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MEMÓRIA
Quando me convidaram para participar deste volume, confessei com sinceridade que não tinha, no momento, nada mais a dizer sobre Camilo Pessanha. Ou melhor, que não tinha nada encaminhado, nem energia alguma, neste difícil momento em que se acha mergulhado meu país, para organizar o que ainda restasse de intuição de leitura ou de desejo de reparação.
Ante a resposta negativa, acompanhada de todas as desculpas que a amizade exigia, ofereceram-me a possibilidade de redigir uma memória, um depoimento sobre o trabalho que em tempos realizei à volta do poeta e sua obra.
É provável que não devesse abusar do oferecimento gentil, que devesse continuar firme na negativa, mas ocorreu-me que talvez valesse a pena registar não só as contingências do que pude fazer, mas principalmente a generosidade de tantas pessoas que encontrei ao longo dos anos. Generosidade tão notável quanto inesperada, e da qual me vali numa medida tão grande que posso dizer que nada do que pude fazer teria sido feito em outra circunstância, dada a premência do tempo e as contingências da vida.
Assim, porque a retribuição é, do meu ponto de vista, obrigação sagrada, resolvi escrever esta memória, que regista também, em certos aspectos, um mundo que já desapareceu.
Então, que seja.
1. QUE QUER DIZER ISTO?
Foi o que me perguntei sempre, ao ler Camilo Pessanha. Pela primeira vez no começo dos anos de 1970 e sempre que voltava e ainda volto aos versos, mesmo sabendo-os de cor, e tendo com eles longamente convivido em aulas, palestras, artigos e livros.
Quando iniciei os estudos de pós-graduação, dediquei-me à poesia concreta brasileira. E na sequência, querendo entender como funcionava o ideograma numa língua em que ele era moeda corrente, dediquei-me ao estudo do japonês. Daí passei ao haicai e às leituras sobre assuntos orientais. E ali voltei a encontrar, por outro caminho, o poeta.
No Brasil, a formação universitária naquela época tinha um ritmo lento. Foram 5 anos para obter um mestrado. E era comum que as pessoas demorassem outros 10 para terminar um doutoramento. Por isso mesmo, não tive pressa. Ao sabor dos interesses, deparei-me com Oliveira Martins, e nele e na Geração de 1970 permaneci um bom tempo. Tempo no qual Camilo Pessanha era apenas um dos poetas que integravam o programa da disciplina que ministrava na Unicamp e sobre o qual me dedicava, de tempos em tempos, a pensar de modo mais sistemático.
Na segunda metade dos anos de 1980, decidi escrever um ensaio sobre o poeta. Poderia ser um artigo, um livro avulso (como o que tinha feito sobre haicai), ou talvez mesmo uma tese de doutoramento. E como a carreira exigisse em algum momento o título, resolvi que, sim, faria uma tese sobre o poeta. Finalmente levaria a cabo um esforço consequente de leitura.
Entretanto, após a consulta ao que havia disponível no Brasil, um problema logo se apresentou: o cotejo das várias edições da Clepsydra trazia problemas de todo o tipo quanto ao “livro”, isto é, o desenho geral de um conjunto que o organizador afirmava ser projecto do autor. Mas qual seria esse livro? O de 1920, o de 1945 ou o de 1969? Além disso, no começo de 1985, a publicação de um número especial da revista Persona trouxe estudos, manuscritos, depoimentos e versões de poemas depois incluídos na Clepsydra, que me fizeram desistir de usar as edições “canónicas" como base do futuro ensaio interpretativo. Na sequência imediata, a publicação do “Caderno poético” numa versão pouco legível, em 1986, fez-me suspeitar ainda mais das edições correntes, tanto no que diz respeito à lição dos poemas, quanto à organização deles em conjunto significativo.
Por isso mesmo, decidi, antes de tentar saber o que queriam dizer aqueles poemas, saber o que eles eram, do ponto de vista da confiabilidade textual. Pensava que seria uma etapa difícil, mas breve, e por isso fui a Portugal pela primeira vez, por um mês, em Julho de 1989.
2. A SORTE
Em Portugal conhecia apenas uma pessoa, Teresa Sobral Cunha, com quem me encontrei no Brasil, por ocasião do centenário pessoano. E creio que o facto de ela ter sido o meu primeiro e mais duradouro ponto de referência em Portugal tem grande importância para a definição dos rumos da minha investigação.
Além da Teresa, tinha tido contacto por carta, por conta de uma publicação sobre Wenceslau de Moraes e o haicai, com Joana Varela, editora da Colóquio-Letras. E foi por intermédio da primeira que marquei uma entrevista com a segunda, a quem expus o que me trazia a Lisboa.
Joana Varela foi a primeira pessoa que me falou de outro estudioso da obra de Camilo Pessanha: Gustavo Rubim. Disse-me ela que eu precisava de conhecê-lo, falou-me com entusiasmo do seu trabalho sobre Pessanha. Mas daquela vez não foi possível encontrá-lo.
Foi também Joana que me pôs em contacto com meu primeiro benfeitor no caminho do poeta: Luís Amaro. Telefonou-lhe, disse que estava por ali um brasileiro interessado em escrever uma tese sobre Pessanha, pediu-lhe ajuda e marcou o encontro para o dia seguinte, porque o tempo era curto.
“Estou trabalhando para si. Aguarde só um momento”. Foi assim que o encontrei, debruçado sobre a máquina de escrever, terminando de dactilografar. E na sequência entregou-me, em várias páginas, uma longa lista de artigos em jornal e em revista, além de capítulos de livros sobre Camilo Pessanha, bem como de material iconográfico. Era o que ele conhecia e tinha catalogado, disse, apontando vagamente para um grande ficheiro. E acrescentou, com a modéstia bem conhecida, que talvez não ajudasse, pois eu provavelmente já conheceria os textos principais. Mas ia permitir talvez alguma economia de tempo de pesquisa.
Evidentemente, eu pouco conhecia daquilo tudo. Principalmente o que tinha vindo em jornais e revistas portuguesas. E a listagem de facto economizava-me, de modo quase mágico, uma semana (ou talvez mais) de trabalho na Biblioteca Nacional. Creio que não tornei a vê-lo depois desse dia. Mas por mais que tenha agradecido, não creio que o tenha feito de modo suficiente.
Luís Amaro disse-me ainda que eu devia procurar um estudioso da obra de Pessanha, que vivera em Macau e estava a organizar uma edição crítica. Chamava-se Daniel Pires, mas aparentemente tinha voltado a Macau. Que eu não me esquecesse de tentar contactá-lo, pois o que eu buscava, em termos de obter textos fidedignos sobre os quais escrever, ele certamente teria, ou estaria prestes a ter.
Como o outro, este também foi uma presença fantasmática ao longo dos dias daquele mês no qual eu começava ao mesmo tempo a perceber que a tarefa que me propusera seria mais difícil e ampla do que pensava, e alimentava a esperança de que o trabalho essencial já estivesse feito e eu dele pudesse valer-me.
Das leituras que tinha feito no Brasil e em Portugal, dois nomes me pareciam centrais para o que eu queria: Carlos Amaro, que inclusive teria projectado publicar os poemas de Pessanha numa plaquete, e Danilo Barreiros, que descobrira o “Caderno” e conhecera o parceiro do poeta na tradução de textos chineses, José Vicente Jorge. O primeiro tinha falecido em 1946; o segundo, pelo que soube, vivia em Lisboa.
