de analisar o romance fora desse paradigma e fora dos esquemas e propostas de leitura que a ele se contrapõem. Haveria várias considerações a fazer sobre a sua aproximação a esse romance e creio que eu me sentiria mais seguro do que vou me sentir, seguindo o rumo que escolhi.
Mas a verdade é que um exame como este não é em nada parecido com um exame de doutoramento. Aqui não se trata de arguir topicamente uma tese ou um conjunto de trabalhos, mas de compreender e avaliar um percurso intelectual, pesar os frutos de uma carreira extensa, tanto no aspecto didático quanto no aspecto da produção de reflexões por escrito.
Por isso, para aproveitar o momento com um colega que seguramente sabe mais do que eu num campo no qual sou insipiente, resolvi conversar sobre aquilo que menos conheço. 
Portanto, vamos falar de regionalismo. E as notas soltas que vou apresentar a seguir pretendem ser apenas isso mesmo: notas soltas que têm como expectativa maior propiciar aqui uma conversa sobre um tema importante para você, na qual eu possa aprender um pouco.

Dito isso, vamos lá.

Logo no início da sua apresentação, na página 12, você traz esta consideração: “a consolidação da literatura brasileira, a partir do Romantismo, apresenta-nos duas tendências, duas temáticas, situadas em espaços regional e urbano”. É um ponto de partida, um traçado que acompanhará as reflexões posteriores, porque você vai pensar o regionalismo como tendência e como temática, ao longo de um eixo temporal. Ou seja, como uma tradição.

            E creio que um ponto importante da sua visada é a asserção de Antonio Candido de que “um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciada, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores”, p. 11

Uma parte muito interessante do seu trabalho – e em volume creio que é a mais extensa no conjunto de textos apresentado a exame – é aquela na qual você trabalha “a memória que a literatura tem de si mesma”, ou seja, na definição de Samoyaut, a intertextualidade. (P. 10)

E considerando a perspectiva adotada a partir da referência a Candido, seu trabalho sobre o tema se desenvolve de modo a demonstrar, naquilo que poderia ser visto como uma linha por assim dizer mais nacional (a literatura em espaço regional), a dinâmica da superação da dependência.

Na delimitação do corpus para o estudo dessa questão, assim, você delimita um terreno que denomina de regionalismo. Não vou agora tratar do modo intertextual que você identifica como predominante, que é a paródia. Interessa-me conversar um pouco sobre o conceito de “regionalismo” e sobre a sua operacionalidade e aproveitamento na sua reflexão.

Nesse sentido, em primeiro lugar eu queria observar que na sua descrição das temáticas predominantes na formação da literatura brasileira não comparece com força definidora a oposição urbano/rural, que talvez fosse a mais elementar. De fato, essa oposição clássica é substituída, desde a formulação inicial, pela dicotomia urbano/ regional. O que me fez começar a refletir sobre o alcance dessa palavra, regionalismo, na trama dos conceitos do seu trabalho.

Isso porque Os corumbas, assim como Moleque Ricardoe principalmente Capitães de Areia são, digamos, urbanos pelo espaço em que decorre a ação. Mas frequentemente se enquadram nas descrições críticas na categoria “regionalismo”.
O termo, portanto, me despertou a atenção. Exigiu reflexão. E foi o que me propus a fazer: pensar sobre ele, a partir do uso que vejo no seu trabalho, como forma de dialogar com você.


Lendo o que escreveu na página 17 sobre José Candido de Carvalho (“o regionalismo do escritor segue a modernidade da linhagem modernista, voltado para o tempo presente e para a tradição do regionalismo nacional”), percebo que um ponto realmente importante para a sua reflexão é a existência de uma tradição no regionalismo. 

Nesse primeiro texto, você afirma que, “o espaço típico, regional, nos dois romances (Fogo MortoO coronel e o lobisomem), constitui a base do discurso interpretativo da enunciação.” E que “há ... nos dois romances, uma relação íntima entre as ações das personagens e os espaços ocupados por elas”.

Enquanto lia esse trabalho, lembrei-me da discussão feita por Luis Costa Lima (em A literatura no Brasil) sobre o conceito de regionalismo. E lá fui conferir.
Em certo ponto, ele diz: “uma obra é regionalista enquanto a realidade literária se inspire e se ampare em um plano físico e social determinados, que aparece como a sua contraface” – p. 363. Essa definição não conduz a uma valoração exatamente positiva do termo regionalismo, para Costa Lima. Tanto assim que ele vai concluir que os defeitos da obra da Lins do Rego (que ele vê justamente na desarticulação entre a natureza e o homem, que termina por impossibilitar a unidade global da obra) vão fazer dele, de fato, um autor regionalista.

