domingo, 17 de junho de 2012

O pesadelo da razão – Histórias prováveis, Marco Cremasco

O pesadelo da razão – Histórias prováveis, de Marco Cremasco*
                     

   Marco Cremasco era já bem conhecido como poeta, tradutor e diretor de uma revista de poesia quando surpreendeu os seus amigos e leitores com um belo romance histórico, premiado pelo SESC em 2003 e finalista do Jabuti de 2005: Santo Reis da Luz Divina.
   Quatro anos depois, publica este volume, com 11 histórias intituladas “prováveis”.
   O que seriam histórias prováveis? perguntará o leitor – como eu mesmo me perguntei, quando tive notícia do livro.
   Como o autor é um cientista respeitado, autor de livros também na área da engenharia química, a primeira tentação é imaginar que se trata de um livro experimental. Não no sentido que se dá a essa palavra em arte, porque a arte experimental nada tem a ver com a ciência experimental, uma vez que os eventuais resultados que obtém só servem àquele livro no qual eles são experimentados ou à identificação do estilo do autor que os experimentou pela primeira vez. Mas experimental no sentido científico: histórias que podem ser provadas, histórias comprováveis.
   Basta, entretanto, que o leitor percorra as primeiras páginas para verificar que não deve ser esse o sentido da palavra que nomeia o volume e qualifica as narrativas, uma vez que o título do livro é também o título da primeira história, e nesta se juntam fragmentos escritos por um louco, redigidos talvez sob o impulso de notícias de jornal e tendo como método de escrita uma espécie de associação de palavras.
   Não sendo desde logo demonstráveis – pensa o leitor – talvez estas histórias se denominem “prováveis” no sentido de apresentarem situações ou enredos com possibilidade de acontecer. Mas essa suposição é também desmentida pelos fatos, ou melhor, pelos contos, pois “A paixão segundo qualquer pecado” é nada menos do que uma alegoria moral, no velho estilo.
   Se o leitor ainda não desistiu de procurar um sentido para o titulo, resta-lhe ainda uma possibilidade, antes de abandonar o dicionário e o desejo de interpretar.
   Nesse último sentido, as histórias seriam prováveis porque a sua inaceitabilidade ainda não foi cabalmente demonstrada. É uma das definições dicionarizadas. E daria conta de partes do livro, pois ainda não foi completamente demonstrado, por exemplo, que uma onça não possa viver despercebida na cidade grande, que um sujeito que se chama Cravo não possa relacionar-se exclusivamente com pessoas que tenham nomes também extraídos do reino vegetal, ou que os animais não possam organizar-se em assembléia e produzir longos discursos que se assemelhem a bem conhecidos discursos humanos.
   Mas já aqui estamos falando de outra coisa: seriam prováveis essas histórias porque especulariam sobre o funcionamento da sociedade e da psique humana? E seria ainda provável uma história na qual a lógica apanha da narrativa, porque ela traz, sobre os mesmos pontos do enredo, asserções que podem ser lidas como contrárias? Nesse caso, o que quereria dizer, então, “prováveis”? Seria somente uma provocação, forçando a leitura realista de textos ostensivamente não realistas? Ou seria um jogo irônico do autor com uma expectativa de leitura em alta nestes tempos nos quais o documento, o testemunho e o relato jornalístico ganham grande espaço no campo literário?
   E como o nome do livro é também o nome da primeira história, na qual o narrador afirma transcrever os fragmentos do caderno de um desvairado, talvez as histórias prováveis sejam apenas as histórias possíveis de escrever numa sociedade louca, por um louco.

   Sob a efígie ambígua da loucura, por conta do título do livro ser o da primeira história, movem-se as demais e se contaminam com a sua atmosfera, de modo que o leitor experimenta ali uma espécie de pesadelo da razão. Pensei primeiro em “sono da razão”, por conta da gravura de Goya, “O sono da razão cria monstros”, mas depois vi que o nome melhor seria o que Ernest Pawel usou para a biografia de Kakfa: o pesadelo da razão.
   Porque não se trata do adormecer da razão, e sim do seu funcionamento errático e exacerbado, que se manifesta como sensível desígnio de representação do mundo atual.
   O mundo das “histórias prováveis”, entre outras coisas, é como uma imagem refletida num espelho irregular: a distorção torna ridículos os traços, irreconhecíveis os detalhes, mas mantém identificado o objeto que está no reflexo.
   A “ratoria” invadida em “A invasão dos ratos” não só parece repercutir a penúltima invasão da reitoria da Unicamp (quando os estudantes estavam mascarados), mas prenuncia com a última, produzida depois do livro estar na praça (p. 68). A ficção burlesco-científica de “As leveduras” tem este trecho:

Toda área agriculturável destinada a feijão, arroz e outros gêneros alimentícios foi direcionada à plantação da cana-de-açúcar. No começo, houve aceitação; hoje vive-se em sua função. (...) A terra está explorada nos três cortes anuais de cana. Planta-se cana a todo custo. Vive-se por ela. Hoje é o dia de hoje; o amanhã será consumido na perspectiva do desemprego ou do trabalho forçado. Não há saída, pois o país está pobre e dominado por biomassa e destilarias de álcool. (p. 56)

   Essas palavras poderiam ter sido retiradas de um discurso de Fidel Castro contra o projeto do etanol. Ou poderiam ser ouvidas em uma viagem pelo interior do país. Ou ainda, ter sido colhidas diretamente num jornal qualquer.
   Mas ao mesmo tempo, e em contraposição a períodos graves como esse (no qual apenas um pequeno trecho rimado destoa da platitude discursiva), domina essas histórias o gosto (e talvez a obsessão) do livre jogo lingüístico, que em alguns casos faz com que o texto se aproxime da poesia, devido ao gosto da rima e da paronomásia, da enumeração exaustiva e algo caótica, do choque dos registros do discurso e da construção por palavra-puxa-palavra. Como neste trecho de “A onça-parda”:

Os homens reclamavam da má sorte, da morte do dia que não deu em bom para a pescaria. Nada havia nas caixas de surpresa naquela represa de insolação superficial. Na face descorada das putas, os garis varriam bitucas e sugavam salivas dos bordéis.