A minha impressão de Portugal, nesse primeiro contacto, era de que se tratava de um país muito tradicional, no qual as mudanças se processavam lentamente. Era talvez uma impressão errada, mas valeu-me de muito. É que, pensando assim, fui ao catálogo telefónico da pensão onde me hospedava e busquei Carlos Amaro. No Brasil, jamais faria isso: procurar o nome de uma pessoa falecida há mais de 40 anos. Mas em Lisboa tudo parecia possível e atendeu-me uma senhora, que se identificou como Henriqueta Rodrigo, filha de Carlos Amaro. Expus-lhe o que me trazia a Lisboa, ela disse-me que tinha, sim, algumas coisas de Pessanha com ela. E no dia seguinte visitei-a, pelo fim da tarde.
Não exagero ao dizer que a visita foi um choque. Tomámos chá, conversámos um pouco. Ela pareceu ter real interesse em conhecer os projectos e motivos do brasileiro que estudava Pessanha e que não tirava os olhos da parede. E então permitiu-me ver o que lá havia. Emoldurados como quadros, dois manuscritos. Um, do poema intitulado "Violoncelo"; outro de um poema sem título, que nas edições canónicas se chamou “Final" ou “Poema final”.
Ambos traziam revelações. ”Violoncelo”, porque estava escrito na nova ortografia, diferentemente dos demais que Pessanha deixara registados, o que indicava que era posterior; e também porque na última estrofe havia uma inversão de versos, pois o poema terminava com a palavra “despedaçadas”. O outro, que era na verdade uma versão anterior à que já tinha visto no conjunto de manuscritos de 1915, depositados na Biblioteca Nacional, trazia uma indicação preciosa: “(Última página de um livro em tempos delineado)”.
O mais impactante naquele momento, porém, foi “Violoncelo”. Por isso comentei com D. Henriqueta a diferença da versão conhecida. E ela disse-me: “Meu pai sempre declamou assim, e dizia lentamente des-pe-da-ça-das, como se despedaçando a palavra”. Quando lhe disse que parecia uma versão mais nova do que a que conhecia, ela disse que devia ser, pois fora enviada da China para seu pai, depois do regresso de Pessanha. E acrescentou que, como eu podia ver, era papel “for post”.
Na sequência, disse-me que havia ainda muita coisa, e trouxe uma caixa com cartas do poeta, que me deixou rapidamente espiar. Explicou que estava a transcrevê-las, que Pessanha era muito maledicente, nomeava pessoas, falava mal delas. Na sua transcrição, ela suprimia os nomes, pois o pai não gostaria que aquilo transpirasse, pois ter-se-ia sentido cúmplice.
E não foi muito mais. Perguntei-lhe sobre Daniel Pires, que ela conhecia bem. Estava ele em Macau, mas ele conhecia tudo aquilo e muitas outras coisas. E por fim aconselhou-me a saber como encontrar-me com Daniel, pois era a pessoa que mais parecia conhecer o poeta e a sua história.
Animado com a descoberta, no dia seguinte repeti o procedimento: busquei na lista Danilo Barreiros. E foi ele mesmo que atendeu.
No dia seguinte, pelo fim da tarde, quem me abriu a porta foi sua mulher, D. Henriqueta, ex-aluna de Camilo Pessanha e filha de José Vicente Jorge.
A casa de Danilo Barreiros era uma parte da China incrustada em Lisboa. Havia quadros, estatuetas, dúzias de objectos chineses e um grande Buda de bronze perto da porta de entrada. E sobretudo havia aquelas duas personagens das histórias lidas, uma mulher elegante, reservada, e um homem de energia esfuziante e de um entusiasmo que contagiava.
Perguntou-me o que eu tinha vindo fazer a Lisboa, qual o interesse específico. E quando, de passagem, lhe disse que também tinha estudado Wenceslau de Moraes, pareceu impressionado. Mais ainda quando lhe disse que tinha lido os livros dele. Por fim, não se conteve quando me perguntou se havia livros seus em São Paulo e eu disse que não, que tinha ido ao Rio de Janeiro, onde os encontrei na Biblioteca Nacional. “Henriqueta, – gritou – este senhor viajou 400 km para ler os meus livros!”.
Não faria parte desta narrativa o que sucedeu a seguir, não fosse por um desdobramento, para além de afectivo, literário. E foi o seguinte: Danilo, no meio da conversa, pediu-me que me levantasse de onde estava, ao lado do Buda, e me sentasse numa cadeira de espaldar recto em frente a uma janela. Fiz o que pedia, mas não era suficiente: “de perfil para mim, por favor”. Sou um sujeito cordato, e assim me pus. E então ocorreu algo realmente inesperado. Disse-me ele: "o senhor é judeu!”. Que eu soubesse, não – respondi. Talvez árabe, por parte de avô. Não, insistiu ele: judeu, pela linha da testa ou do nariz ou do queixo - não me lembro bem. Eu queria voltar logo ao Pessanha, então me resignei com a análise e disse que talvez. Mas ele insistiu no questionamento: tem antepassados portugueses? Uma avó, respondi. Como se chamava? Teresa Barreira, eu disse. De onde? – ele perguntou, com muita animação. E eu disse o que sabia: de alguma aldeia em Trás-os-Montes.
Danilo exultou. Disse-me que éramos da mesma família: Barreira e Barreiros eram o mesmo, como se via em tal livro que apanhou na estante. E proclamou, afinal: “Somos primos!”.
Na sequência, chamou D. Henriqueta e apresentou-me como membro da família. Confesso que ela não pareceu nem muito animada, nem muito convencida. Mas não recusou o que ele lhe pediu a seguir: uísque, para celebrar, enquanto ligava para o filho, Pedro Barreiros, que tirou do trabalho para conhecer o primo brasileiro.
Pedro, com quem depois trabalharia e a quem devo tantas coisas, inclusive o convite para escrever o livro O Essencial sobre Camilo Pessanha na colecção da Imprensa Nacional, pareceu a princípio preocupado com o parente súbito, mas logo, por algum motivo, se tranquilizou e voltou ao que fazia.
E ali ficámos os dois, ainda a falar de Moraes e de Pessanha e de José Vicente Jorge e de Danilo Barreiros.
Danilo sofria de gota, mas a ocasião merecia o uísque. E junto com o uísque vieram lembranças, histórias de Macau e do Rio de Janeiro, e muitas outras coisas preciosas: um enorme álbum de recortes com tudo o que ele tinha coligido ao longo da vida sobre Moraes; o mesmo sobre Pessanha, e os seus próprios livros. Um deles, sobre Moraes, precisava de ser reeditado. Que eu o retomasse, ampliasse com a parte do haicai e outras que eu saberia melhor sobre o Japão, e que o publicasse no Brasil, com ambos os nossos nomes na capa! Por fim, o melhor: os manuscritos. O rascunho do “Vida” e outros, em originas e cópias. Tudo!
Ali conversámos longamente e bebemos longamente, até D. Henriqueta, preocupada com o excesso, delicadamente pôr fim à tertúlia. Antes que eu saísse, porém, Danilo ajuntou tudo aquilo em duas grandes sacolas – tudo, inclusive os manuscritos e os rascunhos de trabalhos seus. Agarrou nelas e quando me levou à porta, pediu-me que levasse aquele material, que o examinasse e usasse o que me conviesse. E depois devolvesse.
