no ar seco do meio da tarde
quinta-feira, 25 de maio de 2023
poema 2
poema 1
Do mesmo velho caderno, esta imitação (eu creio) de Cesário Verde. Mas também com rastros de António Nobre (ao que parece).
Sobre ensino - maio 2023
Devendo preparar uma conversa sobre ensino, fiquei refletindo como quem pensa em voz alta, só que por escrito.
Notas sobre ensino – 1
Numa aula de xadrez, pressupõe-se que o professor tenha grande conhecimento da arte. Numa dada posição, seu olhar pode divisar mais rápida e profundamente os pontos fortes e as fraquezas de cada lado e com base nisso escolher a estratégia ou a tática mais eficaz. Sei bem como é. No meu tempo, em Matão, os dois jogadores mais experientes podiam me demonstrar sua capacidade de jogo facilmente, porque numa configuração qualquer, de algum equilíbrio podiam me vencer assumindo qualquer dos lados do tabuleiro. A mim competia tentar igualá-los. Para isso ia aos livros. Além dos clássicos de abertura, em que disputavam minha atenção os livros do Panov e os do Ludek Pachman, meu preferido era “Estratégia moderna do xadrez”, desse último autor. O teste do rendimento da aprendizagem era invariavelmente o mesmo: comparar a minha capacidade de análise com a dos meus mestres e, quando fosse o caso, enfrentá-los no tabuleiro. Talvez tenha vindo daí a ideia persistente de que a um excelente professor, como eram os dois Biavas, não basta o conhecimento abstrato e a exposição dele. O momento de espanto, que provocava o estudo e estimulava a vontade de aprender, era sempre o da demonstração, em que se materializavam o conhecimento teórico e as lições da experiência. Penso que é assim que sucede nas artes tradicionais japonesas. Um professor tem de saber fazer o que ensina. De seu desempenho provém sua autoridade real. Da sua capacidade de mostrar pelo exemplo o que deve ser feito. Talvez por conta disso eu só tenha ousado conduzir oficinas de haicai quando percebi que meu conhecimento teórico e minha experiência prática permitiam que, na maior parte dos casos, eu pudesse sugerir (ouvindo o relato da pessoa que compôs o haicai apresentado a mim) uma forma mais eficaz ou mais justa de dar conta da intenção.
Notas sobre ensino – 2
Talvez por conta do que contei no post anterior, sempre me debati (e ainda me debato) com uma questão prévia a toda a reflexão, mas bem difícil: o que ensina quem ensina literatura? E também, como uma derivação desta: como ensina, quem ensina literatura? É talvez mais fácil responder a outra questão, menos frequentemente formulada: o que aprendeu (ou teve de aprender ou deveria ter aprendido) quem ensina literatura? Digo que é talvez mais fácil porque a resposta pode ser mais imediata: quem ensina literatura deve, em primeiro lugar, ter construído um bom repertório de leituras. Mas de que leituras? Do meu ponto de vista, não só de leituras literárias, embora essas sejam o elemento mais importante, os alicerces do edifício. Dependendo do objeto, o repertório precisa ser ampliado. Filosofia, história, antropologia, psicologia, filologia, que mais? Também é preciso um repertório musical, sem dúvida. E por que não de pintura, escultura, arquitetura? E o cinema? E o que mais pudermos incluir no conceito vago de “cultura”. Mas a pergunta incômoda é mesmo a primeira: o que ensina quem ensina literatura. Não é filosofia, por certo; nem sociologia ou antropologia. Nem história, esse guarda-chuva tentador, que tantas vezes oferece abrigo ao se juntar ao restritivo “literária”. Professores de literatura que se põem a ensinar psicanálise tendem a fazer um mau trabalho, no que diz respeito à psicanálise. Idem os que se metem com a filosofia ou sua história. E assim por diante. Aliás, ouvi já de algum malvado que os departamentos de literatura são lugares a partir dos quais pessoas podem ensinar o que não sabem ou conhecem pela rama, uma área onde alguém pode explicar o que mal conhece pelo que ignora ainda mais. Opinião que não posso dizer que endosse, embora dela não discorde inteiramente.
Notas sobre ensino – 3
Mas então o que ensina quem se propõe a ensinar literatura? Quando eu mesmo me pergunto isso, a resposta é sempre a mesma: um professor de literatura é sobretudo um professor de leitura. Creio de fato nisto: ensinar literatura é ensinar a ler textos literários; ou, se se preferir, é ensinar a ler literariamente. Nesta última formulação se podem abrigar todos os chamados “dados contextuais”. Porque ler “literariamente” é, em primeiro lugar, do meu ponto de vista, estar atento ao texto, mergulhar nele e na sua rede de sentidos; o que implica, em medida vária, retraçar as referências, as citações, os intertextos, as alusões e aquilo que poderia denominar “biografia pública” do autor. Vê-lo em diálogo com outros tempos do seu texto, para assim aquilatar o que nele há de novo ou de mais bem sistematizado, em relação à média. Ler textos literários é, quanto a mim, uma tarefa que implica uma boa dose de submissão ao objeto, um esforço para fazê-lo falar desde o seu tempo e lugar. Mas fazê-lo falar para nós. É certo que se pode usar os textos literários de outra forma: como exemplos de teoria ou campo de teste de hipóteses metodológicas; ou ainda, normalmente por meio de partes selecionadas, como elementos de prova de teorias ou ideias gerais sobre várias coisas. E também se pode fazer com que falem algo que não falaram ou que falem algo que hoje parece X e no tempo deles parecia Y. Tudo isso, nessa diversidade, faz sentido. E não duvido que em quase todos esses casos a prova da competência possa ser feita. Que um aluno possa trazer um texto ao professor e que este possa fazer como fazia o meu professor de xadrez. Mas também não duvido de que uma aproximação ao texto a partir de um amplo repertório cultural, uma leitura que não violente o texto para fazê-lo dizer apenas uma coisa ou impedi-lo de dizer outras, é capaz de dar conta de um leque muito mais amplo de textos e de gerar respostas mais duradouras nos estudantes, permitindo-lhes mais ampla formação. Quando eu cursava a faculdade de Letras, caiu sobre nós o Estruturalismo. Foi uma febre. Um sarampo, como depois se disse. A Linguística era tida como a chave das ciências humanas. As aproximações linguísticas ao texto literário proliferaram. A vertente mais ativa foi a que teve na palavra “estrutura” o seu esteio. Uma leitura como a que Jakobson fez de um poema de “Mensagem” foi imitada até a exaustão. A competência dos professores que aderiram era inegável: um texto ia para a lousa ou para a transparência e era impiedosamente desmembrado, em busca de todo tipo de estrutura: acoplamentos, paralelismos, quiasmos, classes de palavras, paronomásias, anagramas, oclusivas, dentais, sibilantes etc. Drummond compôs, sobre essa prática de vivissecção, um poema engraçado, “Exorcismo”, com um refrão que pedia a Deus para nos liberar de uma aluvião de termos técnicos – e das formas de leitura que deles se valiam ou neles se escoravam. Passou em certo momento o sarampo, mas deixou cicatrizes. Houve gerações que, no ensino médio ou no superior, foram expostas. Ler literariamente, naquele tempo, para muita gente, era esquartejar um texto e exibir a sua anatomia: os ossos, os músculos, os tendões. Fora disso, era tudo gordura. E melhores eram os textos quanto menos gordura tivessem. Quando a “teoria” saiu de moda e a forma de leitura idem, a competência de leitura específica de professores treinados no modelo, e só nele, se esvaiu. Os que ficaram aferrados àqueles mecanismos interpretativos passaram rapidamente do laboratório de vanguarda ao depósito do museu.