Não é essa, evidentemente, a sua percepção do que seja o regionalismo. Muito menos é esse caráter valorativo que a palavra tem nos seus ensaios. 

E é claro que há um uso do termo regional que está consagrado e se encontra, por exemplo, no trecho de carta de Graciliano que você transcreve na p. 216: “trabalho numa série de contos regionais”. 

Mas uma coisa que eu gostaria de entender melhor é o alcance de postulação referida: a de que o espaço típico constitui a base do discurso interpretativo da enunciação. Porque justamente um ponto interessante desse seu ensaio é a abordagem produtiva do “tema universal da loucura” nas personagens dos dois romances, do seu desajuste em relação à família tradicional e o que esse desajuste revela sobre a sua estrutura. E é só no final, por meio de duas citações, que aparecem duas questões que pareceriam centrais numa abordagem sobre o regionalismo: a de Antonio Olinto, que destaca o linguajar do brasileiro do Centro-Leste; e a de Carpeaux, que destaca em Fogo morto a problemática da decadência do patriarcalismo.

            Eu li com muito interesse a sua análise do espaço, da paisagem ficcional, dos topoiretomados de um romance a outro. E está claro na sua apresentação que esse é um ponto, em princípio, de grande interesse. Mas eu ainda gostaria de perseguir o conceito de regionalismo, antes de comentar alguma outra coisa.

            É que o mesmo Graciliano, que afirmava estar escrevendo contos regionais, na mesma carta diz: “quero ver se consigo fazer psicologia de bichos: cachorros, matutos, etc.” O que me fez perguntar a mim mesmo o que de regionalismo há na psicologia dos bichos. E porque os matutos aparecem aqui no mesmo nível dos cachorros. 
De fato, que regionalismo haveria na psicologia dos bichos? Quero dizer: a psicologia dos bichos, se houver alguma, deveria ser tudo menos regional. Por outro lado, quando diz “cachorros, matutos, etc”, há algo que se insinua nessa redução do humano ao nível do animal. E, principalmente, na distância que se estabelece entre o autor e o tema ou assunto. Nesse sentido, embora se possa fazer coincidir o “regional” com o determinado ou limitado, a ideia da “psicologia dos bichos” tenderia a situar o “regional” no âmbito realmente do externo, do ambiente. Ou seja, seria regional o bicho, ou o seu ambiente, não a sua psicologia.
            No entanto, em outra carta, que você transcreve na p. 217, lemos Graciliano definindo Vidas secascomo “um livrinho, sem paisagens, sem diálogos. E sem amor”. Portanto, se “Baleia” é um “conto regional” e integra um livro sem paisagens nem diálogos, então o regional não é nem a paisagem nem a linguagem. Da mesma forma, Paulo Honório nos diz (e você transcreve a frase na p 23), que escreveu São Bernardo omitindo a paisagem. No entanto, ambos os livros são regionalistas ou classificados como tal (e o próprio autor parecia aceitar a designação, a ponto de usá-la), o que me leva a pensar que “regional” ou “regionalista” são, em alguma medida, termos que estão acima da questão da paisagem ou da linguagem. Mas seria então a configuração num espaço determinado que responderia pela utilização dessas palavras?

            Na página 30, ao descrever Ponciano, você diz que “é personagem de uma história que conta em primeira e terceira pessoa suas sagas, de forma livre, fantástica e com traços regionalistas”.
            Nesse ponto, creio que os traços regionalistas mais importantes – a julgar pela transcrição dos trechos de Rachel de Queiroz e Bosi, na p. 33 – residam no esforço de “compor as vozes da cultura popular em acordes próprios do escritor culto”, ou, mais exatamente, nesse caso, de inventar uma linguagem que provenha da linguagem falada num determinado recorte regional.
            Mas, pensei, em que a linguagem de um Lins do Rego ou, principalmente, a de Graciliano, denota um recorte regional – a não ser no vocabulário típico? O torneio da frase não é, de modo vago, modernista – sem o experimentalismo de 22, em busca de uma espécie de língua literária padrão próxima do coloquial? Uma “língua franca literária”, como a chamou Luís Bueno (p. 62)?