Voltei naquela semana uma vez à casa de Carlos Amaro, com uma garrafa e alguma esperança, porque o uísque era algo que a filha também apreciava e eu queria partilhar um final de tarde à sombra dos manuscritos. E também queria fazer uma fotografia do manuscrito do “Violoncelo”. Felizmente tivemos uma bela tarde de conversa, infelizmente não fui autorizado a fotografar o manuscrito. O que me valeu no futuro alguns dissabores, pois como registei sempre, como base, a última versão conhecida de cada poema, fiz o mesmo com o “Violoncelo”. Mas sem provas da sua existência, apanhei um pouco, sem poder retrucar e exibir o documento. Hoje o autógrafo está na Biblioteca Nacional, mas não permaneceu inédito: assim que D. Henriqueta faleceu, ele surgiu numa edição brasileira dos poemas de Pessanha, graças a Daniel Pires, que dele sacou, em certo momento de descuido da proprietária, para ma oferecer, uma fotografia sorrateira.
À casa de Danilo voltei várias vezes, porque ficámos amigos e eu lhe pedi algo que faria bem a nós dois: que me ditasse as suas memórias.
Danilo tinha uma memória fabulosa e o dom da oratória. Dia após dia, por uma ou duas horas ditou-me a vida desde a infância, inclusive alertando para a necessidade de vírgulas, quando achava que não estava claro o ritmo da frase. Como piorasse da gota e eu tivesse de voltar, encerramos em 3/4 do tempo vivido. O restante 1/4 enviou-me depois ele, ainda com o vocativo de “querido primo”, para o Brasil. Mas do que me disse sobre Pessanha, como jurista e como sinólogo, disso tomei notas tanto quanto pude.
Do material que me deu, fiz fotografias. Do que me disse, também, mentais. Mas lamentei muito não ter um gravador. Não só para registar o que ele me disse, mas principalmente (porque ele escreveu, mas ela não), o que me disse D. Henriqueta sobre Pessanha, seu professor.
E o que ela me disse confirmava o que eu já tinha imaginado pelas fotografias que vira e pelo relato do seu enterro: era um homem da sociedade macaense, respeitado, elegante; almoçava pelo menos uma vez por semana em casa de seu pai, e estava sempre perfumado, com um lenço de seda no bolso. Disse-me que se sentava na primeira fileira, na classe, e que ali também o encontrava sempre bem vestido e perfumado. Por fim, que era um excelente professor. Em suma, desmentia com empenho a legenda miserabilista que se construíra sobre o homem. Era alguém importante na comunidade, repetiu-me. Poucos meses após falecer, uma rua ganhou o seu nome. E tudo estava de acordo com o que eu mesmo intuía ou ia descobrindo, e poderia constatar quando fosse a Macau, dois anos depois.
3. O ACASO
Tendo estudado no Brasil o que levara da primeira viagem e sistematizado o material disponível, ainda não sabia bem o que fazer.
Já nessa altura estava matriculado no curso de doutoramento sob orientação de Maria Helena Garcez, e tinha cursado as disciplinas necessárias. Ainda queria fazer um ensaio. Mas processava os textos, em busca do que me parecia a versão mais fidedigna.
Teresa Sobral Cunha insistira em Lisboa e continuava a insistir por cartas para que eu fizesse uma edição crítica da poesia de Pessanha – o que me parecia, naquele momento, um desvio. Além disso, não tive formação filológica. Agora, no Brasil, a minha orientadora sugeriu o mesmo. Viu que eu tinha uma tese, que era a de que as edições feitas pelos Osórios não se sustentavam, principalmente no que diz respeito à forma do livro, isto é, ao desenho temático ou formal que o volume pressupunha. E aconselhou-me a expor e defender essa tese, embasado no que eu tinha descoberto nos autógrafos.
A princípio a ideia desagradou-me. Indeciso, acabei por continuar, porém, mas ainda sem propósito de tese, o que vinha fazendo: anotar todas as variantes conhecidas de cada poema, tendo como referência a última versão conhecida. Para isso tinha criado um programa de computador, que processava os registos a partir de todos os textos que eu tinha digitado. Destacadas as variantes, submetia-as a um sistema de notação que tinha inventado e que me parecia deixar visíveis as etapas da composição. Tinha feito isso com os poemas que pretendia analisar, que eram poucos. Mas estava tudo a meio caminho com os demais, pois a obra era pequena.
Foi então que o acaso interveio: uma norma implantada de súbito na Unicamp determinou que em 3 anos todos os professores com título de mestre tinham de obter o título de doutor, caso contrário não poderiam manter o regime de tempo integral, nem o salário correspondente.
Em decorrência dessa ameaça, resolvi aceitar a ideia de apresentar o trabalho com os poemas, precedido de um longo debate e análise das edições canónicas, com vista à afirmação da tese de que nenhuma daquelas edições deveria, nem mesmo a primeira, ser considerada edição de autor – apesar da carta em que Pessanha agradecia a Ana de Castro Osório a publicação do livro.
E para poder avançar nesse trabalho, inclusive cotejando as minhas cópias manuscritas com os autógrafos disponíveis, regressei a Portugal, por mais 5 meses, em 1991.
4. A OUTRA PARTE
Quando cheguei a Lisboa, soube que havia uma exposição sobre Camilo Pessanha, em comemoração dos 70 anos de publicação da Clepsydra. A exposição tinha vindo de Macau, e fora organizada por Daniel Pires.
Fui imediatamente, no dia seguinte, à Casa de Macau, para a suprema decepção de saber que a exposição terminara há dois dias. Expus então a quem me atendeu, sem nada tentar ocultar, o desespero que me invadiu. Principalmente depois que vi o catálogo. Expliquei que chegara do Brasil na véspera, disse que já tinha estado em Portugal a estudar o Pessanha, que queria muito conhecer Daniel Pires, perguntei-lhe ainda se sabia se ele estava em Portugal, e talvez tenha dito mais coisas, porque a boa senhora me disse que Daniel Pires não morava em Lisboa, mas ia telefonar-lhe e, se ele permitisse, me deixaria dar uma espiada no material. “Qual é mesmo o seu nome?”, perguntou antes de fechar a porta.
Logo depois foi-me aberta essa mesma porta e a excepção – e eu pude então olhar aquilo tudo. Manusear tudo. Assim como no espólio de Pessanha. Não era ainda o tempo dos microfilmes, nem das cópias digitais. Na Biblioteca, as duas caixas com as coisas do poeta foram-me trazidas certo dia, na sala de leitura da secção. E ali ficaram, dias a fio, enquanto eu as utilizava. Ninguém a vigiar, ninguém a perguntar ou regular coisa alguma. Foi só quando terminei o trabalho que as recolheram e guardaram. Agora aquilo repetia-se, com o que acabava de ser exposto e ia em breve voltar para o lugar de origem.
No material da exposição, interessaram-me especialmente as fotografias. Com elas o curador fez cartões postais, de óptima qualidade. E a bibliografia do catálogo era realmente fantástica. Olhava para aquilo tudo e comovi-me a ponto de chorar, pois as fotos, os documentos, tudo aquilo transpirava um carinho com o poeta e um desejo de verdade que ecoavam fortemente em mim.
Quando percebi uma sombra ao lado, ergui os olhos. Vi um senhor com um ar de interesse misturado com espanto. Perguntou-me algo, com voz tímida. Algo como se estava a achar interessante. E apresentou-se: Daniel Pires. Deve ter sido um momento estranho para ele. Circunspecto e tímido, não deve encontrar todos os dias um brasileiro com os olhos embaçados, muito menos um que corre a abraçá-lo, agradecendo-lhe efusivamente a permissão de ver a exposição e, sobretudo, o trabalho magnífico com a memória do poeta.