Notas sobre ensino - 4
No último post terminei por desviar talvez o assunto e evocar os tempos em que estudar literatura pareceu, no Brasil, tratar de responder, de certo ângulo de visão, à pergunta: como funciona o texto literário? Como funciona a máquina do poema? No caso do romance, a perspectiva teve menos sucesso ou menos aplicação. Talvez porque o método seleciona o objeto? O pressuposto define o lugar do exercício do método? Seja como for, voltando ao ponto: para mim, ensinar literatura é ensinar a ler textos literários. Por isso mesmo, retomando, creio que tanto melhor é o resultado do trabalho da leitura quanto mais se permita que o texto force os limites do método ou dos pressupostos do leitor. Os melhores professores que tive foram os que não obrigavam o texto a dizer isto ou aquilo, nem tratavam de buscar a pedra filosofal da literariedade, muito menos os que moíam e peneiravam um texto em busca dos pedregulhos com que escorar ideias sobre a sociedade. Mas agora, nestas divagações preparatorianas, surgem de novo perguntas incômodas. Por que estudar literatura na escola? Por que estudar só literatura e não as demais artes, isto é: por que parece natural a muita gente que somente a literatura seja a única arte exigida como parte do currículo? Será por inércia curricular que as universidades pedem, no vestibular, apenas o conhecimento da história literária ou de obras literárias, e não de pintura, escultura ou música? Quando a questão da nacionalidade era central, a pergunta de por que estudar literatura, ou por que a literatura tinha proeminência sobre outras artes nem fazia muito sentido. Isso ainda era muito forte nos tempos de Antonio Candido, como se vê pela famosa proposição de que é a nossa pobre e fraca literatura que “nos” exprime. Daí o dever de amor que ele ali preconizava. Mas e hoje? Qual o futuro da literatura como disciplina escolar e como parte essencial da educação dos cidadãos? Por quanto tempo ainda haverá a obrigação de estudar literatura e, portanto, a necessidade de ensiná-la na escola regular? Como estas divagações nasceram de um convite para falar mais uma vez sobre ensino de literatura, creio que é daqui, deste lugar mais incômodo, que deva prosseguir. Mas termino estas anotações por confessar que ainda não sei bem como.
quinta-feira, 18 de maio de 2023
Um manuscrito
Isto estava em um caderno muito antigo. Manuscrito, em péssima letra, de leitura tão árdua que não garanto a fidelidade nem a autoria.
Trazia ainda uma palavra feia, que tratei logo de ocultar para menor ofensa ao leitor.
O verso 12 foi o mais obscuro, de decifração mais difícil, dada a condição do material.
A lição deste texto é a do Alcir, a quem pedi socorro.
A minha dizia: Que coragem te dê no que restou.
Ó bárbara criatura, ó desprovida:
“Se em cada verso meu onde c*g*ste
Uma rosa se erguesse numa haste
Seria esta clepsidra bem florida!”
- De nada valem reis ou marafonas
Em teu socorro virem com asnices:
Não há como ocultar tuas sandices,
Não há como esconder um Amazonas.
E se vires que possas afogar
Alguma inveja no bestunto teu,
Roga ao Deus que teu cérebro encurtou
Que fé te dê no pouco que sobrou
Pra confessar que no trabalho meu
Cuspindo disfarçaste o chupitar.
segunda-feira, 15 de maio de 2023
Monstros masculinos
Estive lendo um artigo no The Guardian. Era assinado por Claire Dederer. Minha ignorância englobava também esse nome. Então fui à procura. Aprendi que é uma autora norte-americana conhecida. O artigo que li era um extrato do livro “Monsters: A Fan’s Dilemma”. Achei-o na Amazon, felizmente em versão Kindle. Sua capa é divertida. Veremos o livro, que comprei, mas ainda não li. Estou ainda com o texto do jornal.
O artigo merece atenção. A autora desde logo assume o lugar de onde pensa: o de uma mulher, vítima da opressão e agressão masculinas. Mas seria ingênuo pensar que as questões que apresenta se limitem ao universo das leitoras, embora ela explicitamente atribua a propalada separação entre a biografia e a obra, no sentido de que a qualidade estética pode ser avaliada por si só, aos homens. Eis como escreve: “Quando comecei a explorar esse problema, descobri que críticos masculinos desejavam que a obra permanecesse intocada pela vida.” Na sequência, identificando “male critics” com “a voz da autoridade” desenvolve um parágrafo que parece um petardo endereçado aos axiomas do New Criticism, mas não só.O ponto que mais me interessou talvez tenha sido o jeito como ela descreve o crime de um homem monstruoso: uma mancha, que vai se espalhando pelo entorno, pela obra.
Na apresentação do livro na Amazon, lemos: “O que fazer da arte de homens monstruosos? Podemos amar a obra de Roman Polanski e Michael Jackson, Hemingway e Picasso? Deveríamos amá-la?” No artigo, além desses nomes aparece o de Bowie, que desvirginou uma menina de 15 anos.
O crime de Bowie inclusive lhe parece mais grave na medida em que a menina não sentia que era uma mancha a perda da sua virgindade para um artista que adolescentes (inclusive Claire Dederer, no seu tempo) adoravam.
Mas voltando ao ponto da mancha. Pensei que a melhor expressão para nomear o que ela descreve talvez fosse “ferrugem”. Porque a ferrugem tem essa propriedade de se espalhar, corroer, como uma espécie de podridão líquida que se derrama em todas as direções.
E fiquei pensando em quais autores eu tinha sentido, por conta da sua biografia, essa ferrugem a corroer a obra. Desses que ela mencionou, fixei-me no caso de Hemingway, um autor que realmente amo – para usar o termo que ela usa. Sucede que li certa vez uma biografia que lançava várias manchas sobre o caráter e mesmo sobre a motivação e origem da obra de Hemingway. Uma péssima biografia, eu creio, escrita por alguém que antipatizava com o autor de modo muito intenso, Anthony Burgess.
Como já se vê, não houve mancha que ali se lançasse sobre o homem Hemingway que se transportasse, no meu julgamento ou afeição, para a obra do autor de “Adeus às armas”. E depois ainda li outras. E sei da antipatia que o escritor desperta em certos meios, dos ecológicos aos feministas, passando por largo espectro. Mas a verdade – talvez por ser eu mesmo um “crítico masculino”, como diz Dederer – é que ainda leio com grande prazer, pela terceira ou décima vez, um conto do autor de “O sol também se levanta”. Ao mesmo motivo alguém poderia atribuir o fato de que nenhuma revelação sobre Salinger, verdadeira ou não, tenha afetado minimamente a minha fascinação pelas suas “Nove histórias”.