   Não se trata, porém, de livre-associação. Não há sombra de surrealismo, ou melhor, do método surrealista, que busca fazer aflorar aquilo que não tem controle ou razão.
   Pelo contrário, o controle da razão em pesadelo se afirma todo o tempo, principalmente por meio do caráter ostensivamente alegórico dos textos.
   A alegoria é uma forma da totalização do obscuro, do fragmentário. Ou é uma forma de fragmentar e obscurecer momentaneamente uma totalidade, para melhor revelar o conceito, quando a decifração se apresenta.
   A alegoria consiste em remeter um conjunto de elementos a outro, que funciona como a sua chave, que o totaliza num sentido pleno.
   As partes de um discurso alegórico que não remetem à chave são desprezadas na decifração. Assim, usualmente não importa a forma dos artelhos da estátua da justiça, nem as suas feições, nem o modelo da túnica.
   Ora, neste livro, os procedimentos mais perturbadores são os que, por dentro, corroem a alegoria. O primeiro consiste em tornar tudo plano, sem hierarquia, produzindo uma alegoria obscura, que, pela impossibilidade de totalização, namora o caos. O segundo consiste em chamar a atenção para aquilo que, na alegoria, não faz parte do sentido principal, produzindo rastros de sentido, que atravessam o texto e brilham em frases soltas, cenas esboçadas, para logo se perderem em non sense, ostentação de perícia, comprazimento na facilidade da composição e, principalmente, na ostensiva regressão às formas populares do apólogo e da fábula infantil que dominam o fluxo narrativo.
   A máquina de produção de sentido nessas histórias funciona do modo vário, mas o princípio da construção lingüística, que é o que dá o tom especial dessas onze histórias reunidas em volume, está sempre em evidência.
   O autor parece empenhado em construir fábulas, alegorias e apólogos que possam ser lidos como críticas de uma situação-limite a que chegou a humanidade, que explicitam mesmo o seu caráter de parábola. Mas essas parábolas terminam por se colorir, por força de um tom geral curiosamente infantil – que produz o humor pelo tratamento lúdico da linguagem e das situações narrativas –, de uma cor cambiante, entre a melancolia, a ironia resignada e o sarcasmo.
   De modo que, ao final do percurso da leitura, sobressai não o gesto alegórico ou efabulador, mas o quase agressivo trabalho de linguagem, que às vezes parece, de tão ostensivo, inconveniente.
   E é então que, ao fechar o livro e voltar a olhar para capa o leitor pode aventar  outra explicação para o título. Já não se trataria de uma afirmação, isto é, de dizer que as histórias são prováveis. Agora, um sentido dubitativo pode recobrir o título enigmático: são prováveis histórias. No sentido de que não é certo que sejam mesmo histórias.
   São, por um lado, histórias, os textos que o autor reuniu nesse livro. Mas também são, em medida vária, algo entre a poesia, a piada, a fábula infantil e o conto. Uma forma mutante, larvar, intermediária, que não é bem uma coisa, nem é bem a outra.
   É essa corrosão da forma que o livro afirma. E é nela que reside o seu caráter singular: ele nos traz quase-alegorias de quase-vidas; apresenta-nos, dissolvidas num riso amargo e regressivo, as efabulações possíveis num tempo e numa sociedade cada vez mais improváveis.


* Texto lido no lançamento do livro, no dia 24 de maio de 2007, na FNAC Campinas.

sábado, 16 de junho de 2012

Sete contos de fúria - resenha


[Jornal 7]

A fúria de Camões[1]


sobre Sete contos de fúria, de António Vieira (Ed. Globo, 2002)