Quando visitei Daniel em sua casa, em Setúbal, mostrou-me ele o muito que coligira em anos de dedicação. Pastas e mais pastas com fotocópias e anotações manuscritas. Tudo o que encontrara, em Portugal e em Macau e em outras partes, sobre e de Pessanha. Contei-lhe o que estava a fazer, ele disse-me que tinha tido notícias por Pedro, Danilo e Joana. Ofereceu-me o que eu precisasse.
Daniel planejava fazer uma edição crítica da poesia de Camilo Pessanha. Para isso tinha buscado tudo que encontrou. E ainda havia mais, e ainda parece que há mais – até hoje há mais, mas se ele não encontrou, provavelmente é porque alguém não quer que seja por enquanto encontrado.
Naqueles dias, ele aos poucos foi copiando tudo que achava que me podia interessar. E um dia por fim disse-me que eu deveria fazer a edição crítica, que ele pensara nisso, mas estava envolvido em muitos outros projetos, não tinha tido tempo, nem disposição. Achava que eu podia fazer um bom trabalho, então que fizesse. E contasse com ele. Como de facto contei, até o ponto de ter declarado várias vezes, por escrito ou de viva voz, que, não fosse a sua confiança e incrível generosidade, não teria feito o que fiz no prazo de que dispus.
O que me faltava naquele momento, dado o tipo de trabalho que fazia (registo verso a verso, palavra a palavra, das intervenções de Pessanha), era então, por conta da generosidade de Danilo e Daniel, pouca coisa: consultar os autógrafos do Caderno, em Macau. E outra vez pude valer-me da amizade de Joana Varela, a quem manifestei o desejo de ir à China. Ali mesmo, com a mesma agilidade e facilidade com que agendara a entrevista com Luís Amaro, marcou-me ela uma reunião com Alçada Baptista, na Fundação Oriente.
A reunião, no dia seguinte ou dois dias depois, foi rápida. Perguntou-me o que eu estava a fazer, o que queria fazer, por que queria. E quando lhe disse, perguntou: quando quer ir? E três dias depois embarcava eu para Macau.
Duas semanas mais tarde, voltei à Fundação Oriente, com um longo relatório dos trabalhos realizados. Alçada Baptista recebeu-me, curioso para saber o que eu tinha conseguido. Contei-lhe tudo, ele perguntou-me disso ou daquilo, falámos um pouco de Pessanha e dos seus leitores. Por fim, disse-lhe que trouxera o relatório. No relatório eu tinha escrito o que lhe tinha contado, não era verdade? Foi o que me perguntou. Eu disse que sim, talvez com mais detalhes. Então já não era preciso relatório algum: ele tinha ouvido o que eu tinha feito, tinha ficado satisfeito com o resultado e só lhe restava desejar que eu fizesse um bom trabalho e que a obra do Pessanha tivesse finalmente o cuidado que merecia. E não nos tornámos a ver.
5. O TRABALHO
A tese que resultou não era uma edição crítica. Era um arrazoado sobre a história editorial, que trazia em apêndice os poemas conhecidos, com todas as suas variantes, tendo por texto-base a última versão autoral conhecida. Intitulou-se justamente “Clepsidra de Camilo Pessanha - uma proposta de edição”. E foi isso que apresentei, algum tempo depois, à Editora da Unicamp: um livro com esse exacto título.
Na verdade, o título não era muito correcto, porque a proposta de edição consistia, naquele momento, em recusar as edições correntes. O que quer dizer que consistia em recusar uma edição definitiva de minha parte, bastando-me a satisfação de oferecer a futuros editores um grande e organizado banco de dados, do qual cada um poderia extrair o que melhor lhe parecesse, tendo sempre à mão a informação do que era autoral e do que não era, em cada poema, bem como as várias versões que cada um teve ao longo do tempo. Ou seja, a minha tese não trazia, no final das contas, uma proposta de edição. Só um desmonte das que havia.
A edição campineira foi um desastre. Gralhas, interferências absurdas do revisor, ausência de revisão de provas pelo autor. E foi também um erro no que diz respeito ao título. Ainda tentei uma solução intermediária, “Poemas de Camilo Pessanha - uma proposta de edição” – que tampouco era um bom título, pelo motivo acima. Acabei por aceitar o argumento editorial – do qual depois já não me livraria – de que deveria intitular o conjunto com o nome tradicional do livro de 1920 e seguintes.
A edição portuguesa foi a brasileira totalmente expurgada dos erros grosseiros devidos à composição e revisão selvagem, e acrescida de alguns poucos dados novos, recentemente revelados. E manteve o título.
Dezasseis anos depois, quando penso no livro publicado não tenho a certeza se fiz bem em publicá-lo. Quanto ao trabalho que ele traz com os poemas, não conseguiria fazê-lo melhor hoje, porque os dados continuam os mesmos e estão ali anotados com clareza e com tanta correcção quanto me permitiram as minhas capacidades. Nem creio que, com o mesmo objectivo, alguém poderia fazer melhor essa tarefa, afinal de contas simples, a que me dediquei: registar todas as variantes autorais, em sequência temporal.
No que toca ao debate sobre a pertinência das edições dos Osórios, continuo disposto a defender os argumentos ali apresentados, pois até hoje não vi refutação racional e convincente de nenhum deles. Mas a junção do banco de dados com a apresentação, e a necessidade de dar a versão autoral mais recente como texto de leitura, para sobre ela marcar em apêndice as variantes, talvez tenha produzido alguma confusão. O ponto era que eu precisava de dar uma disposição sequencial dos poemas, já que seriam apresentados em folhas encadernadas. Fosse um livro em folhas soltas, esse problema poderia ser amenizado, pois eu poderia simplesmente dispor um poema no anverso e a anotação das variantes no verso. Mas mesmo assim um problema persistiria: em folha solta ou não, a última versão autoral é a que se apresenta à leitura – e desse critério, não abri mão, pelos motivos que expus no arrazoado crítico. Ora, o problema é que, se essa era uma opção de apresentação do trabalho editorial, nem por isso era uma escolha de versão preferencial a oferecer ou impor ao leitor.
Por exemplo, vejamos o caso de “Violoncelo”. Li, ouvi e decorei o poema na versão em que se mantém invariável a estrutura estrófica, o esquema de rimas. A versão mais nova – que é a que Carlos Amaro declamava – além de trazer variantes de pontuação e troca de uma palavra no verso 16, subverte o esquema das rimas na última estrofe. É possível atribuir sentido a isso: o despedaçamento dá-se inclusive na forma. Provavelmente por efeito do costume, talvez eu prefira a versão anterior. E certamente, a julgar pelas reacções de um amplo espectro de leitores, é a preferida da maioria. Mas independentemente do que fosse o meu gosto ou do que é o gosto geral, essa versão mais antiga e publicada na Clepsydra, é aquela que, por conta do princípio norteador do trabalho, não é a que eu me poderia permitir apresentar como texto de base – e, portanto, como texto oferecido à leitura imediata.
Quanto à apresentação dos poemas no livro físico, a minha opção foi eliminar radicalmente qualquer princípio interpretativo na disposição sequencial. Isso está explícito no texto de apresentação, mas nem sempre parece ter sido compreendido. Porque um leitor distraído – e são muitos – pode acreditar que eu propus uma ordenação cronológica dos poemas de Camilo Pessanha. E nada mais longe do meu propósito. O que de facto fiz foi organizar os poemas pela data do seu primeiro conhecimento. Da sua primeira datação possível. Assim, se de um poema como “Ó Magdalena, ó cabellos de rastos…” só nos chegou a notícia e o texto da sua publicação em jornal, é na data correspondente a essa publicação (13/12/1890) que ele vai comparecer no livro. Já um poema como “Violoncelo”, cuja primeira versão vem datada de 1900, fica, no livro, junto com outros dessa data, mesmo que entre a primeira versão e a última, posterior a 1916, haja diferenças enormes.