            É certo que em O coronel e o lobisomem, como você frisa, temos um registro de paródia. E por isso a linguagem é mais marcadamente “regionalista” do que em Lins do Rego ou em Graciliano. Mas isso apenas revela, quanto a mim, a dificuldade ou as dificuldades de definir traços comuns a todas as obras que comumente podemos designar como “regionais” ou “regionalistas”.

            No prosseguimento da leitura do seu texto, deparei com uma passagem de Bernardo Élis que me pareceu intrigante. Diz ele: “como não podia deixar de ser, há ao longo da velha história do regionalismo brasileiro uma tradição que permanece, embora o contexto cultural se modifique, permanência que se reflete nos temas ficcionais. Um deles é a maneira de considerar os bichos, os animais domésticos, na descrição abundante e minuciosa de paisagens, vegetais e plantas.” (47)

            Esse de fato me parece um traço interessante, que daria conta de algo que me parece importante, embora eu não tenha muitos elementos para pensar nisso. E este é o sentido último desta intervenção: sugerir pontos de diálogo com você, que tem muito mais leitura do corpus regionalista e refletiu mais longamente sobre isso; dar uma contribuição talvez ao seu pensamento, a partir da minha exterioridade ao campo.

            Esse ponto é a ligação entre “regionalismo” e exotismo, no sentido amplo. Quero dizer: regionalismo e notícia daquilo que não está dentro do universo de referência. No caso, do universo de referência do leitor previsto.

            E para isso queria voltar a uma formulação sua que achei do maior interesse, mas que não vi, nestes textos, desenvolvida como eu gostaria de ter visto. 
            Trata-se do que escreveu na página 13: “Um autor, quando escreve, prevê um leitor plural, variado, geral, e também um leitor singular, distinto, um observador. Tanto um quanto outro veem-se constituídos como sujeito, alguém que percebe, entende, sabe, avalia, interpreta um texto, aceitando ou rejeitando seus argumentos e, até, sua fabulação. É alguém que lê nas características discursivas do texto algo presente a partir da sua materialidade, entre suas escolhas enunciativas. Assim, um texto, nas suas coerções discursivas, expõe tanto as imagens de um autor, como as de um leitor”.

            Achei essa formulação muito interessante, e creio que, a partir dela, seria possível refinar o conceito de regional e regionalismo, transcendendo a restrição ao tema ou a determinação pelo típico.

            Quero dizer, ou melhor, sugerir: não seria possível estabelecer também o grau de “regionalismo” de um texto a partir das imagens de autor e de leitor nele previstas e operantes? 
            Penso nisso porque “regionalismo” é um termo que se utiliza por oposição. Embora se possa falar, como Afrânio Coutinho, de 6 tipos de regiões culturais ou literárias e até de incluir como sub-região o Rio de Janeiro e sua zona suburbana (para ele, até a literatura de Machado poderia, nesse sentido, ser entendida como regional), o certo é que o senso comum no uso do termo trabalha na direção apontada por você, quando traça uma tipologia capaz de abarcar vários autores regionalistas, na p. 50. 
            Essa tipologia se define basicamente pela noção de distância: o regionalismo baseado no caipira, se define pela distância do cosmopolitismo da capital; enquanto o baseado no sertanejo, pela distância da civilização litorânea.
            
            O que me ocorreu é que esse distanciamento espacial implica também um distanciamento temporal – na medida em que o regional tende a aparecer não apenas como outro lugar, mas também como outro tempo. 
A isso eu queria voltar ainda.
            Mas primeiro queria registrar, para a nossa conversa, uma lembrança: a de uns apontamentos escritos por Victor Segalen, nos quais ele operacionaliza a noção de exotismo num âmbito muito mais amplo do que o usualmente circunscrito pela palavra.
            Para Segalen, o exotismo é a experiência do que está fora dos padrões usuais, do diferente. Ele subintitula seu livro (ou projeto de livro), “une esthétique du divers”. O diverso, a alteridade, portanto, é que define o exotismo. Para ele, há vários graus de exotismo, conforme uma escala de abstração na vivência da alteridade. O mais simples e comum é o geográfico, das paisagens cheias de surpresa. O mais complexo e elevado é o religioso, que consiste na percepção de Deus como transcendência, ou seja, exterioridade irredutível. Entre essas formas extremas, há gradações: exotismo da sexualidade, exotismo histórico etc.
            Assim compreendido, o exotismo é um ideal político e civilizacional, que tem como adversária uma forma mentis moderna, que sistematicamente combate a diversidade, seja pela extinção do diferente, seja pela sua redução e assimilação enquanto “pitoresco”. Ou seja, o exotismo é uma forma de resistência contra a imposição de um padrão único civilizacional, contra a homogeneização. Uma forma de tratar o “outro” como “outro”.Daí também a ojeriza de Segalen ao turista e ao amante do pitoresco, que ia ao ponto de ele denominar Pierre Loti “um proxeneta da sensação do diferente”.  Ou seja, o exotismo de Segalen nada tem a ver com o registro do pitoresco, que é seu inimigo.
                        