           O título deste volume pode levar a engano sobre o que há nele. É que os conteúdos afetivos não aparecem ali em estado bruto. A racionalidade não parece prestes a ceder a um impulso que não pode suportar; nem a superfície da linguagem parece agitada por alguma intuição terrível. Pelo contrário, a razão é soberana ao longo do volume. O trabalho de escrita exibe cuidado construtivo e busca voluntariamente um registro anti-realista, que força às vezes a chave alegórica. Nas personagens tampouco há traços comuns de constituição associados à paixão que dá nome ao conjunto. E mesmo as epígrafes que abrem o volume e cada um dos contos sugerem uma escrita da espécie da glosa, isto é, do desenvolvimento exemplar de uma frase ou idéia alheia.
A fúria que denomina estas histórias é de outra ordem. Os contos são vaticínios, e a referência, num autor português, é explícita: a fúria que Camões pedia para si, “grande e sonorosa”, contraposta à “frauta ruda” e à “agreste avena”. O épico, aliás, é uma denominação que dá conta de importantes características desse livro, quais sejam a elevação da linguagem e o anseio de universalidade dos temas. Nesse sentido, adaptando as recusas camonianas, sua narrativa pode ser vista como um contraponto seja à “agreste avena” da narrativa centrada nas vicissitudes amorosas ou na apresentação de uma irredutível individualidade; seja à flauta rude do neo-realismo, que tem vendido bem em sua versão suburbana de testemunho da monstruosidade social.
Neste livro, quase não há “interioridades”. Tudo é amplamente iluminado, como é próprio da épica, e cada pormenor remete ao universo dos grandes textos e temas da tradição ocidental. E os nomes estranhos, as paisagens exóticas e minimalistas, as situações mais que improváveis combinam-se, numa linguagem ostensivamente trabalhada, para “desrealizar” as cenas e enredos. É certo que a presença de monstros e deuses materializam o tema do poder desmesurado e da opressão. Mas como não há, por princípio, representação realista da vida social, o foco de interesse é a percepção dos intertextos, alusões e símbolos.
A leitura do volume não é, por isso mesmo, pacífica. As histórias têm um desenvolvimento arrastado, que as faz parecer mais longas do que são. Também é perturbadora a unidade da linguagem e o princípio compositivo, que é a repetição, em variações cumulativas, de uma imagem ou conceito básico. Qualquer que seja o narrador e a situação narrativa, as frases são sempre cadenciadas (às vezes em metro regular), a adjetivação é saturada e as comparações e as metáforas descritivas, abundantes.
Do ponto de vista temático, os contos são ensaios sobre o divino. Melhor dizendo, sobre formas de ocupação, na geografia mental, do lugar reservado à divindade. Esse lugar, subitamente vazio, indignamente preenchido ou em transformação, é o fio que os une. No primeiro deles, um cientista judeu descobre, por meio de um supertelescópio, a sombra do cadáver de Deus, morto ao criar o universo. No último, o falo decepado e indestrutível de Osíris é descoberto no deserto e, após a tentativa frustrada de um grupo de iniciados, que tenta recompor a integridade do deus, desaparece nas águas do Nilo. O nome do primeiro conto é “O Grande Luto”. O do último, “A Restituição”. Entre esses dois extremos, estendem-se as modulações do tema da perda e da impossibilidade de substituição do bem perdido.
Na maior parte das histórias, o paganismo fornece a base dos nomes e dos enredos. Delas, a melhor me parece ser “Eôs”, uma versão da fábula grega. Como se sabe, apaixonada pelo jovem, a deusa Aurora obteve de Zeus a imortalidade do amante, Títonos, esquecendo-se, porém, de lhe garantir a eterna juventude. Com o passar do tempo, Títonos reduziu-se a uma forma encarquilhada e repulsiva, terminando por metamorfosear-se em cigarra. Na versão de Vieira, o cenário é meloso, quase uma recriação olímpica de Hollywood. O que a redime é a destruição da verossimilhança. Exemplos: Eôs negocia com Zeus pelo telefone (um aparelho modelo belle époque, aliás) o destino de Títonos; este passa suas horas de tédio contemplando fotografias com uma lupa; Zeus, que no conto se chama Suze, é um inescrupuloso industrial do ramo das armas de longo alcance; Eôs, em paga do veneno que livrará Títonos da vida eterna, se oferece a Suze como prostituta de luxo, servida por uma limusine. As quebras de expectativa não resultam, porém, numa adaptação modernizadora do mito grego, pois as tensões produzidas pelos anacronismos violentos permanecem irresolvidas. Afirma-se assim um intuito de paródia cruel, que contamina a leitura e justifica o registro algo piegas.
Nos melhores momentos, este livro exibe o brilho intenso de uma ironia refinada e corrosiva. Nos piores, a impotência da amargura vertida em simbologia mais ou menos evidente. O tom geral do livro talvez pudesse ser resumido no título da primeira história, “O Grande Luto”. Mas o desenho do volume, que termina na história do falo de Osíris, bem como o esgar de riso que se insinua em episódios como o dos amores de Eôs, mostram que a paixão que preside ao conjunto é um luto específico e mórbido: a melancolia. É dela que nasce o furor enunciado no título: o furor frio, lógico e estático, que dá força e justifica tanto a opacidade da linguagem ornada e alegórica, que flerta com o kitsch, quanto as quebras de verossimilhança, que inviabilizam a leitura realista ou a ingenuidade reverencial.
Com vários pontos altos, os “Sete contos de fúria”, entretanto, formam um conjunto desigual. Se alguns são ótimos, como “Eôs”, outros são apenas razoáveis, como “Vida e morte de Argos”, que glosa, num enredo plano, o velho tema da relação homem-poder-máquina num futuro indeterminado. Nesse caso, a ausência de paródia faz com que as características da escrita do autor revertam em saturação simples, gerando desinteresse.
Em suma, este livro de Antonio Vieira tem um duplo apelo e se move numa zona furta-cor. Se o leitor se aperceber da natureza da fúria específica que o organiza e atentar para a sua permanente atuação em todos os níveis textuais, não deixará escapar o que há de novo e vivo no conjunto das histórias. Caso contrário, só lhe restará recusar a leitura, ou então sucumbir à sedução do alegorismo mais ou menos fácil, que interpela diretamente uma “natureza humana” sem tempo nem espaço.