A conjugação desses dois critérios (forma de anotação de variantes e apresentação dos poemas por data de conhecimento) entende-se e justifica-se quando se considera que a publicação não visava estabelecer um texto definitivo, muito menos um desenho de livro significativo. Pelo contrário, como lá explicitava, “a partir deste trabalho poder-se-á proceder, na leitura ou em publicações de diferente natureza, a novas ordenações e seleções, temática ou formalmente mais significativas, que pessoalmente não me julgo capaz de fazer, nem me sinto tentado a experimentar”.
Essa observação só não era por inteiro verdadeira porque houve um momento em que me senti tentado a experimentar uma nova ordenação.
É que descobri, no verso de um recorte colado à contracapa da primeira edição da Clepsydra, a lista dos poemas a recolher. Uma lista numerada, que em nada batia com a ordem da primeira edição, a começar pelo facto de que não dividia os poemas em sonetos e não-sonetos. Mas havia dois problemas com a lista: o primeiro é que ela era muito breve, dava conta de poucos poemas. É certo que esse problema eu poderia tentar resolver, adivinhando ou propondo, a partir do desenho da parte, o desenho do todo. Mas o segundo problema eu não consegui imaginar como resolver na época: os autógrafos traziam dípticos de sonetos. Alguns dos mais belos sonetos de Pessanha formavam dípticos, claramente indicados nos autógrafos e em outras publicações. Mas, na lista dos poemas a incluir, sonetos que formavam dípticos apareciam isolados! Isso pareceu-me um obstáculo intransponível, e desisti de sequer tentar uma reconstrução arqueológica do livro perdido!
E foi bom talvez que eu assim pensasse na época e não soubesse mais. Porque, caso contrário, eu poderia nunca ter terminado o trabalho de doutoramento a tempo, envolvido com a tarefa (impossível de justificar, num trabalho destinado à arguição) de imaginar o desenho do livro perdido.
Hoje talvez fosse diferente. É que, como disse, na época em que o descobri, o papel estava colado na contracapa do livro. E eu limitei-me a ler contra a luz o que pude, sem violentar o documento. Com o tempo e o manuseio do livro, porém, pessoas menos cuidadosas podem ter propiciado a revelação: na frente de cada um dos sonetos que deviam formar dípticos havia um sinal de +. Sinal que eu não pude ver, quando adivinhava as letras pelo reverso do papel. De modo que a lista passou a fazer mais sentido, e eu talvez não pudesse – se a tivesse descolado e lido – fugir à tentação que tive, mas disse que não tive, por ela ser fraca e desprovida de esperança, no momento.
6. O DEPOIS
Tendo feito o trabalho preliminar, passado algum tempo comecei a redigir, sobre os escombros da Clepsydradesmontada, uma leitura de alguns poemas. Num primeiro momento, fiz o que me parecia o mais lógico: ler um mesmo poema ao longo do tempo, observar as suas transformações, tentar discernir a poética implícita nas sucessivas alterações.
Desse trabalho nasceu o livro intitulado Nostalgia, exílio e melancolia - leituras de Camilo Pessanha. Tentando ver na melancolia e na nostalgia duas atitudes líricas, dois modos, percorro alguns poemas, alinhavando-os com o tema do exílio, recorrente na poesia e na prosa de Pessanha. O texto original era digressivo, um tanto parafrásico, talvez por conta ainda das leituras de juventude, no seu maravilhamento. Para apresentação em tese de agregação (livre-docência) e em livro, fui enxugando-o de tal modo, eliminando as conexões dispensáveis e tudo o mais que que me pareceu supérfluo, que resultou num conjunto de capítulos duramente elípticos, argumentativamente cerrados, pesadamente descritivos. Mas para o fim a que se destinavam, que era tentar verrumar aqueles textos que há tantos anos me obsidiavam, teve em mim um efeito terapêutico. Não imagino se o ensaio traz algo novo e proveitoso ao leitor que por acaso dele se aproxime, disposto a enfrentar a pedreira que ele acabou por ser. Mas sei o que ele representa, ao menos para mim: uma tentativa de leitura sem as muletas habituais, seja dos contextos sociais, seja dos famigerados estilos de época, seja – por fim – dos últimos gritos sempre efémeros da Teoria.
Na sequência, pouco fiz sobre o poeta a quem terminei por dedicar tantos anos. Algumas tentativas de explicar o sentido do trabalho de busca e consideração de variantes, algumas defesas a ataques tão mais virulentos quanto menos qualificados, algumas leituras isoladas de poemas e um estudo um pouco mais demorado da vida de Pessanha, destinado a desmontar as absurdas ficções biográficas que parecem tão resistentes quanto o mito do poeta sem escrita.
Ou seja, olhando desde este ponto de vista, o meu trabalho foi essencialmente um trabalho de desmontagem, de desbaste. Gostaria de poder estar convicto de que foi um trabalho de utilidade geral. Mas nesta altura da vida contento-me em pensar que foi um trabalho sério, sem outro objectivo que não fosse a fidelidade ao que se me apresentava como razoável ou como verdadeiro.
7. O AGORA
Mas a história da Clepsydra como desafio ainda não estava terminada. Como disse acima, só depois de findo o trabalho, alguém – no caso, Ilídio Vasco – me enviou a informação de que a lista dos poemas estava descolada do livro, e que agora se via um sinal + após os seguintes versos, que indicavam poemas: “Se andava no jardim”, “Passou o outono já, já torna o frio”, “Desce em folhedos tenros a colina”, “Singra o navio. Sob a água clara”, “Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho”, “Imagens que passais pela retina”.
Essa revelação foi importante, por dois motivos: primeiro, porque resolvia a conflito entre a listagem e os autógrafos, já que nos autógrafos havia claras indicações de sequência, indicações de que vários sonetos deviam vir agrupados dois a dois. Agora, com o sinal de +, era possível saber onde se inseriria, na distribuição ideal do livro, cada conjunto; segundo, porque confirmava a suspeita de que se perdera um soneto, que fazia par com “Quem poluiu”, e um poema, que fazia par com “Se andava no jardim”.
Quando organizei a edição da poesia de Pessanha para a Ateliê editorial, no Brasil, não ousei propor nada diferente do que fizera na edição que saiu pela Relógio d’Água. Apenas anotei a novidade do que havia no verso da folhinha colada no livro de 1920. Entretanto, alguns anos depois, mais exactamente em 2018, quando aceitei organizar o texto dos poemas para a editora Lisbon Poets, resolvi propor um novo arranjo. É que as edições anteriores, que sempre considerei edições de trabalho, repositórios de informações, começavam e terminavam a apresentação dos poemas, como dito acima, pela ordem do seu conhecimento. Ora, o objectivo da Lisbon Poets era apresentar o poeta ao público internacional. O texto que eu proporia, na ordem em que o propusesse, serviria de base para as edições bilíngues em inglês, espanhol, francês, chinês, italiano, etc. Considerando que não valia a pena começar pelos poemas mais juvenis, e sem aceitar a ideia de que poderia propor uma sequência estribada apenas no meu gosto pessoal, lembrei-me do desafio da lista fragmentária. E assim fiz: o livro resultante tem duas partes bem marcadas. Na primeira, recompõe-se (embora com as lacunas dos dois textos perdidos que fariam díptico com os que estão listados) aquela parte do livro que Pessanha indicou aos editores. Na segunda, vêm os demais poemas, na ordem do seu conhecimento, como nas edições anteriores.