Por fim, ainda no âmbito do exotismo, isto é, da percepção e fruição da alteridade, lembro-me de que a relação com o “outro” foi o critério utilizado por Luís Bueno para estabelecer a tipologia do romance de 30. E foi essa centralidade da noção de outro o que lhe permitiu encontrar um mínimo denominador comum, por meio do qual ele pôde descrever a enorme diversidade da produção romanesca do decênio.
            
            E agora, voltando ao ponto: quando me dediquei a esse assunto a propósito de um autor português, vali-me da sugestão de Segalen de que o distanciamento no espaço é também um afastamento no tempo. Ou seja: quanto mais longe se vai do centro civilizacional, que era a Europa, mais se recua no tempo. Isso para o bem ou para o mal: em direção à barbárie ou em direção a uma idade de ouro. 
            Deslocar-se, assim, é buscar o passado.

            Todas essas questões e sugestões me ocorreram meio desordenadamente na leitura do seu trabalho, porque me pareceu que um ponto importante do conceito de regionalismo, tal como aparece na literatura brasileira, é a identificação do regional como correspondendo a um estado passado (não necessariamente ultrapassado, pelo contrário) da evolução nacional. Uma das metáforas centrais em certo ponto do seu trabalho, é a da árvore. E, nessa metáfora da árvore, a questão do enraizamento.
            O regionalismo, dentro de um projeto de construção da literatura nacional ou mesmo da nação, poderia ser visto com uma busca das raízes? Ir para a região, afastando-se da metrópole ou da civilização litorânea, é ir de alguma forma para o passado?
            
            Também me ocorreram essas perguntas a propósito da sua formulação sobre o leitor previsto pelo autor. A função-leitor. E me perguntei se não seria possível construir uma definição ou mesmo uma tipologia do regionalismo a partir do jogo das imagens autor/leitor existente nos textos.

            Por exemplo: qual a posição do autor e do leitor em relação à matéria ficcional de O Gaúcho ou de O tronco do Ipê, de Alencar? É muito diferente do que ocorre nos romances indianistas? Quero dizer: não se tem, nesses dois romances regionalistas de Alencar, um autor falando de um assunto que lhe é alheio (no sentido da vivência – ou seja, algo que nada tem de testemunhal ou que se estribe numa experiência direta, e quem nem mesmo pode reivindica-la) para um leitor disposto a ser informado de algo distante da sua própria experiência e contexto? Não é algo semelhante o que ocorre no romance indianista? E, nesse caso, seria demais falar em exotismo, mesmo no sentido menos abrangente da palavra?

            Por outro lado, o jogo entre autor e leitor previsto, nesses romances, não é profundamente diferente do que vemos em Machado? Ou mesmo no Alencar dos romances urbanos?
            Se for assim, não faz sentido falar, como Coutinho, que Machado pertence a uma região ou sub-região literária... O que nos leva a pensar que o conceito de “região literária” de Coutinho pouco ajuda no estabelecimento do conceito de “regionalismo” ou na propriedade de atribuir tal palavra para descrever esta ou aquela obra.

            Por outro lado, quando Lins do Rego ou Graciliano escreve, qual o jogo? Para quem eles escrevem? Que notícia dão?
            Luís Bueno conta a febre que houve de romance nordestino. Algo semelhante, em certo sentido, à gula que Eça de Queirós registrava na Inglaterra, no fim do XIX, por livros de viagens. O regionalismo seria, nesse sentido, em alguma medida, um “dar notícia” do diverso, do diferente, do atrasado ou do paraíso perdido aos leitores concentrados na corte ou nas grandes cidades do tempo?
            E seria possível (ou seria sem sentido?) hierarquizar os romances regionalistas conforme seu interesse no oferecimento do típico (da macumba pra turistas, para retomar a frase de Oswald) ou no esforço de manter o típico e o pitoresco subordinado ao interesse maior da coerência estética?