[1] texto publicado na Folha de São Paulo, em 14 set. 2002

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Nota: O voo noturno das galinhas


Nota de presentação do livro  
O voo noturno das galinhas
de Leila Guenther
publicado em 2006



       Os textos reunidos neste livro, mesmo os mais curtos, são histórias completas. Ou talvez fosse mais exato dizer que são gestos completos de linguagem, dotados da extensão apenas necessária para que se patenteie o seu sentido e se perceba o corpo do qual procedem e que os dinamiza.
       Não obstante, o leitor logo perceberá que não tem diante de si uma mera coletânea de contos e minicontos, mas sim um conjunto significativo, dotado de uma secreta arquitetura, que, sem prejuízo da autonomia de cada um deles, os reorganiza e ressignifica como momentos autônomos de um desenho amplo, cujo vetor e sentido só se percebem ao final da leitura.
      A coerência estilística também reforça a unidade do conjunto: moldados com mão leve, mas de grande firmeza, os vários textos aqui reunidos exibem todos uma escrita precisa, que não faz alarde do trabalho de depuração, nem exibição de pirotecnia narrativa.
     Contida e elegante, a linguagem de Leila Guenther não é, entretanto, despida de relevos e surpresas, que se manifestam a cada passo, sob a superfície polida do fluxo narrativo. Nesse universo minimalista, um torneio de frase, um advérbio ou a escolha precisa de um vocábulo bastam para testemunhar e trazer subitamente para primeiro plano a massa de energia e os movimentos profundos que se cristalizaram, em seqüência, nessas narrativas breves.
    A sensibilidade ao mesmo tempo delicada e agônica, combinada à linguagem correta e ao tom confessional, faz assim de cada história desse livro um momento tenso, no qual a energia aparece contida, mas prestes a estalar os limites que o narrador aceita ou taticamente se prescreve. Como se cada uma delas fosse uma mola, imóvel porque presa por um fio.

sábado, 9 de junho de 2012

Camilo Pessanha e a gruta de Camões


Pessanha e a gruta de Camões[1]


                                                                                                              



               Uma das últimas incursões de Pessanha na escrita foi uma conferência que pronunciou sobre Camões, por ocasião do dia nacional português, o 10 de junho, em 1924 – menos de dois anos, portanto, antes da sua morte, que ocorreria em 1o de março de 1926.
               Intitulada “Macau e a gruta de Camões”, aborda uma questão da maior relevância para o poeta: as condições de existência e manutenção da capacidade poética no exílio.
               Não são muitos os textos em prosa de Pessanha em que ele reflete sobre poesia. Reduzem-se basicamente a três: uma resenha de um livro de Alberto Osório de Castro, o resumo de uma conferência dedicada à estética chinesa, e esta.
               A resenha do livro de Alberto Osório de Castro mereceu já atenção crítica, num belo ensaio de Gustavo Rubim, intitulado Experiência da alucinação – Camilo Pessanha e a questão da poesia. Rubim também estudou a conferência sobre a estética chinesa. Mas o breve texto da conferência de 1924 (que tem apenas cinco páginas), talvez mesmo porque dele não se consiga extrair um perfil modernista para Camilo Pessanha, permaneceu praticamente sem comentário analítico, apesar de aí se encontrar uma curiosa e muito particular definição do que sejam lirismo e inspiração poética.
               A análise desse texto – precedida do comentário de poemas em que alguns tópicos relacionados com o seu tema são glosados – constituirá o cerne desta comunicação.


1


               Antes, porém, para melhor situar, no arco da vida e da reflexão de Camilo Pessanha, o texto que hoje nos interessa, devemos fazer um recuo de exatos 30 anos. Devemos voltar a abril de 1894. Pessanha acabara de chegar a Macau. Ainda deslumbrado com a diversidade oriental e esforçando-se por ambientar-se na colônia, escreve a Alberto Osório de Castro uma carta na qual expõe uma percepção da passagem do tempo e do deslocamento para longe da terra natal que permitirá melhor compreender o texto da conferência sobre Camões.
               Como não será possível alongar-me, destacarei apenas dois pequenos trechos da carta.
               Eis o primeiro deles:

               E eu, que tinha saudades de quanto ia deixando, até de Barcelona, onde estive cinco dias, até de Colombo onde estive duas horas. Porque a gente é bem um grumo de sangue, que por toda a parte se vai desfazen­do e vai ficando.[2]

               O afastamento impõe o esvaziamento, como a passagem do tempo também o impõe: ao longo do duplo percurso, temporal e espacial, esse coágulo que somos nós perde um pouco de si, impregna aquilo que nos impressionou ou nos seduziu: algo se desprende de nós e fica para trás, e nós nos vamos assim dissolvendo ao longo dos eixos do tempo e do espaço. É o sentimento decorrente dessa percepção que o poeta denomina genericamente de saudade e que tem, no contexto em que surge, uma forma específica: menos do que uma perspectiva de recuperação de um bem perdido, é a consciência de que não é possível apreender as experiências e mantê-las, não é possível incorporá-las à subjetividade. A noção básica que informa essa passagem é a da perda. A própria memória, vista pelo prisma da metáfora do grumo de sangue, se reduz assim a uma espécie de consciência dolorosa da perda inevitável. Ter memória das experiências, parece, é possuir ao mesmo tempo o desejo pela vida que se escoa e a consciência do desfazimento gradual implícito em toda experiência sensível e afetiva.
               Essa mesma percepção percorre boa parte dos poemas de Camilo Pessanha, e foi objeto de um estudo que em outro tempo realizei e que não cabe agora resumir.[3]
               Para o que nos interessa aqui, o importante é considerar esses trechos a partir da questão do exílio, do afastamento da terra natal – que era o tópico daquela carta em que a viagem para o Oriente fornece a matéria principal.
               Ora, enquanto experiência de exílio, não há aqui uma saudade indeterminada, e sim uma atualização muito concreta da nostalgia, que potencializa a sensação de deslocamento e o desejo de retorno.
               É em função da nostalgia que devemos observar o ­apego inesperado aos lugares pelos quais passa, pois o que aí vem para primeiro plano é sempre a percepção do afastamento. Como se quisesse reter o movimento de distanciamento da pátria, o poeta se agarra emocionalmente às escalas dessa navegação para o outro lado do mundo e assim sente saudades inexplicáveis. É, portanto, por uma espécie de contágio que a partida desses lugares sem conteúdo real afetivo lhe vai despertar o mesmo sentimento com que se afastara da terra natal, no começo do percurso.
               A segunda passagem da mesma carta permite completar o quadro:

               Ai, meu pobre amigo: eu bem sei o quanto aí terá sofrido. Havemos de morrer assim: o Alberto Osório por uma espécie de cobiça, eu por uma espécie de avareza.[4]

               Alberto Osório de Castro é aí associado ao apetite, à vontade de posse e de conquista. É um contraponto perfeito a Pessanha, que se retrata como aquele que tenta desesperadamente acumular, guardar em si os afetos e as sensações, protegê-los inutilmente do desfazimento a que está fatalmente condenado o sujeito ao longo da vida e da viagem.
               A consideração do texto de 1924 permitirá dar um sentido mais amplo à metáfora da “avareza” como atitude do poeta frente ao mundo. Mas antes, para fazer comparecer aqui a grande poesia de Camilo Pessanha, vou comentar brevemente dois textos nos quais se evidencia a questão da perda e do esvaziamento. E nos quais a metáfora das navegações e o intertexto camoniano têm um lugar central.


2

               São eles o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel” – que foi escrito por ocasião do quarto centenário da descoberta da Índia – e o soneto “Depois da luta e depois da conquista”, de data incerta, mas ao que tudo indica escrito em Macau.
               Comecemos por este último:

            Depois da luta e depois da conquista
Fiquei só! Fora um ato antipático!
Deserta a Ilha, e no lençol aquático
Tudo verde, verde, -- a perder de vista.

Porque vos fostes, minhas caravelas,
Carregadas de todo o meu tesoiro?
-- Longas teias de luar de lhama de oiro,
Legendas a diamantes das estrelas!

Quem vos desfez, formas inconsistentes,
 Por cujo amor escalei a muralha,
-- Leão armado, uma espada nos dentes?

Felizes vós, ó mortos da batalha!
Sonhais, de costas, nos olhos abertos
Refletindo as estrelas, boquiabertos...


            Podemos discernir nesse poema dois registros bem distintos. Por um lado, temos aqui um eu que nos fala, de forma mais ou menos alegórica, da decepção inerente a toda tentativa de realização de um desejo. Por outro, as imagens e os símbolos de que se vale para fazê-lo fazem presente um conteúdo histórico que não é nada neutro em Portugal: conquista, ilha, muralha, caravelas e tesouros refluem para um fundo mítico que percorre toda a cultura moderna portuguesa e teve sua expressão máxima no poema camoniano.
               Quero dizer, pela forma como se apresenta, o soneto opera uma forte identificação entre elementos do passado histórico e do passado pessoal. Mas devemos observar a especificidade dessa formulação simbólica, que se encontra também em outros autores do período (António Nobre, principalmente). O que me parece mais notável nesse poema é que não fica claro qual é o ponto de vista principal e qual é o secundário, isto é, qual é o plano alegorizante e qual é o plano alegorizado. Desse procedimento, resulta aquela superposição, muito sensível na poesia do final do século XIX em Portugal, do destino pessoal do poeta e do destino coletivo da nação. Quero dizer: temos aqui mais um exemplo da particular assimilação, em Portugal, dos estilemas do Decadentismo. De fato, todo o estado de espírito décadent tem um sentido muito específico, quando expresso em língua portuguesa no final do século XIX.
               Quando Verlaine dizia, instalado no coração da França: “Je suis l’Empire à la fin de la décadence”, ele frisava, pela contraposição de sua forma de sentir ao sentimento geral do homem comum, instalado na sua inabalável crença no progresso contínuo da civilização, que o poeta e a arte estavam mesmo a rebours, nadavam contra a corrente triunfante no tempo, lutavam contra ela, em nome de outros valores que se sentiam ameaçados.
               Mas quando Nobre ou Pessanha falavam em decadência, e expressavam aquele estado de espírito desistente e langoroso que se convencionou chamar de Decadentismo, o sentido social de suas palavras era profundamente diferente. Ecoavam eles, ao assumir os estilemas e as formas de sentir do Decadentismo, as mais profundas comoções da inteligência e da sociedade portuguesa, iniciadas com a constatação da decadência nacional nas conferências de 1870, e levadas à potência máxima nos meses que se seguiram ao Ultimatum de 1890. É por isso que Nobre vai poder terminar o “António” seu poema mais ostensivamente trabalhado nessa direção, em que é insistente o contraponto entre o dentro e o fora, a vida íntima do poeta e a vida geral da nação – com esta estrofe sinistra:

Moço Lusíada! criança!
Porque estás triste, a meditar?
[...] Vês teu país sem esperança
Que todo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no Ar?

               Memória coletiva e memória individual convergem nessas estrofes: a história de vida do indivíduo e a da nação são símbolos intercambiáveis. Um diz o outro, reflete-se no outro, explica-se por ele no nível imagético.