Sei que qualquer proposta de ordenação dos poemas que não se escore na primeira edição de 1920 causa estranheza. Porque é do hábito. Mas não só a divisão do livro em “sonetos” e “poesias” parece absurda, tendo em vista a crítica que Pessanha fez a igual solução em livro de um contemporâneo, mas também fica claro, nos comentários de João de Castro Osório, que a publicação de 1920 fora feita com o que havia à mão. Tanto que ele não só alterou a ordem das peças, como ainda foi acrescentando ao núcleo original tudo o que encontrou posteriormente.
Ainda a respeito dessa questão, gostaria de apresentar um último argumento. Que é bem racional, embora tenha ocorrido num sonho, cuja narrativa não deve causar espanto neste texto de carácter tão pessoal... Um sonho que me ocorreu na véspera de uma conferência realizada na Sociedade de Geografia de Lisboa. Eu falaria, mais uma vez, sobre a edição dos poemas. E já previa a contestação em duas frentes: a dos tradicionalistas, que se aferram à edição de 1920, e a de quem pudesse acusar-me de não ter proposto uma ordenação ideal, não ter reconstruído de alguma forma o “livro”, excluindo as partes mais fracas da produção do poeta e destacando as mais fortes.
Talvez porque me visse obrigado a repetir os argumentos, sonhei que se me apresentavam, em desfile perante os olhos, capas de vários livros de poemas. Antero de Quental, Sonetos; Eugénio de Castro, Oaristos; Alberto Osório de Castro, Flores de coral; António Nobre, Só; Guerra Junqueiro, Os simples. E depois, só duas: O livro de Cesário Verde, e Clepsydra – poêmas de Camillo Pessanha. Depois de acordado, ainda me ocorreu, quando percebi o que eu tinha mostrado a mim mesmo no sonho, um outro exemplo: Os sonetos de Anthero de Quental publicados por J. P. Oliveira Martins. É que este último exemplo completa os anteriores e é explicativo do sonho inteiro: quando Antero publica seus sonetos ele mesmo, a assinatura vem no alto da capa; quando Oliveira Martins organiza a obra do amigo, o lugar da assinatura – o alto da capa – fica vazio. Assim também se dá com Cesário: o seu nome não ocupa a posição que responde pela autoria do livro. E com Camilo Pessanha. Ana de Castro Osório poderia ter inscrito o seu: Clepsydra – poêmas de Camillo Pessanha publicados por... Não o fez, certamente por modéstia. Mas indicou claramente o que o livro era: uma colecção de poemas que ela organizara – e organizara, como disse tantas vezes o seu filho, com o que tinha, uma vez que Pessanha nunca enviara de Macau os demais poemas que a ela prometera.
Hoje celebramos os 100 anos desse gesto amoroso, que foi a recolha e publicação em volume, por Ana de Castro Osório, dos versos de Camilo Pessanha. Sem ela, não sabemos o que hoje seria a memória do poeta. Devemos-lhe todos muito. Mas que esta homenagem não seja motivo, nesta data comemorativa, para atribuir à edição de 1920 outro estatuto além do que lhe cabe: recolha, ajuntamento, salvamento da memória. Já é suficiente glória. E merecida. Não precisamos de ir além.
* In: Catarina Nunes de Almeida (org.) Clepsydra 1920-2020 - estudos e revisões. Lisboa: Documenta, 2020.
Homenagem a Camilo Pessanha
Acabo de receber e de ler o livro Ladrão de tempo, de Carlos Morais José, que será lançado amanhã, dia 29/12, em Macau, juntamente com um volume de ensaios dedicados à obra do poeta, coordenado por Catarina Nunes de Almeida. Ambos prestam uma bela homenagem aos 100 anos de publicação da primeira recolha de versos de Pessanha em livro, a Clepsydra.
Ainda no calor da leitura, mesmo correndo o risco de não perceber o que uma segunda visita talvez permitisse ver, não quis deixar sem registro as impressões que me deixou esse livro bem editado e bem ilustrado.
Li com muito interesse, pois há tempos acompanho o trabalho do autor, a quem se deve o achamento das correções que Pessanha fez no exemplar da revista Centauro que lhe pertenceu. Eu mesmo, quando estive em Macau, busquei ansioso esse exemplar, do qual dispunha de apenas uma página fotocopiada, que me fora cedida por Daniel Pires. Com base nela, anotei, na edição de 1995, a variante preferencial. Mas havia muito mais, dissera-me Daniel Pires. Algum tempo depois, soube que eu não encontrara a Centauro porque tinha ido para restauração – num trabalho que teria consistido em apagar com corretor branco as intervenções do poeta. Felizmente (se é que a história é verdadeira), des-restauraram-se as páginas. E mais felizmente ainda, Carlos Morais José as encontrou e generosamente as estampou na edição da Clepsydra, que fez com Rui Cascais e publicou em 2004.
Mas a relevância do trabalho do autor vai além dessa importante descoberta e da edição em que vieram as reproduções. Vivendo em Macau desde 1990, em vários momentos organizou eventos comemorativos da memória do poeta, redigiu textos, fez discursos e palestras, escreveu ensaios interpretativos.
Uma parte desse material vem agora coligida no volume que acabo de ler.
Compõe-se o livro de 5 textos de caráter diverso. Do primeiro deles, intitulado “O exilado”, gostaria de destacar um ponto muito positivo, que é a crítica ao automatismo biografista, que toma pelo valor de face as esquisitices do poeta. Por exemplo, a organização da sua casa e as fotografias em que se faz retratar por um fotógrafo profissional em trajes e situações estudadas com vistas à produção de um efeito. É certo que, nesse primeiro ensaio, Morais José dá muito facilmente voz a duas figuras cujo depoimento é suspeito, pela carga de ódio e ressentimento que transpiram. Refiro-me aos irmãos Francisco Penajóia (nome literário de Francisco de Carvalho e Rego) e José de Carvalho e Rego. De fato, se há algo de crível nos “testemunhos” da dupla é a dose de fantasia que acrescentam aos fragmentos de realidade sobre os quais teceram sua fábula maledicente. É verdade que Morais José coloca sob leve dúvida o relato que faz este último Rego de uma visita que o escritor Blasco Ibañez teria feito a Pessanha. Mas transcreve a fantasia. Ora, Ibañez esteve em Macau cerca de doze horas, se tanto. Visitou nesse intervalo as ruínas de São Paulo, o castelo, a Gruta de Camões, o centro comercial e, antes do banquete oficial, foi visitar um típico prostíbulo chinês. Do banquete partiu diretamente para o navio que o levaria a Hong Kong. Dessa visita, redigiu Ibañez um minucioso relato, que inclusive menciona um escritor português, “Sebastián Da Costa”. Nem uma palavra sobre Pessanha, que, segundo Carvalho e Rego teria sido um dos motivos para sua ida a Macau...
Mas mesmo com essas concessões aos “testemunhos” fraternos, o que ressalta do ensaio, no que toca à biografia de Pessanha, são dois pontos: o primeiro é a convicta apresentação do caráter poseur de Pessanha, que desenvolve como elemento de um esforço concreto de distanciamento da Europa, analisando o seu caso no quadro mais amplo do exotismo finissecular; o segundo é, ainda dentro dessas balizas, a reflexão sobre a casa de Pessanha, tanto a casa paterna, lugar da infâmia, quanto a casa macaense, lugar da preparação para a morte e para o desaparecimento.