            Quando tentava pôr alguma ordem nessas ideias, lembrei-me de uma referência que não consegui achar. Creio que era uma consideração de Inglês de Sousa sobre que tipo de linguagem usar ao escrever sobre uma região afastada. O ponto era que usar a linguagem da região exigiria uma profusão de notas que seria insuportável para o leitor. Não estou seguro, porém, de que tenha sido Inglês de Sousa a defrontar-se com esse problema – que foi o problema com que se defrontou Alencar ao usar a sua linguagem índia, por sinal. 
Mas seja dele ou de outro escritor “regionalista”, é uma questão válida, que incide sobre o leitor previsto no romance regionalista – que poucas vezes me parece poder confundir-se com o leitor “regional”. Quero dizer: o romance regionalista se define como tal não apenas pelo assunto ou espaço ficcional, mas também pela destinação: por ser um discurso que não perde de vista o fato de que fala para um público que não compartilha a experiência regional.

            Nesse sentido, é de fato notável que em Lins do Rego ou em Graciliano – depois do Modernismo – já seja bem conseguida a tal língua franca literária, em que já não são necessárias notas de rodapé, nem se apresente a cada momento, de forma crua, a divisão linguística entre o autor que fala para um auditório não regional e as personagens que falam no confinamento regional.    

            Por fim, creio que há um outro sentido da palavra “regionalista” no seu trabalho. É quando você fala de José Candido de Carvalho e, principalmente, de Francisco Dantas. Aí o sentido da palavra não é o mesmo de quando é empregada para definir a literatura de Lins do Rego, por exemplo. Quando você diz, na p. 16, que eles “dão sequência ao regionalismo literário”, entendo que se trata aqui de uma reivindicação: eles reivindicam a tradição, atuam sobre ela, filiam-se a ela, favorecendo um modo de leitura.
            Nesse sentido, ganha relevo o que anota na página seguinte: “Carvalho se faz um cronista de um mundo superado, em desaparecimento, que se inicia, a partir da segunda metade do século XVII, com a lavoura de cana em Campos de Goytacazes, na Baixada Fluminense, seguida de engenhos a vapor, ao lado da pecuária”.
            Ora, não era Lins do Rego também um cronista de um mundo em desaparecimento? Qual a diferença? Por um lado, isso permite que a obra de Carvalho, seja lida como pertencente à tradição regionalista, que reivindica. Por outro lado, algo me faz pensar que a diferença reside na palavra “superado”, pois a paródia de Carvalho parece evocar um mundo que não é mais agônico, e sim morto ou reduzido à fantasmagoria. Ou ao domínio da farsa.
            Já o caso de Coivara da memóriatalvez permita uma leitura diferente, mas que não é o caso de tentar aqui. 
            Basta, por enquanto, que este texto faça o que se propôs fazer: apresentar uns pensamentos soltos de alguém que nunca se dedicou ao tema, mas que, por isso mesmo, possam talvez servir de gatilho a uma conversa.



            

terça-feira, 7 de agosto de 2018

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Editor/autor - depoimento

Este texto foi escrito para integrar o volume A versão do autor, organizado por Jonathan Busato, Laura Moreira e Milton Nakanishi, e publicado pela ComArte, em 2004.
Fazia um ano que eu começara a dirigir a Editora da Unicamp, quando me pediram o depoimento. Por isso, em vez de falar como autor, preferi falar como dublê de autor e editor.
Hoje, em busca de material para uma memória, encontrei esse texto. E por trazer muitas coisas em que acredito, neste momento da nossa história editorial em que muita coisa mudou e está mudando no que diz respeito a editoras universitárias, resolvi publicá-lo no blog.