Resta agora ler o livro da autora, para ver se a minha insistência em acreditar que “a thing of beauty is a joy for ever” não é, no final das contas, alguma desprezível cumplicidade com monstruosas criaturas.
Serviço: https://www.theguardian.com/books/2023/may/06/can-i-still-listen-to-david-bowie-a-superfans-dilemma?CMP=fb_gu&utm_medium=Social&utm_source=Facebook&fbclid=IwAR0KST6J8zXD5S5ustvpSzAXS-Jencnx3pBRugeK-tSv0KeHhpAxEeoxRI0&mibextid=Zxz2cZ#Echobox=1683368487
quinta-feira, 6 de abril de 2023
Leo Vaz
Alexandre Eulálio conheceu Leo Vaz. Gostava dos seus livros e gostou de saber que eu também. Na verdade, houve uma época em que pensei seriamente em lhe dedicar um trabalho mais longo. Queria escrever – e o faria ainda se tivesse força para isso – um estudo sobre um tipo de literatura que ficou soterrada pela aluvião da herança modernista. Pensava em centrar o trabalho sobre dois livros, “Vida ociosa”, de Godofredo Rangel, e “O professor Jeremias”, de Leo Vaz. Ambos publicados em 1920. Alexandre, como é fácil imaginar, adorou a ideia. Como incentivo, um dia me apareceu com o exemplar cuja foto vai anexada. Eu tinha defendido o mestrado no ano anterior ao da dedicatória. Queria que ele me orientasse, mas ele se recusou. Não tinha formação, dizia. Não era um acadêmico. Era um diletante.
sexta-feira, 10 de março de 2023
Perfis 7 - Antonio Arnoni Prado
Certa vez, numa conversa sobre o Modernismo, de repente perguntei ao Arnoni se ele era da família Prado. Ele parou de falar e dispôs a mão na frente do queixo, num gesto todo seu: só o indicador, meio dobrado, ocultava um pouco do sorriso estranho, no qual os cantos da boca não se erguiam, mas abaixavam num esgar controlado. “Que é isso, companheiro? Sou um prado do Tremembé!”
Arnoni era homem de poucos gestos, mas expressivos. Gostava de ficar de meio perfil para o interlocutor, olhando de esgueio. Não falava alto nem baixo e tinha uma bela voz. Na verdade, sempre me pareceu que poderia ser ator. Um galã, com rosto quadrado e olhar um tanto enigmático, como se ponderasse com certa hesitação tensa as palavras e os movimentos dos músculos do rosto.
Tinha na fala o hábito das reticências, que intercalava com uma combinação esparsa de exclamação com interrogação, todas sempre apoiadas num risco de ironia.
Se dissesse que o temperamento era melancólico não creio que incorresse em erro. Mas talvez valesse mais a pena sublinhar uma certa camada de tinta machadiana, aquela pátina de descrença que a gente vai percebendo ao longo da evolução do escritor, entretanto sem dose de cinismo ou de exibicionismo irônico.
Quando certa vez me socorri do valhacouto dos desamparados, que era a casinha campineira do Haquira Osakabe, Arnoni lá foi parar também. Havia mais dois quartos na parte interna, que ele recusou. Preferia ficar num cômodo alijado, no fundo do quintal. Dava mais certo com ele, afirmou.
Foi um conviva quase invisível. Vez por outra passava ao lado da janela aberta da salinha de jantar. Eu estava ali, normalmente estudando. Ele cumprimentava, às vezes parava um minuto. Certa vez, parou mais. Falou um pouco de tudo e depois sacou da bolsa um exemplar do Baudelaire, da Pléiade. Estou muito bem acompanhado, me disse, segurando o livro como um amuleto. E se foi.
Não tive tempo de dizer nada, mas se tivesse talvez teria dito que pelo aspecto de ambos não pareciam boa companhia mútua.
Não tive segunda chance: em poucos dias um de nós deixou o refúgio e depois só nos falamos institucionalmente.
Aliás, creio que essa era a forma preferencial de relação do meu fugaz companheiro da casinha da rua Amélia Bueno.
Apenas uma vez o vi fora da contenção habitual. Foi durante o período mais tenso da vida do departamento. Fundado por Antonio Candido e organizado a partir de um núcleo composto por seus orientandos, vivia o DTL um processo de redefinição. Arnoni, naquela época, se recuperava de alguma lesão nas pernas e caminhava com auxílio psicológico de uma bengala.
Aquilo na verdade lhe caía bem. Ele não fumava cachimbo, que eu soubesse, mas tinha um pouco a boca torta, como se diz dos habituados à arte. Com a bengala, a possível reminiscência do cachimbo ressaltava os traços do rosto e a contenção habitual dos gestos. Parecia um aristocrata.
Mas numa das reuniões nas quais se debatia a herança, o encanto se desfez. Enfrentando um oponente mais ardido, enquanto dirigia palavras num tom de voz grave, alguns decibéis acima do usual, Arnoni foi se aproximando lentamente. Enquanto gesticulava, parecia ter se esquecido do apoio psicológico, que agora se movimentava quase por vontade própria. Em certo momento, como fecho da frase, ergueu a mão direita. E com ela a bengala, que ficou vibrando no ar por alguns segundos densos, pesados como a madeira de que era feito o objeto gesticulante.
O oponente não me lembro se se intimidou, mas Arnoni pareceu surpreso. Não de todo insatisfeito com o gesto, eu creio. Mas num minuto se conteve, voltou a usar a bengala na sua função precípua, apoiou-a no chão, virou sobre os calcanhares e caminhou solenemente de volta ao fundo da sala, onde se sentou.
Eu me lembro de que o olhava entre perplexo e divertido. Estávamos praticamente lado a lado, mas não julguei que a bengala, embora eu estivesse no mesmo campo do interlocutor de há pouco, fosse de novo adquirir vida. Percebendo meu olhar, ele fez o mesmo gesto característico que descrevi no começo da crônica. Ainda parecia um tanto irritado e combativo. Afinal, era um aspecto do legado do Mestre que estava sendo questionado. Mas já se via que o ar fleumático ia ganhando terreno até subir à superfície, na forma de um meio sorriso, entre resignado e cúmplice.
Não o vi muitas vezes depois disso. Minhas atividades na Editora me pouparam de muitas reuniões burocráticas e anódinas. E soube que, naquele bom tempo em que não havia lista de presença nem problemas com ausência, ele também não dava muito as caras por lá.
Quando tive notícia da sua morte, não pude, por conta da minha própria saúde, ir prestar-lhe homenagem. O que faria com gosto e por justiça. Como faço aqui.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023
Versificação: acento e metro
Um amigo me diz que há interesse entre poetas jovens pelas questões de métrica. Eu julgava que não, e fiquei animado com a notícia. Resolvi, então, fazer aqui uma pequena provocação.