No segundo artigo, intitulado “A dor que deveras sente”, continua a crítica ao biografismo vulgar que ocupou boa parte dos textos dedicados ao poeta, e toma a sua poesia num sentido, digamos, filosófico: de exploração do estar no mundo. O resultado é ainda, talvez, biográfico. Mas num sentido mais alto: uma biografia propriamente filosófica, na qual a análise dos textos se processa em função da cosmovisão que identifica no conjunto dos poemas de Pessanha.
No terceiro ensaio, intitulado “Marginalidade e utopia: o poeta no seu santuário”, Morais José reflete sobre a relação conturbada e complexa do poeta com Macau. Ainda aqui, combate o mau biografismo, especialmente a tão propalada abulia do poeta e o seu suposto desconhecimento do idioma chinês. Falando com propriedade da cidade que conhece tão bem e do poeta a quem dedicou muito estudo, é um ponto alto do livro.
Por fim, na quarta e penúltima posição temos o discurso proferido quando do aniversário de 80 anos da morte do poeta. Intitulado “Não deitem fogo, não é para arder”, é um belo testemunho da dedicação do autor ao poeta e à sua poesia.
Ao final do volume, como uma coda e assim apresentado, pois o texto vem após uma larga cronologia da vida e obra de Pessanha, encontramo-nos, em “Ladrão de tempo”, não mais apenas com o estudioso da obra, mas sobretudo com o poeta Carlos Morais José, que ali comparece costurando, em voz própria, frases, versos, imagens do autor da Clepsydra.
No prefácio do livro, o seu autor nos informa que “é, pois, tempo de encerrar e de exorcizar. Neste livro reúno alguns dos textos que sobre Pessanha escrevi, numa homenagem final ao poeta, ao homem e à cidade que temos em comum.” Pouco mais adiante, ainda no mesmo prefácio, faz uma promessa solene a Camilo Pessanha: a de que não vai mais ocupar-se de sua vida e de sua obra.
Cumpre-nos torcer para que não a cumpra.
*
Carlos Morais José. Ladrão de tempo. Macau: COD, 2020.
Editoras universitárias: seu papel social[1]
Para ir logo ao ponto desta apresentação: eu creio que o papel social de uma editora universitária é em tudo homólogo ao papel social da universidade, de que ela é parte.
Embora seja possível encontrar semelhanças entre universidades públicas e privadas, no que toca à sua função social, a mim parece evidente que as públicas têm escopo muito diferente aqui no Brasil. De fato, elas oferecem gratuitamente ou quase gratuitamente uma formação que, nas universidades privadas, tem um grande custo.
As universidades públicas brasileiras, tanto as federais quanto as estaduais, são um investimento governamental, de base amplamente democrática, tendo por finalidade não o lucro, mas a criação de um espaço de pesquisa e ensino, capaz de bem formar pessoas nas várias áreas do conhecimento.
Já uma universidade privada, mesmo quando não tenha o lucro como principal objetivo, necessita fazer um balanço entre as condições ótimas ou ideais e as condições possíveis, dentro de um orçamento que é determinado, no Brasil, quase exclusivamente pelo pagamento de mensalidades.
Disso derivam imediatamente algumas diferenças.
Uma universidade pública normalmente mantém o ideal universitário de contemplar todas as áreas do conhecimento, mesmo as que são menos rentáveis – seja por pouca procura, seja por alto custo operacional, seja por não terem uma terminalidade valorizada pelo mercado. Da mesma forma, uma universidade pública pode investir enormemente nas instalações e equipamentos de ponta, necessários à realização de pesquisas e à formação de pesquisadores, sem precisar fazer as contas do retorno financeiro desse investimento.
Outra diferença fundamental é que são as universidades públicas que mantêm o mais amplo espectro de cursos de pós-graduação de alto nível, e é nelas que encontramos a maior quantidade de docentes com alta titulação, trabalhando em tempo integral.
Esse breve quadro serve para situar o foco da minha fala, que é a editora da universidade pública no Brasil. Alguns pontos certamente serão comuns entre editoras de universidades públicas e privadas, mas não todos e talvez nem mesmo a maioria.
Começo então por uma questão que comparece frequentemente no discurso sobre editoras de universidades. E o ponto é este: recentemente, por conta de uma visão pobremente empresarial, administradores insistem no conceito confuso de “autossustentável”. Uma editora deve ser autossustentável, repetem até à exaustão reitores, pró-reitores, gestores de vário calibre e até – pasmem! – editores universitários.
Como se a universidade pública devesse ser autossustentável, como se os laboratórios devessem ser autossustentáveis, as bibliotecas devessem ser autossustentáveis, as moradias estudantis devessem ser autossustentáveis, os hospitais universitários devessem ser autossustentáveis, as orquestras universitárias e os grupos de teatro universitários devessem ser autossustentáveis, ou, por fim, os cursos de graduação e de pós-graduação devessem ser autossustentáveis.
Repeti a palavra à exaustão para demonstrar o descabido de uma ideia que pode parecer, de tão repetida, razoável. De fato, quando se discute o orçamento, numa universidade pública e gratuita, de que órgão se pede que seja autossustentável? Da editora! E por quê? Talvez porque se suponha, por analogia com as comerciais, que uma editora universitária é uma espécie de empresa incrustada na Universidade, uma produtora de mercadorias destinadas à venda, e não um órgão importante da universidade, com uma função social e cultural da maior relevância.
Não creio que a vulgar exigência de autossustentabilidade da editora universitária seja um passo para exigir autossustentabilidade de toda a estrutura universitária, a começar pelos hospitais e pelos cursos de pós-graduação. Creio antes que essa cobrança provenha exclusivamente da ignorância de qual seja o papel das editoras universitárias, do desconhecimento das três funções para as quais elas são insubstituíveis. Ao menos no Brasil. Então vejamos quais são.
A primeira delas é a publicação de textos que podem não ser rentáveis, mas são essenciais ao desenvolvimento das áreas de atuação da universidade.
É que a publicação de um livro que se destine a um conjunto restrito de estudantes ou pesquisadores torna inviável um investimento privado. De fato, que editora de mercado se interessaria por publicar, a bom preço, um título cuja venda estimada seja 100 ou 200 exemplares por ano? Ainda mais se for um livro traduzido? Esse cálculo não deve ser determinante, porém, para uma boa editora universitária. Para ela, não é o lucro financeiro que conta, mas a relação entre investimento e retorno intelectual. E ela deve publicar o que for preciso para alavancar a ciência e a cultura nacional.
Por exemplo, em certo momento os professores de alemão da Unicamp procuraram a sua Editora para que ela traduzisse e publicasse em português um conjunto de livros didáticos que consideravam o melhor.[2] Com base no exposto, a Editora comprou os direitos e publicou. Isso permitiu, de imediato, que o curso dessa língua fosse reduzido em um semestre letivo, graças ao melhor aproveitamento das aulas. E permitiu que outras universidades ou escolas privadas pudessem aproveitar a oferta do material para melhorar a sua prática. O mesmo sucedeu com duas coleções bilíngues de venda para público restrito, mas de enorme repercussão científica: a coleção de textos filosóficos coordenada por Fausto Castilho, e a coleção de textos clássicos, coordenada pelos professores da área de grego e latim da Unicamp.[3]
Em todos esses casos, um empreendimento de pouco retorno direto se tornou exequível por conta do trabalho, sem ônus para a Editora, de membros do corpo docente (na tradução e redação de textos de apoio), já que suas atividades foram enquadradas no cumprimento aos requisitos do tempo integral. O que é outra vantagem de uma editora universitária pública, que não visa lucro e sim atender às demandas da comunidade acadêmica, que se mobiliza, por sua vez, para tornar exequíveis os projetos editoriais que propõe.