               Também no soneto de Pessanha coincidem os dois níveis de reflexão. E se é verdade que Pessanha nunca é tão clara e minuciosamente confessional quanto Nobre, nem por isso o poema deixa de ter dois registros simultâneos. Por um lado, lê-se o poema perfeitamente numa clave de abstração, como meditação generalizada a partir de uma experiência de decepção: trata ele, nessa chave, do descompasso entre o sonho, que gera a busca, e a realidade conquistada. No intervalo entre a projeção idealizada do desejo e a concretude que pode ser, por fim, apreendida, cresce a frustração, a decepção. A única forma de conservar intacto o ideal, dessa perspectiva, é não realizá-lo, isto é, suspender o desejo, interromper a ação. A frustração prévia decorrente dessa estratégia – quer dizer, a assunção de que é impossível conquistar o ideal buscado – é na verdade uma defesa contra a frustração maior, real e inevitável. Daí o símbolo dos mortos da batalha, considerados felizes por morrerem, por terem paralisada a sua ação no momento em que apenas vislumbravam o objeto irreal de seu desejo.
               Lido dessa forma, o poema é uma meditação sobre o descompasso entre os móveis e o resultado da ação dos homens, que termina por aquela paradoxal afirmação da morte como estado de felicidade. Uma felicidade apenas negativa, pois provém apenas da supressão dos motivos da dor, da eliminação da vulnerabilidade do sujeito. Os olhos abertos não retêm o ideal, nem contemplam a sua realização. Apenas o refletem. Desaparece justamente a angústia de apreensão que se encontra magnificamente expressa em outros versos lapidares de um dos sonetos mais célebres do autor: “Imagens que passais pela retina / dos meus olhos, por que não vos fixais?”. Fica apenas o resíduo, o desejo congelado e sem consecução.
               O que é notável é a maneira como toda a reflexão de Pessanha vem vazada em símbolos tradicionais da literatura e da história de Portugal. Quero dizer: mesmo lendo o soneto num registro de reflexão íntima, a imagética tradicional está presente, participa do registro da emoção pessoal.
               E destaca-se, na leitura, o fato de que uma só palavra é capaz de evocar, inteiro, um universo literário e ideológico que passa a funcionar como um baixo contínuo, a permear todas as demais inflexões do poema. Refiro-me à palavra Ilha, aí grafada com maiúscula, que faz ecoar no soneto a Ilha dos Amores camoniana.
               No poema quinhentista, após a descoberta e a conquista, a armada encontra a Ilha, prêmio da alta façanha, onde os argonautas se deleitam com as ninfas e contemplam a máquina do mundo.
               No soneto de Pessanha, por outro lado, o prêmio da conquista é também a Ilha. Mas trata-se de uma ilha deserta, e não há afinal prêmio algum, mas apenas perda.
               A conquista, ela mesma, recebe uma qualificação forte: um ato de oposição de sentimentos, de antipatia, e não de correspondência, de consonância entre a vontade do homem e a dos deuses, como no poema camoniano. A Ilha de Pessanha, de onde o poeta vê apenas o vasto mar, desabitado a perder de vista, está mais próxima, na geografia espiritual, de uma outra ilha dos amores: o cemitério pedregoso que Baudelaire retratou em “Un voyage à Cythère”.
               Entretanto, no poema de Pessanha não há crime, nem castigo violento. Ao ato antipático da conquista sucedem apenas a solidão desabitada, a perda dos tesouros acumulados e o reconhecimento da fatuidade de todos os esforços. O desejo de morte, que comparece no final, não tem qualquer caráter punitivo. É antes evasivo, um anseio pela aniquilação porque ela significa a forma possível de resistência do ideal, preservado do choque com a realidade.
               Embora esse soneto não se preste a uma leitura alegórica cerrada, é bastante sensível a forma pela qual nele confluem (por meio da simbólica das navegações), a trajetória nacional e a percepção do destino individual do poeta.
               No âmbito das imagens do poema, não parece haver qualquer expectativa da retomada da ação: valoriza-se aqui apenas retrospectivamente o móvel da empresa e invejam-se os que morreram ainda de posse dessa força que, na personagem que nos fala nesse soneto, já não existe senão para lamentar o bem perdido.
               Não temos indicação de quando teria sido composto esse soneto. Não podemos, portanto, saber qual a sua posição temporal em relação a outro poema bastante similar na imagética: o díptico de sonetos intitulado “San Gabriel”, publicado em 1898, para celebrar o quarto centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia.
               Do ponto de vista da articulação das idéias, entretanto, “San Gabriel” representa uma continuação do movimento reflexivo presente em “Depois da luta”. Com mais ênfase na história coletiva, e sem apresentar de modo tão notável aquela sobreposição do individual e do nacional, o poema começa justamente pela constatação de uma energia interrompida e de um esforço frustrado.
              
              
                        SAN GABRIEL

(No quarto centenário do
descobrimento da Índia)

I

Inútil! Calmaria. Já colheram
As velas. As bandeiras sossegaram
Que tão altas nos topes tremularam,
-- Gaivotas que a voar desfaleceram.

Pararam de remar! Emudeceram!
(Velhos ritmos que as ondas embalaram).
Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?

San Gabriel, arcanjo tutelar,
Vem outra vez abençoar o mar.
Vem‑nos guiar sobre a planície azul.

Vem‑nos levar à conquista final
Da luz, do Bem, doce clarão irreal.
Olhai! Parece o Cruzeiro do Sul!