E é a seguinte: quando dizemos que a nossa versificação é silábico-acentual, queremos dizer exatamente o quê? Que a base é silábica e que a distribuição das tônicas de verso (ou pausas, como diria Castilho) ocorre segundo esquemas tradicionais. Exemplo: uma linha que tem dez sílabas poéticas, tem tônicas de verso preferenciais na quarta ou na sexta. No primeiro caso, o do verso sáfico, ocorre também na maioria dos casos um acento na oitava sílaba. E no segundo caso, o do verso heroico, há uma variante com acento na terceira e outra com acento na segunda.Essa seria uma definição correta, porque tradicional. E porque tem guiado, no nível básico, a prática por décadas ou séculos.
Entretanto, como reconhece o próprio Castilho, há poetas em cuja obra predomina o verso correto, porém ruim...
Sempre pensei nisso, e terminei por suspeitar de que talvez haja outra componente importante da nossa versificação, que possa explicar em parte esse paradoxo do verso correto, porém mau. O que, em certo sentido, é uma conversa sobre como o metro e o ritmo combinam ou não combinam, conversam ou não conversam.
Do meu ponto de vista, essa componente é o caráter acentual da nossa língua, enfatizado pela nossa versificação. (Quase diria: a oralização literária, o modo como oralizamos tanto a poesia quanto a prosa literária, acentua o lado acentual da língua, mas essa é outra discussão.)
Em suma, na denominação “silábico-acentual”, creio que devem ter o mesmo peso os dois termos. Com isso quero valorizar outro aspecto do “acentual”: uma versificação ou oralização baseada na tendência de que entre uma tônica e outra haja aproximadamente o mesmo intervalo de tempo. Ou seja, que haja isocronismo entre as tônicas. Na versificação acentual, para isso acontecer, quando há menos sílabas entre uma e outra tônica, inserem-se pausas; e quando há mais sílabas, a velocidade da elocução é maior.
Que há versos em português assim construídos, em prejuízo da base silábica, parece certo. Um exemplo é a cantiga que diz: palma palma palma / pé pé pé / roda roda roda / caranguejo peixe é. A base silábica é redondilha menor: cinco sílabas. No segundo verso, em vez de uma átona depois de cada “pé” temos, para completar o pé, uma pausa. Já no último verso é preciso alguma ginástica para enquadrá-lo no tempo da cantiga. Talvez a pausa entre versos seja usada para abrigar as duas primeiras sílabas (caran-), porque tudo soa muito natural quando cantado.
Se assumirmos que a isocronia é algo importante na nossa versificação, muita coisa muda na nossa maneira de entender o ritmo dos versos tradicionais, como o decassílabo e as medidas velhas...
E aqui, eu creio, pode começar uma outra discussão, sugerida por outro amigo: a caracterização do poema em prosa em português. Minha intuição, sem ter pensado muito no assunto, é que um texto de poema em prosa, não tendo metro, no sentido estrito, pode seguir esse princípio: o de favorecer ou incentivar a leitura, silenciosa ou em voz alta, que destaque a isocronia.
Castilho andou buscando algo assim, quando escandiu trechos imensos de boa prosa, em busca dos metros clássicos. Não conseguiu nenhum resultado. Talvez mesmo porque ali não era o metro silábico que contava, mas o princípio da versificação acentual.
sábado, 11 de fevereiro de 2023
De uma conversa com Thomaz Albornoz Neves
Na obra de Manuel Bandeira, a questão do metro em poesia tem um desenvolvimento interessante: no seu primeiro livro, a metrificação parece algo pacificado, no sentido de que ocorre natural e harmonicamente. Depois, há um momento no qual, parodiando um título, podemos falar em “metro dissoluto”. Então, mais do que dissolver o metro, Bandeira passou a buscar o “verso puro”- no sentido de Ureña. A propósito, é bem conhecida a passagem do “Itinerário de Pasárgada”, na qual ele expressa o ideal dessa fase ou busca: “Ora, no verso livre autêntico o metro deve estar de tal modo esquecido que o alexandrino mais ortodoxo funcione dentro dele sem virtude de verso medido.” Por fim, à medida que progredimos na leitura da sua obra completa, observamos o retorno do metro, da linha medida, sem drama – por assim dizer, outra vez pacificada –, que vai ombreando com os versos livres, até predominar.
Sei que essas questões interessam hoje a pouca gente. No geral, perdemos a noção do metro. Os otimistas podem dizer que, em troca, ganhamos na capacidade de perceber o ritmo. Os pessimistas, que o ritmo da elocução, perdida a memória do metro, pode predominar na leitura, mas não na escrita, onde a linha cortada sem metro nem ritmo é quase apenas um pequeno enigma, uma forma de criar hesitação.Voltei a me lembrar disso tudo porque um dos poetas cuja obra me interessa muito, depois de a construir sem metro, mas fazendo daquilo que Mallarmé denominou a “respiração perceptível no antigo sopro lírico” ou “direção pessoal entusiasta da frase” a base da sua poesia, de repente se lançou a produzir sonetos.
Conversamos ontem sobre isso. Sobre esse assunto abstruso, a metrificação. E sobre o que significa para nós o apagar-se do fantasma do verso medido, ainda tão forte no tempo de Mallarmé, depois do legado de Victor Hugo.
E foi então, no final da conversa, que, como um cumprimento ao poeta, enviei-lhe este soneto improvisado, feito com versos misturados naquilo de que falávamos: heroicos e provençais – e ainda misturado na forma, pois italiano um pouco na divisão lógica, e inglês outro tanto na distribuição das rimas.
Falando com Thomaz sobre o soneto,
Dizia-lhe que o verso bem medido
Não tem ritmo, mas só subentendido
O padrão da cantilena, o esqueleto
Que dá sustentação à carnadura
E que mal se adivinha, quando a dança
Ergue alto a carne, reforçando a aliança
Do corpo e do sentido, em forma pura.
Enfim, dizia, o metro não ouvido
Na leitura expressiva, ainda persiste
Na base, e bate ou vibra ali em despiste,
Fantasma ora aparente, ora escondido.
Se sem metro há poesia, e ainda verso,
Melhor é o ritmo com metro submerso.
domingo, 29 de janeiro de 2023
Primeiro capítulo de um livro não escrito
Matão era uma cidadezinha pacata, integrada ao mundo pela ferrovia Araraquarense. É certo que também passava ao lado a rodovia Washington Luís. Naquele tempo, porém, o trem era mais seguro e na linha férrea não havia desvios, com eventuais atoleiros, nem vacas pastando à margem, perigosamente, naquela boa preguiça mastigante que eu não me cansava de admirar.
Quanto à gente que lá vivia, eu me lembro de uma frase que meu pai dizia rindo: se alguém fosse ao Banco do Brasil e visse as placas com os nomes dos caixas e demais funcionários, ia achar que era a escalação da Azurra.
De fato, os italianos eram maioria e, dentre eles, os que tinham origem no Vêneto. Os sobrenomes terminados em consoante já indicavam o dialeto aos menos familiarizados. Mas os demais também acusavam a origem.