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Durante muitos anos, fui exclusivamente autor de textos. Alguns, perdidos; a maior parte merecidamente abandonada e esquecida em velhos disquetes de computador, que já não servem nas máquinas modernas; e uns poucos encadernados. Depois, por acidente de percurso, improvisei-me há pouco mais de um ano editor universitário.
            Como autor, sempre reclamei da demora dos trâmites para a elaboração dos livros, dos atrasos constantes dos cronogramas, dos imprevistos de toda ordem durante o processo de edição e lançamento, bem como lamentei a má distribuição, a morosidade da prestação de contas, as pequenas quantias recebidas a título de direitos.
            Desde que me desdobrei em editor, pude observar o outro lado do palco, as coxias e os camarins, bem como os esforços de publicidade e, finalmente, os magros resultados da bilheteria. E pude viver em sobressaltos por conta de vários pequenos fatores de desordem, imprevistos criados por prestadores de serviço, por funcionários e, claro, também por mim.
            Isso produz alguma esquizofrenia.
            Por exemplo: como autor, louvo e admiro o editor da Ateliê, pelo seu importante papel cultural de dar voz a autores estreantes; olho meu próprio primeiro livro de ficção, perfeito no seu design e acabamento, e me lembro de quando o editor me telefonou, dizendo que gostara de ter lido o texto e que por isso ia publicá-lo. Fico, então, feliz que existam alguns poucos como ele. Mas como editor, no dia seguinte, espanto-me com a temeridade do colega, que vai publicando novatos e investindo capital em obras de retorno improvável. Seguisse o meu impulso, como sou seu amigo (e parceiro em vários outros projetos), já lhe teria telefonado, aconselhando-o a não fazer imprudências como essa. Mas volta de novo a voz do autor, e já não telefono, preferindo referi-lo como exemplo a outros autores.
            Há algum tempo, quando era apenas autor, ficava muito irritado quando alguém me dizia que não tinha encontrado algum dos meus livros nas livrarias que frequentava. Praguejava, maldizia a ineficácia da editora, escrevia uma carta de reclamação.
Agora, como editor, continuo ficando irritado, mas além de me enervar por conta dos meus próprios livros, enervam-me em acréscimo as idênticas reclamações de autores publicados pela editora que dirijo. E como me esforço, todos os dias, para minorar os problemas da distribuição, o resultado é uma irritação elevada ao quadrado. A novidade é que ela agora se distribui contra vários alvos simultâneos: o livreiro, que quer descontos tanto mais escorchantes quanto maior é a importância da sua livraria; o distribuidor, que nem sempre faz um bom trabalho, a menos que também tenha, por sua vez, descontos inviáveis; os serviços internos das editoras, que canalizam os seus esforços para a divulgação daqueles títulos que trazem rendimentos mais seguros; o sistema educacional brasileiro, assentado na cultura do xerox e da apostila mal editada; as desastrosas políticas econômicas, que fazem o país passar por seguidas crises de desemprego e instabilidade econômica... Quando um autor me telefona, queixando-se da distribuição do seu livro, penso em pôr ordem no pensamento e lhe explicar tudo isso, mas logo desisto, porque ele provavelmente, como eu em outros tempos, não estará interessado ou simplesmente não acreditará em nada e pensará que são apenas desculpas por um trabalho mal realizado.
Nem tudo, porém, são divergências entre o ponto de vista do autor de ontem e o do editor de hoje. Um ponto central de concordância é o apreço à instituição da editora universitária. Como autor, a minha dívida é enorme: foram a Editora da Unicamp e a Editora da USP as que acolheram a publicação dos trabalhos a que dediquei a maior parte da minha vida intelectual. Se não existissem editoras universitárias que investissem numa política consistente de apoio à publicação de resultados de pesquisa, a parte mais importante dos trabalhos que realizei ao longo de 25 anos de carreira acadêmica estaria ainda inédita, restrita às estantes de teses dessas duas universidades. Em consequência, é muito provável que os demais trabalhos que acabei lançando por outras editoras não tivessem chegado a ser publicados.
Como editor, tento pagar essa dívida, apostando no modelo de editora universitária que me parece o melhor: o que privilegia a exigência acadêmica e a relevância científica na hora de selecionar os títulos, em detrimento das projeções de vendas. Ou seja, procuro entender que a saúde financeira da Editora é apenas uma condição para que ela cumpra o seu papel essencial de lugar de divulgação dos resultados importantes da pesquisa universitária.
Não é uma tarefa simples, como pode parecer, pois implica afrontar a crescente pressão para tornar hegemônico um modelo de editora universitária em moldes comerciais, atenta basicamente aos resultados de venda, aos balanços financeiros e orgulhosa do seu crescente afastamento das instâncias de julgamento qualificado e dos critérios de avaliação acadêmica.
Por fim, um último registro de concordância: o de que a boa editora é aquela trata bem o seu autor, que o compreende não como um elemento de mão de obra, ou como um mero cliente de serviços, mas como parceiro essencial, colega numa tarefa de construção e divulgação do conhecimento, e não mero produtor de mercadoria de sucesso ou de encalhe. É um ideal de editora, e é um fato digno de registro que esse ideal, quando se realiza, quase sempre o faz numa editora mantida e dirigida por uma instituição universitária de primeiro nível.