                        II

Vem conduzir as naus, as caravelas,
Outra vez, pela noite, na ardentia,
Avivada das quilhas. Dir‑se‑ia
Irmos arando em um montão de estrelas.

Outra vez vamos! Côncavas as velas,
Cuja brancura, rútila de dia,
O luar dulcifica. Feeria
Do luar, não mais deixes de envolvê-las!

San Gabriel, vem-nos guiar à nebulosa
Que do horizonte vapora, luminosa
E a noite lactescendo, onde, quietas,

Fulgem as velhas almas namoradas...
-- Almas tristes, severas, resignadas,
De guerreiros, de santos, de poetas.


               Publicado num jornal especial dedicado à efeméride, em Macau, “San Gabriel” é uma celebração. Como celebração, o poema se deixa ler por referência à viagem de 1498.
               Iniciando in media res, surpreendemos a nau capitânia, que dá título ao díptico, no centro de uma calmaria. Uma voz que se articula em primeira pessoa do plural inicia então uma prece, que se estenderá por todo o resto dos versos, dirigida ao arcanjo que tem o mesmo nome da nau. Atendida a prece com a brisa nova que põe a frota em movimento, a voz se ergue mais uma vez e roga que a viagem seja levada a bom termo.
               Entretanto, ao longo do poema algumas palavras e imagens vão como que minando a leitura feita num registro puramente celebratório: a insistência na retomada de um movimento (“vem outra vez abençoar o mar”, “vem conduzir as naus [...] outra vez”, “outra vez vamos”) começa, também por influência do cenário onírico, a se deixar ler como repetição de uma ação já praticada no passado. Quero dizer: a voz que nos diz “nós” começa a se deixar ler como parte de um tempo outro, que não o da viagem histórica de Vasco da Gama. Assim também o final do primeiro soneto: trata-se ali de uma conquista, mas não de uma conquista qualquer, parcial e terrena. A conquista propiciada pela intercessão do Arcanjo é final e tem como objeto o Bem e a luz. Que seja esse Bem logo modalizado como ideal inatingível (“doce clarão irreal”) e simbolizado no Cruzeiro do Sul já é um ponto a destacar.
               Mas de momento, importa observar como essa navegação outra, que se propicia pela intercessão do Arcanjo, se processa já num outro plano: sobre a ardentia, com as velas banhadas pela lua, navega-se agora já não mais em direção à Índia, mas em direção a essa estranha nebulosa que derrama sua luz láctea sobre a noite, clareando-a, como se fosse uma espécie de aurora.
               Prosseguindo nessa via de leitura, vai-se tornando cada vez mais forte o registro alegórico. É agora possível ver, na cena inicial da calmaria e da desistência, uma representação do moderno Portugal da época do Ultimatum. Abatidos, exaustos, refletem os novos navegantes sobre as reviravoltas da história e se indagam sobre o sentido que teve aquele trajeto subitamente paralisado:

Que cilada que os ventos nos armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?

               Dessa perspectiva, o que se está celebrando não é a viagem que o Gama fez, e sim a viagem que, desde o Gama, se está fazendo e agora se redimensiona e se dirige para um novo porto: não mais se trata de buscar os tesouros do Oriente, mas sim de reencontrar as almas fortes da nação, e com elas o motivo e a força que embasaram a conquista histórica.

               Embora esse díptico esteja, do ponto de vista do emprego da imagética tradicional, próximo do soneto que comentamos anteriormente, é sensível que os dois poemas apresentam diferenças de enfoque do papel do ideal e da possibilidade da conquista.
               Enquanto no primeiro soneto não se apresentava nenhuma perspectiva de superação do impasse entre o ideal almejado e a fatal decepção que era a posse, aqui essa perspectiva se delineia: é preciso retomar o movimento, o impulso em direção à descoberta, mas num plano outro, em que o objetivo a alcançar já não pertence a este mundo, ou seja, não pode jamais ser objeto de conquista.
               Não é mais preciso, portanto, invejar os mortos da batalha, que refletiam nos olhos as estrelas inatingíveis. A irrealidade do Bem almejado, ou seja, a impossibilidade de sua realização, de sua consecução, projeta-se na distância infinita: é a nebulosa que é agora o destino dessa nau que só pode mesmo navegar em sonho e nunca atingir o porto desejado.
               É essa transposição de uma viagem marítima e carnal em uma fantasmagórica navegação entre as estrelas, com velas banhadas de luar, em busca da luz e do Bem, que vemos no “San Gabriel” de Pessanha e que nos parece, no que diz respeito à sua reflexão constante sobre as glórias e o futuro da Pátria de Camões, a sua mais impressiva e acabada realização.
               O seu fim, o seu desígnio já não é senão o encontro com o passado. Mas não na forma da retomada ou transfiguração da energia perdida, e sim apenas na contemplação dos exemplos de resignação, tristeza e severidade. Nessa navegação para a desistência se afirma a perspectiva desesperançada de Pessanha, no limiar da modernidade portuguesa. E é essa perspectiva toda negativa, que não ensaia qualquer redenção, nem no nível pessoal, nem no coletivo, que distingue o tom específico de Pessanha dos vários tons modernistas que lhe são contemporâneos.