Pequena e pacata, era entretanto uma cidadezinha progressista, como disse Mário de Andrade quando a visitou. Ao menos no que diz respeito à indústria. Quando a deixei, no começo dos anos de 1970, um grande cartaz na entrada avisava ao visitante que no município havia cerca de trinta e cinco mil habitantes e cento e quarenta e tantas indústrias.
Depois, a essas empresas de origem familiar veio juntar-se uma grande fábrica de suco de laranja, fazendo brotar em volta campos perfumados e fábricas menores no mesmo ramo.
As multinacionais trouxeram um contingente grande de migrantes, e até o arrabalde final da cidade, que no meu tempo era a Vila Raposa (acho que era esse o apelido), foi englobado na parte mais central. E também o Bairro Alto, que ficava depois da estação ferroviária, esse marco divisório do miolo e das franjas da cidade, passou a pertencer ao núcleo principal.
Confesso que hoje perdi o contato e não sei como aquilo anda. Mas creio que não anda mal.
Uma outra comunidade de habitantes de algum relevo – se pensarmos nas ramificações desde Matão até São José do Rio Preto – era a de origem árabe. E nessa forquilha me encaixo eu: entre o Vêneto e a Síria (ou o Líbano, porque as fronteiras mudavam mais antes do que hoje).
O lado vêneto, porém, não se radicou ali. Na sequência da crise de 1929, a terra conseguida em pagamento de trabalhos não virou indústria, como no caso de outros vizinhos. Virou mais terra, muito mais terra, no norte do Paraná, para onde o avô levou a prole para derrubar a mataria e plantar café.
Tivessem ficado em Matão, em vez de funcionário público eu poderia ser herdeiro de indústria metalúrgica, porque talento na área não faltava ao avô, nem aos tios, nem ao pai. De modo que mesmo faltando a mim a coisa estaria garantida.
Já no Paraná, as geadas trabalharam contra e só o empenho de vários anos permitiu que a tribo se fosse ajeitando na terra e na comunidade, numa vila que hoje tem tantos parentes quanto o meu apartamento tem livros.
O outro braço da forquilha é o árabe. Ou turco, como se dizia. Monteiro Lobato em algum lugar fala da venda do Elias Turco. Pois era também um Elias Turco o rapaz que se estabeleceu na beirada de uma das fazendas dos ingleses, num sítio pequeno, ao lado da Estrada do Rumo, num armazém de duas portas.
Elias veio cedo do Líbano ou da Síria. Provavelmente desta. Primeiro ele mascateou a cavalo, depois, já com algum capital, de caminhonete; por fim, abriu a venda, que denominou Casa Síria, casou-se com uma calabresa brava, que foi o terror dos clientes, dos filhos e dele mesmo. Ainda conseguiu comprar um pequeno sítio e trazer a velha mãe para a nova terra. E ali, arrastando a perna entre o quarto e a salinha atrás do balcão, onde gostava de se sentar para ouvir a conversa do comércio, terminou os seus dias, depois de dois derrames, dois anos mais jovem do que eu neste momento em que escrevo isto.
Meu pai, depois de descobrir que não estava talhado para o sacerdócio, largou o seminário e foi trabalhar de escrevente na fazenda Tamanduá, do conjunto inglês. Num final de tarde, reparou na turquinha, na venda. E muitos anos depois estavam casados: quando ele conseguiu, como parecia ser a praxe do tempo, estabelecer-se num bom emprego.
A casa onde cresci era típica da cidade: tinha duas janelas dando para a rua, de onde minha mãe atendia as vizinhas e clientes dos botões forrados com que ajudava nas despesas. Um portão de ripas dava acesso a um caramanchão, que era uma parreira de uvas que nunca deram fruto e que servia de garagem para o velho Ford 38. Seguindo adiante abria-se um quintal onde reinava uma jabuticabeira e havia um quartinho que mais parecia uma capela. E era, em certo sentido, pois ali o meu pai, como seus irmãos em seus quintais, instalou uma sagrada reprodução, em ponto menor, da oficina ancestral.
A rua era perpendicular ao rio. Da frente da casa via-se perfeitamente a baixada e a encosta da colina, sobre a qual ficava a estação de trem. Do lado oposto, duas casas acima ficava a Padaria Central, que era um dos centros culturais e políticos da cidade. Assim como a farmácia tinha sido em outros tempos.
Matão era conhecida por duas coisas e depois ficou sendo, em certos meios, por três. A primeira delas é uma valsa famosa, intitulada precisamente “Saudades de Matão”. Sempre me perguntei se esse “matão” do título se referia ao, na época, povoado de São Bom Jesus do Matão, ou se era simplesmente uma referência vaga a um mato grande, sinônimo de natureza agreste. A segunda é a tradição de enfeitar as ruas para a passagem do Corpo de Cristo. Parece ter começado com simples flores espalhadas no chão, mas logo evoluiu como a cidade, adquirindo um aspecto de grande artesanato, até chegar a um estágio quase industrial, com moldes metálicos que garantiam a precisão dos padrões. Por fim, a terceira é mais modesta e limitada, mas não menos notável: Matão foi um celeiro tão grande de enxadristas para os Jogos Regionais e Abertos, quanto de laranjas para as fábricas de suco.
E aqui voltamos à rua de casa, porque a porta do celeiro era justamente a Padaria Central, onde o padeiro, vendido o pão do dia, cantava árias de óperas italianas junto ao balcão deserto e acolhia os jovens interessados na arte do xadrez, discutindo com eles partidas e aberturas, sobre um grande tabuleiro de madeira que nunca deixava de estar pronto, mesmo entre uma fornada e a seguinte.
Foi nessa cidadezinha adorável, ensolarada e calorenta, e nessa rua que desde a madrugada era invadida pelo cheio de pão fresco, e também nos arredores rurais, em que os cafezais foram lentamente sendo substituídos por laranjais, pastos e finalmente canaviais, que cresci. Aí vivi, vi, ouvi ou imaginei a partir de indícios, as histórias que agora vou contar.