E aqui chegamos a uma questão que devo frisar, pois se aplica a toda a produção consequente de uma editora universitária, em graus variáveis: o retorno do investimento não deve ser computado de um ponto de vista estreitamente financeiro. Numa editora verdadeiramente universitária, não é a venda de livros que garante o sucesso e a justeza do investimento dos recursos públicos ou próprios. Os casos citados são exemplares, porque é fácil ver o verdadeiro e diferenciado retorno: o aumento de qualidade dos cursos, apoiados no material didático novo, no caso das obras clássicas e de filosofia, e a economia de horas de trabalho em sala de aula (um semestre!), no caso do curso de alemão. Mas, torno a dizer, esse é o retorno (em medida vária) de todo livro responsavelmente publicado por uma editora universitária.
Nesse contexto, insistir na ideia de autossustentabilidade parece piada sem graça, no que diz respeito aos objetivos e funções da universidade pública.
Uma segunda função é a de “filtro”.
Uma editora acadêmica de valor tem um conselho editorial de peso, com representantes respeitados em todas as áreas. Assim, o que publica vem com uma chancela: a universidade tal, de tal lugar, garante que este livro tem relevância! Por isso mesmo, atribuo a uma visão curta do processo editorial e do papel da editora universitária a decisão de algumas editoras acadêmicas de não publicar teses de doutoramento, usando como argumento que estão todas no banco de dados da CAPES, disponíveis para download.
Em primeiro lugar, porque a pós-graduação, infelizmente, por conta das exigências de cumprimento de prazos, tem aprovado no Brasil teses em profusão, de qualidade muito díspar. À editora universitária de prestígio (como também a respeitadas editoras de mercado) cabe a tarefa de filtrar esse material e de editá-lo. Quero dizer: fazer com que o autor retire da tese aquelas partes formais, aquele aparato de notas que para um leitor comum o mais das vezes é excessivo, bem como os argumentos defensivos, que tentam antever as objeções da banca; fazer com que ele reforme o conteúdo, adequando-o à forma “livro”.
Quantos não são, nas Humanidades, os livros fundamentais que foram defendidos como teses? E quantos ainda não serão? Recusar, por comodismo ou renúncia ao trabalho editorial, a publicação de teses, parece-me um erro brutal e uma abdicação de um dos papeis relevantes da editora acadêmica.
Além do que, uma boa edição produz outro objeto, como se pode ver (um exemplo entre tantos!) nos volumes sobre erótica japonesa, que eram uma tese de livre-docência, quase ilegível no repositório da CAPES, e se transformaram numa obra magnífica, de enorme valor científico e estético, ao serem publicados pela Edusp.[4]
Uma terceira função que cabe à editora universitária, do meu ponto de vista, é a disposição e capacidade de abastecer os cursos da sua universidade (e também de outras, claro) com a bibliografia estrangeira necessária, em traduções cuidadas, revistas e garantidas pelo seu controle de qualidade. Principalmente daqueles livros que não serão sucesso garantido de vendas, mas que são importantes para cursos de graduação e de pós-graduação, bem como para a formação da cultura literária ou científica. Esse é um trabalho difícil, demorado, custoso. Mas se não for feito por uma editora universitária, por quem seria feito aqui no Brasil?
Claro que vai sem dizer que uma editora assim constituída deve dar atenção à produção local, dos seus docentes. Mas sempre tendo em mente que a sua função de chancela é a principal, pois ela carrega no nome a marca da universidade. Assim, a seleção rigorosa das produções locais é uma forma de acrescentamento da qualidade do trabalho na instituição, uma forma de estimular a emulação e de orientar, com base nos pareceres ad hoc e nas decisões do conselho, os docentes e pesquisadores no sentido de atingirem patamares elevados de exigência e realização. Na contramão, a publicação de trabalhos locais que não seriam aceitos em outras editoras de primeira linha é o caminho mais rápido para a perda de uma das funções principais da editora universitária, que é aquilo que descrevi como uma espécie de declaração de qualidade com fé pública.
Por fim, há uma outra função social das editoras universitárias, ligada não mais à produção, mas à distribuição do livro acadêmico.
A questão do mercado e da distribuição dos livros acadêmicos, que é um problema em muitas partes do mundo, se agrava num país como o Brasil. Exemplos: um livro publicado numa universidade de Porto Alegre tem de percorrer cerca de 4000 km para chegar ao campus da Universidade Federal do Pará, 4200 para chegar à Universidade Federal do Ceará e 4400 para atingir o campus da Federal do Amazonas. Como despachar em tão longas distâncias livros que muitas vezes não são objeto de nota fiscal? E quem paga o custo do envio ou do retorno?
Para fazer frente a esse problema, foi criado nos anos de 1980 o Programa Interuniversitário de Distribuição de Livro, da ABEU – pelo qual as editoras participantes tinham, por meio de um acordo com regras claras, a possibilidade de trocarem livros entre si, para venda em suas livrarias.
O que implicava outra questão: para poderem participar do PIDL e para o PIDL ter alguma abrangência, as editoras precisavam ter pontos de venda, livrarias, pelas quais se escoasse a produção.
A dificuldade de criação e manutenção de livrarias é grande: primeiro porque a administração universitária, da mesma forma que cisma com a autossustentabilidade da editora, insiste na da livraria; segundo, por conta da concorrência das livrarias privadas estabelecidas no interior dos campi, que normalmente oferecem à universidade alguma contrapartida imediatista.
O PIDL, mesmo assim, foi, durante muito tempo e creio que ainda é, a tábua de salvação do livro universitário, tanto para as pequenas editoras, que podem sustentar um ponto de venda com os livros das grandes (o desconto é de 50%, igual ao que exigem os distribuidores), e assim expor e vender os seus próprios, quanto para as médias e grandes, que assim podem enviar e expor seus produtos em lugares aos quais eles não chegariam por intermédio dos distribuidores comerciais – ou por essas editoras não terem documento fiscal, ou porque o custo do transporte de um livro de baixa vendagem não torna a operação atrativa para o comerciante.
Da mesma forma, ao longo do tempo as editoras universitárias, a exemplo da Edusp, foram organizando feiras e eventos, nos quais livros de editoras universitárias são vendidos diretamente à comunidade acadêmica, com significativos descontos.
Com isso, sem dúvida, presta-se um serviço à causa do livro universitário. Mas um serviço menor. Os pontos realmente importantes e que justificam a existência de uma editora dentro de uma universidade ou a ela subordinadas são aqueles relacionados no corpo desta comunicação, pois é possível imaginar muitas formas criativas de comercializar e distribuir livros – ainda mais na era do predomínio da cultura digital – mas ainda não é possível imaginar, além das editoras universitárias, outras instâncias ou organismos capazes de responder tão bem e com tanta agilidade (e fora do interesse econômico imediato) às necessidades universitárias no que diz respeito à seleção, produção e difusão de obras relevantes para o avanço do ensino e da pesquisa no Brasil.
[1] Texto lido em mesa-redonda no IV Encontro de Editores da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (ENEDIF), em 29/10/2020.
[2] Blaue Blume - Curso Completo
[3] Coleção Multilíngue de Filosofia Unicamp; Coleção LVMINA.
[4] A Erótica Japonesa na Pintura e na Escritura dos Séculos XVII a XIX, de Madalena Natsuko Hashimoto Cordaro.