quinta-feira, 26 de janeiro de 2023
Poesia e inteligência artificial
Acho interessantes algumas reações ao chat de Inteligência Artificial. As pessoas dizem: é um programa, não tem sentimentos, não tem emoções, não traduz nenhuma mensagem etc. Sim, é um programa. Sim, não tem emoções, nem sentimentos. Mas não estamos mais falando de programas como a Siri ou a Alexxa. Aqui se trata de programas que permitem criar algo novo, a partir de parâmetros. Isso é mais ameaçador, mais instigante ou mais animador, conforme o ponto de vista. Porque nós também funcionamos assim. Quero dizer: somos seres de linguagem, temos os protocolos todos. E somos também regidos por eles. Mudar esses protocolos é para nós difícil. Temos apego emocional a eles. E como custaram esforço tendemos a querer mantê-los. Já a IA tem, nesse sentido especial, mais “liberdade”, por assim dizer. Como provocação, podia referir textos como o Tradição e o talento individual, do Eliot, ou a Conferência sobre lírica e sociedade, do Adorno. Se ao poeta se pede, no lirismo, uma despersonalização ou um mergulho na língua, de modo que ele seja um lugar de atualização da tradição ou uma voz pela qual a linguagem fale, e não ele, então o que poderá acontecer quando programas como o ChatGPT tiverem aprendido o suficiente, tiverem internalizado vários “paideumas” (para usar o termo do Pound), e puderem responder a comandos humanos que lhes peçam um poema? Eu mesmo tive surpresas quando lhe pedi para fazer haikais. Num primeiro momento, veio tudo muito explícito. Então lhe fiz um pedido não muito simples. Que encontrasse uma situação que transmitisse o sentimento ou sensação designada por uma palavra, sem a utilizar. Pedi-lhe que encontrasse, nos termos do Eliot, um “correlato objetivo”. E a máquina fez. Ou seja, os protestos humanistas não atingem o alvo. Também porque quem pode garantir que um poeta, ao fazer um poema, não esteja agindo exatamente como o ChatGPT, ou seja, mobilizando algoritmos e jogos de linguagem e protocolos que definem justeza, expressividade, profundidade etc? Dizer que um poema feito pela IA não vale o mesmo que um feito por um humano é supor que sempre um humano será “autêntico” ou expressará sentimentos reais ou coisa semelhante... Já quanto a produzir conhecimento, veremos. O ChatGPT mal completou 3 meses de vida. E está aprendendo rapidamente. E ainda mais rapidamente ampliando seu repertório.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2023
Machado na hemeroteca
Não saberia como louvar com palavras justas o trabalho de digitalização dos jornais feito pela Biblioteca Nacional. Neste período difícil, enquanto não me posso permitir trabalhos de maior fôlego, percorro com prazer tanto o passado distante, quanto o passado imediato. Andei, por exemplo, pela revista A Estação, onde Machado publicou, entre outras obras, “O Alienista”. Está certo que aí o interesse foi utilitário: devo escrever algo sobre esse conto e por isso achei interessante ver onde e como foi publicado, onde foram os cortes, se eles coincidiram com as partes lógicas, se nos cortes há “ganchos” etc. Pode parecer uma tarefa sem sentido, mas talvez não seja nesse caso e em alguns outros.
Antes, porém, de especular sobre isso, devo dizer que me divertiu ver os trechos de Machado entre brocados, espartilhos e todas as notícias de figurinos franceses. Aquilo era o mundanismo impresso, o sonho de consumo das endinheiradas da época. E mostra que, de fato, o “leitora” com que Machado interpela a pessoa que lê pode ser lido em clave dupla: uma pragmática, pois o lugar de publicação tinha majoritariamente esse sexo como destinatário; outra irônica, no sentido de que a expectativa de leitura do suposto leitor ou do lugar, por um lado, e o objetivo e expectativas do autor, por outro, podiam não coincidir.
Agora voltando ao ponto. Mesmo que não se justificasse no caso de “O Alienista”, não é desprovido de interesse esse tipo de excursão temporal na materialidade das letras, porque devo escrever também, se a tanto me ajudar saúde e arte, algo sobre “Casa Velha”.
Creio ter lido em Lúcia Miguel Pereira que ela considerava que a composição da “Casa Velha” era bem anterior à data da sua publicação. E mais: ela acreditava que o texto tinha sido desenterrado para cumprir obrigações jornalísticas. Já John Gledson discorda e atribui a esse mesmo conto a responsabilidade de fechar um quadro de análise temporal da sociedade brasileira. Isso quereria dizer que teria lugar de relevo na sua obra. De fato, até certo ponto o machadiano inglês faz dela uma espécie de chave para a compreensão da relação da ficção com a história.
Ora, confesso que desde o princípio concordei com ela e não com ele, porque não vi nunca maior atrativo nesse texto. Nem logo que li, nem mesmo depois de ler o livro do Gledson, nem hoje. Parece-me uma pouco interessante retomada dos romances primeiros de Machado, algo portanto deslocado em relação ao que ele fez depois da “virada” das “Memórias Póstumas”.
Talvez por isso me interessasse ver como se recortou, para publicação em “A Estação”, o texto de “Casa Velha”. E o que vi foi que o corte é, por assim dizer, aleatório. Não se faz de acordo com as partes lógicas do enredo, nem segundo “ganchos” narrativos. Também a extensão das partes é muito variável. Isso poderia simplesmente significar que o texto não foi pensado como folhetim, ou melhor, como publicação seriada. Mas creio que não. Creio que essa constatação só reforça a minha concordância com Lúcia Miguel Pereira: o texto parece mesmo ter sido um tampão, por assim dizer. O que havia à mão para cumprir o compromisso.
Em seguida, abandonando o século XIX, de um salto mergulhei no suplemento literário do Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, onde fiquei zanzando pelos meados da década de 1950, com outras confirmações ou descobertas divertidas.
Ah, as maravilhas da tecnologia! E pensar que quando fiz a dissertação sobre a poesia concreta tive de ficar quase 15 dias no Rio de Janeiro, porque a BN estava em crise e os andares funcionavam em dias alternados... Era então muito difícil obter microfilmes. E nem se imaginava que um dia houvesse celulares para fotografar o que interessasse! Quando mais que um dia, de um lugar qualquer, com um simples notebook, sem pedidos a bibliotecários bem ou mal humorados, arquivistas lentos ou rápidos, se pudesse ter acesso quase instantâneo à memória dos séculos...
segunda-feira, 16 de janeiro de 2023
Perfis 6: Ivan Teixeira
Os fundos da sua casa davam para o Horto, mas disse-me a Maria Eugenia que ele nunca foi até lá. Acredito. Era totalmente citadino e cartesiano, de onde lhe vinha o cordial horror ao desalinho e irracionalidade da natura bruta. Entretanto, lembro-me de ele me dizer que apreciava deixar comida aos macaquinhos, do que concluo que, embora não se aventurasse na desordem natural, não se opunha a que ela viesse até ele, enquadrada em horários e locais combinados. Não obstante, mandou construir uma casa em Vinhedo, que visitei, num condomínio em formação, que me parecia mais selvagem do que o domesticado Horto. Talvez por isso tenha lá deixado em exílio alguns livros bons, e voltado para a primeira. Afinal, lá estava acondicionada a mina de ouro – uma vasta biblioteca, onde brilhavam as lombadas de obras raras – e a parte que mais me impressionou: uma edícula que crescia numa espécie de torre ou alpendre fechado, sem mobília alguma. A acústica! – exclamou ele, de dedo erguido, assim que entramos. E calou-se. Depois fez vocalizações, que comprovaram o anúncio. E abriu um sorriso indagador. Ivan tinha um dos olhos levemente mais caído. Nessas horas, ele se fechava um bocado mais do que o outro, o que simulava uma piscadela ansiosa por concordância ou cumplicidade. Junto com o olhar fixo atravessando as lentes, era quase uma intimação. Admirável acústica! – eu repeti baixinho, como que a esquivar-me dela. E creio que era mesmo. Contou-me então Ivan para que a utilizava. Ele não acreditava inteiramente na escrita, ou melhor, na leitura silenciosa que um autor fazia da própria produção. Para ele, um texto só podia ser considerado razoável quando lido em voz alta. Aí, sim, os cacófatos mostravam as fuças, as palavras gêmeas se ferroavam mutuamente, uma frase em forma de centopeia indicava onde devia cair o machado, e a língua bífida, sedutora, das conclusões acomodatícias, era logo desmascarada pela outra língua, a dele, enquanto fazia rolar na boca as frases e parágrafos, em escrutínio. Já se vê que não me disse nada dessa forma. Eu que traduzi assim em homenagem ao Horto ignorado do outro lado do quintal. Talvez porque ali eu visse que ele compusera, fronteiro ao outro, o seu verdadeiro jardim, o seu paraíso terrestre, a sua vinha inesgotável. Nas estantes da ampla sala, altas a perder de vista, e naquela saleta despida, onde executava os textos. Pedi-lhe que me demonstrasse. Foi um pedido que mal teve a chance de afirmar-se nas pernas. Ivan me dispôs num lugar um pouco alijado, junto à porta, apanhou um maço de papéis e começou a rodear, com passos pausados e medidos, o aposento. Era como aquela contagem que as bandas fazem, antes da música. E ela logo veio: a leitura. Quem quer que o tenha visto ler um texto recomporá facilmente a cena: segurava o papel com uma das mãos e com a outra regia o discurso. Nenhuma ideia vinha nua. Cada uma com vestimenta própria: roupa de guerra, traje de baile, mero terno azul e até um jeans bem composto. Mas nunca de pijamas ou de camiseta. Vestia-as a voz, com o tecido da entonação, as botas do volume e o chapéu do timbre. O ensaísta, o buscador de raridades, o pesquisador, toda essa coorte se subordinava ali, na leitura, ao professor – que, no entanto, pela solenidade garbosa, tinha um pouco de padre. Na sala de aula ou num auditório, ao padre se juntava o showman, e muitas vezes o sobrepujava. Da mesma forma como um arqueólogo desenterra um pedaço de osso e dali logo deduz um lagartão inteiro, com barriga, rabo e focinho cheio de dentes, assim eu vi o Ivan deduzir por uma aba anônima do livro o seu autor. Com tal arte perante a classe foi lendo e relendo e deduzindo, como um detetive, mostrando aqui o nariz, ali as bochechas, mais além o lombo, até que o homem – creio que o Rosa – saltasse inteirinho e pronto para fora da orelha, como Minerva das coxas de Júpiter. Era também dublê de editor. Idealizava e levava adiante projetos, tanto na ECA quanto na Ateliê. Aliás, foi por seu intermédio que conheci Plínio Martins. Nos tempos em que eu dirigia a Editora da Unicamp, fizemos muitos projetos e viagens juntos. Na última delas, para a Feira de Guadalajara, Ivan começou a se queixar da comida mexicana. Tudo lhe fazia mal. De volta ao Brasil, foi ao médico. Em poucos meses, a doença o levou. Está fazendo agora, em 2023, dez anos.
quinta-feira, 5 de janeiro de 2023
História literária - narratividade e cânone
Tenho aproveitado estes dias de impedimento de um trabalho mais longo e aturado para pôr em ordem os papéis. Modo de dizer. São arquivos de computador. Por isso mesmo, voláteis, às vezes lacunares, ou longos desenvolvimentos argumentativos no meio de um fichamento, e de vez em quando anotações menos extensas e erráticas, nas quais um pensamento ensaia o voo para logo dar lugar a outro.
Na verdade, a desordem do material me faz ter de recorrer a buscas na internet, quando alguma coisa me parece de interesse: teria publicado isto em algum periódico? Em alguma revista eletrônica? No meu blog? Teria publicado apenas a ideia ou também a forma? Vale a pena um dia retomar e tentar desenvolver?
Todo cuidado é pouco, apesar de eu já estar aposentado: se eu republicasse o já publicado estaria incorrendo no moderno crime acadêmico denominado autoplágio. Crime derivado mais do sistema legal da universidade-empresa, do que dos contratos editoriais, e no qual devo ter incorrido várias vezes. É o que acredito, já que um crime involuntário nem por isso deixa de ser crime, e porque desde a época da faculdade retomo temas, problemas, conceitos. Se os retomo, por que não retomaria as mesmas palavras e frases com que os debati tanto tempo comigo mesmo?
Pensando bem, estou convicto de que devo ter incorrido inúmeras vezes nesse delito, quem sabe até mesmo dentro de um único volume.
É que na verdade não vejo mal em que retomemos o nosso pensamento, inclusive com as formulações de que gostamos mais e nos esforçamos muito para obter, adequando-os ao novo auditório ou situação. Isso, creio, não deveria ser considerado um delito. Fosse, e no limite quem sabe até as aulas pudessem incorrer na prática condenável da autocópia.
É verdade que há situações e situações. A expressão de nosso pensamento numa dada sequência de palavras pode muitas vezes virar mercadoria. Nesse caso, se o produto é vendido, o vendedor (no caso, o editor) pode entender que foi fraudado, se encontrar o mesmo texto no produto posto na praça por outro fornecedor. E mesmo um comprador pode se sentir lesado, se tiver a infelicidade de comprar dois livros em que um mesmo autor ocupa parte do papel impresso em cada um com a mesma sequência de palavras. Mas para isso há a lei, representada por naquele símbolo do copyright. Mesmo assim, a lei permite exceções, e faz sentido que um autor reúna em livro textos já publicados em revistas, jornais e mesmo coletâneas e outros livros (com autorização do primeiro comprador do seu produto, se for o caso, é claro), porque além da coerência que lhes dá o conjunto, o caráter disperso dos primeiros aumenta o risco da perda da memória do conjunto e da construção do pensamento.
Mas estas divagações já se afastam muito do ponto ou do pretexto.
O ponto é que eu encontrei uns parágrafos datados ainda de 2004, que vinham precedidos da anotação de que eram sequência à crítica da historiografia literária herdada do século XIX, isto é, a história narrativa. E também à ideia, que eu dizia estar em outra anotação, sobre o caráter espectral da mesma historiografia oitocentista que ainda orientava, na surdina, os julgamentos críticos dos objetos do presente.
O trecho era este, e espero que ele não decepcione, pelo seu caráter lacunar, a expectativa criada por tão desarrazoada apresentação.
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Com a historicização do cânone e com a forma diferente de organização do campo intelectual, que privilegia a análise especializada em vez das sínteses grandiosas, diminui muito ou mesmo desaparece a confiança na autoridade do autor único que escreve sobre objetos variados, espalhados ao longo de uma vasta cronologia. Hoje, uma história da literatura nacional escrita por uma só pessoa não apenas nos parece pouco provável, como ainda nos pareceria desde logo suspeita de se tratar, em grande parte, de compilação de leituras de fontes secundárias ou de outras narrativas históricas que a precederam.
A forma privilegiada do conhecimento histórico da literatura já não é a síntese, mas a consideração minuciosa de objetos concretos, situados adequadamente no seu tempo e no seu espaço cultural. Ou seja, a forma mais valorizada hoje não é a história literária (tal como a entenderam o século XIX e a primeira metade do XX), mas o ensaio histórico, que o novo historicismo faz às vezes confinar com a filologia na tentativa de estabelecer o quadro de emergência e atuação de uma obra ou questão, ou ainda com a história quantitativa ou com a sociologia.
Disso, e também da valorização geral dos estudos especializados, decorreram as primeiras soluções de compromisso no gênero história literária, que foram as tentativas de elaborar trabalhos coletivos, em que cada estudioso tratava de apresentar – respeitando a cronologia e uma orientação geral vaga – do tipo contextualista ou formalista, por exemplo – os autores ou períodos ou questões de sua especialidade. Entre nós, o modelo é a série A literatura no Brasil, dirigida por Afrânio Coutinho. E sua consideração, ainda que rápida, permite ver suas vantagens e desvantagens. A vantagem é poder contar com estudos especializados, dispostos em ordem cronológica e pautados por uma visada de apresentação narrativa. A desvantagem é que o conjunto não forma uma história, pois faltam-lhe os mecanismos narrativos e a coerência das causalidades que definem o discurso histórico. Isso porque cada um dos autores aborda o seu objeto a partir de uma perspectiva diferente. Por exemplo, o capítulo sobre o Parnasianismo recebe um enfoque técnico e formal que um capítulo como o do Romantismo não recebe. A personagem coletiva “literatura”, assim, se desdobra em várias e a costura precisa ser feita fora do âmbito dos artigos especializados. Daí o caráter algo esquizofrênico desse livro, que se materializou na publicação separada da Introdução à literatura no Brasil, de cuja leitura emerge um objeto muito diferente daquele resultante da leitura do livro completo. Isso porque a síntese histórica de largo fôlego, empreendida pelo organizador, é contrariada em vária medida, ou simplesmente ignorada, nos capítulos escritos pelos especialistas.
Seus últimos desenvolvimentos constituem aquilo que David Perkins denominou enciclopédia pós-moderna, na qual as aporias percebidas no livro de Coutinho são levadas ao extremo.
Considere-se, por exemplo, um livro como O Século de Oiro, organizado por Osvaldo Silvestre e Pedro Serra, que se compõe de estudos isolados de poemas, cuja única fronteira temporal é o século XX. A concepção do livro traz para o centro da atenção a crise da história literária como gênero. Não apenas o volume abdica de qualquer texto que dê sentido sequencial ao conjunto de ensaios, mas ainda abdica de qualquer desejo de representatividade, pois os autores não são incluídos pela repercussão que tiveram em seu tempo, nem como representantes de alguma região ou tendência literária, nem mesmo pela importância que adquiriram em algum momento que não o da elaboração do livro. Cada um dos 73 autores indicou 3 poemas de sua preferência, sobre os quais gostaria de falar. Os organizadores selecionaram, dessas três indicações, usando critérios vários e combinados, o autor e o poema que cada autor teria de tratar. A partir daí fez-se o livro, que constitui um exemplo radical de história sincrônica: traz apenas aqueles poetas que 73 críticos e professores de diversos países consideravam interessantes naquele momento de produção do livro.
O caráter lacunar do livro causou escândalo, pois autores canônicos, representados em todas as histórias da literatura ou da poesia portuguesa do século XX, simplesmente desapareceram. Enquanto autores muito contemporâneos, como Daniel Faria, por exemplo, compareciam com destaque. Reside aqui, porém, independente do valor das análises que comporta, o principal interesse do livro, que constitui um exemplo radical do que seria uma história sincrônica, centrada na eleição e na apresentação de um paideuma.
Outro tipo de texto situado na mesma linha é a apresentação remissiva de um período histórico, por meio de verbetes redigidos por especialistas. É o caso, por exemplo, do Dicionário do Romantismo Literário Português, coordenado por Helena Carvalhão Buescu. Neste modelo, a escolha dos verbetes constitui a operação decisiva e é nela que se mantém a base histórica da organização, pois os ensaios monográficos são de caráter muito variado, têm premissas e métodos de reflexão muito distintos e abordam seu objeto segundo modos de compreender sua inserção na história muito diferentes entre si. O que um livro como esse recusa, pela sua própria forma de apresentação, é a distribuição cronológica, a narratividade, bem como o peso e a coerência da explicação causal da mudança histórica, agora múltipla (ou mesmo ausente), segundo o perfil dos autores dos verbetes.
Um modo de manter o recorte histórico é o que encontramos na História crítica da literatura portuguesa, dirigida por Carlos Reis, na qual a matéria histórica se organiza cronologicamente, de acordo com as grandes divisões tradicionais, mas se apresenta por meio da seleção de textos críticos e históricos que o organizador de cada volume considera relevantes para a abordagem do problema em questão. O interessante desse projeto é que os excertos de estudos que compõem o livro não estão delimitados pelo presente do organizador. Pelo contrário, o que ali encontramos são cortes verticais apresentando a história da recepção dos textos e temas, embora esse escopo (de apresentar a recepção dos textos ao longo do tempo) não seja sistemático e a escolha dos textos penda decididamente para a fortuna crítica da modernidade. A história crítica é, na verdade, uma antologia de textos organizados segundo linhas cronológicas, mas desprovidos de nexo narrativo. Um leitor que dela se aproximasse em busca de uma narrativa típica da história literária sairia certamente decepcionado.
O que me parece digno de nota, nestes três modelos, e especialmente nos dois primeiros, não é a reação à forma narrativa e causal da história literária, à síntese histórica. O que me chama a atenção é que o abandono da forma narrativa como organização do livro não consegue (e talvez nem tente) abolir a permanência subjacente dos grandes discursos narrativos ordenadores, produzidos ao longo dos séculos XIX e XX. Pelo contrário, eles estão todo o tempo presentes, seja na constituição do exemplário inicial, seja na articulação interna dos textos – ou ainda na forma de atribuição de valor literário ou representativo, bem como na distribuição hierárquica das obras dentro de cada texto ou verbete.
Na contramão da dissolução das formas narrativas nas obras dedicadas ao âmago do cânone, as tentativas de afirmação paracanônicas ou de construção de outros cânones investem na apresentação narrativa, retomando o velho modelo do romance de formação em que um personagem suprapessoal se vai desenvolvendo e amadurecendo ao longo de um eixo temporal. É o que sucede no domínio do estudo de minorias. De modo que, enquanto a história dos campos canônicos tenta fugir à narratividade, tenta escapar à condenação teórica e crítica da história literária como gênero, à contestação de parcialidade das construções históricas, bem como de reais ou supostos pressupostos classistas, falocêntricos, eurocêntricos ou esteticistas embutidos nas avaliações, os campos para- ou não-canônicos se empenham na direção contrária, em construir genealogias.
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Referência bibliográfica:
As demais obras mencionadas são bem conhecidas no Brasil. Indico apenas as duas que talvez ainda não sejam:
Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra (coord.). Século de ouro – antologia crítica da poesia portuguesa do século XX. Coimbra; Lisboa: Angelus Novus & Cotovia, 2002.
Helena Carvalhão Buescu (coord.). Dicionário do Romantismo Literário Português. Lisboa: Caminho, 1997.