3

               Chegamos por fim ao texto no qual Pessanha se dedica explicitamente à memória de Camões, que começa por referir a tradição de que Camões esteve em Macau e ali escreveu Os Lusíadas. Observando que é da índole do tempo contestar as verdades tradicionais, Pessanha compara a tradição com uma planta viva, arraigada no sentimento popular, do qual tira a seiva que a mantém.
               A tradição é assim, para ele, mais do que um testemunho de verdade histórica, um símbolo vivo e adequado à expressão de um conceito. E por isso sua conferência se propõe não a discutir a sua procedência factual, mas sim a grandeza do objeto venerado e o equilíbrio e a adequação dos elementos que o acompanham e com ele compõem o quadro significativo.
               Para Pessanha, a grandeza de Camões é evidente. Cumpre-lhe, então, como primeiro passo de análise, verificar se os demais elementos – isto é, principalmente, Macau – prestam-se a formar, com a grandeza do poeta e dos feitos heróicos que ele cantou no seu poema, um conjunto coerente e significativo.
               Para afirmá-lo, Pessanha lança mão de dois argumentos. O primeiro é autodemonstrativo: o território português na China é o lugar mais remoto a que chegaram e em que se instalaram os portugueses – ou seja, a localização de Macau se harmoniza com o assunto do poema camoniano, que canta a epopéia marítima das descobertas orientais. Já o segundo tem complexidade maior e se embasa numa postulação surpreendente, de alcance amplo. É o que nos interessa mais de perto.
               Eis:

               [...] a inspiração poética é emotividade, educada, desde a infância e com profundas raízes, no húmus do solo natal. É por isso que os grandes poetas são em todos os países os supremos intérpretes do sentimento étnico. Toda a poesia é, em certo sentido, bucolismo: e bucolismo e regionalismo são tendências do espírito inseparáveis. Notáveis prosadores (basta lembrar, dentre os contemporâneos, Lafcadio Hearn, Wenceslau de Moraes e Pierre Loti) têm celebrado condignamente os encantos dos países exóticos. Poeta, nenhum.

               Para Pessanha, a inspiração não apenas radica na emotividade. É emotividade. Mas emotividade modalizada, moldada pela “educação”, que lhe dá uma direção, limitação ou pré-configuração específica. A forma dessa modalização da emotividade, que a transforma em capacidade de poesia, não é, porém, como a palavra “educada” poderia fazer supor, a inserção numa tradição literária. Não estamos aqui no mesmo universo em que se moverá, por essa época, a reflexão de T. S. Eliot ou de Ezra Pound. O que faz a inspiração poética, para Camilo Pessanha, é a sua determinação pela experiência coletiva sedimentada num dado espaço e enquadramento natural – e que comparece, no seu texto, na metáfora vegetal do profundo enraizamento no “húmus da terra natal”.
               O ponto é importante: para Pessanha, não é a simples integração na Natureza ou a sua contemplação embevecida a condição da poesia. Pelo contrário, seu texto caminha no sentido de reduzir a abrangência do “natural”. Primeiro, pela identificação do “natural” com o bucólico – isto é, limitando a natureza eficaz para a poesia aos elementos que caracterizam a forma de vida das populações agrícolas, num território delimitado; segundo, pela assimilação do bucolismo ao regionalismo – o que promove uma segunda particularização do natural, restringindo ainda mais a sua eficácia e determinando-o, no âmbito do texto, como lugar de origem.
               A postulação de que a poesia é regionalismo é ainda da maior importância porque é com base nela que Pessanha irá assentar, na seqüência, a especificidade da forma portuguesa de ser poeta. E ele o faz da seguinte maneira: se toda poesia se define, de alguma forma, como vivência do bucólico e do regional, e se a emoção poética em geral se orienta pelas mesmas forças que determinam a constituição de um caráter étnico específico, a inspiração poética portuguesa se vai caracterizar e distinguir por só vigorar em vinculação direta com o torrão natal.
               Para um português, assim, o afastamento da origem é uma ameaça concreta à permanência da inspiração poética, pois esta só pode vigorar se, por meio da evocação, a sensação de desenraizamento, de exílio e afastamento da terra natal for eliminada ou posta em suspenso.
               Daí procedem a importância e a singularidade de Macau, entre os territórios habitados pelos portugueses. Sendo ela a única possessão situada no hemisfério norte, é ela a única que tem as estações do ano sincrônicas com as da metrópole. Por conta disso, em Macau os eventos religiosos e culturais têm o mesmo enquadramento sazonal que em Portugal, o que teria, segundo Pessanha, uma importante conseqüência. Vejamos:

               [...] em Macau é fácil à imaginação exaltada pela nostalgia, em alguma nesga de pinhal menos freqüentada pela população chinesa, abstrair da visão dos prédios chineses, dos pagodes chineses, das sepulturas chinesas, das misteriosas inscrições chinesas [...], das águas amarelas do rio e da rada, onde deslizam as lentas embarcações chinesas de forma extravagante [...], e criar-se, em certas épocas do ano e a certas horas do dia, a ilusão da terra portuguesa.

               À primeira vista, nada pareceria mais difícil, já que Macau pouco tem de português senão as casas e o contorno dos telhados. Para produzir-se a ilusão de estar em Portugal, de fato, é preciso abstrair-se de tudo o que é chinês – de tudo o que, enfim, é Macau.  Ou seja, é preciso ser capaz de obliterar os dados dos sentidos – não ver as inscrições, não perceber os odores tropicais, não ouvir as falas e as vozes, não contemplar os barcos. Mas, ainda assim, ali é fácil – ou seja, é possível, por oposição às colônias outras, situadas no hemisfério sul – produzir a alucinação do retorno, porque o enquadramento sazonal do calendário afetivo e cultural é um potente estimulador da nostalgia, que acende a imaginação e produz a alucinação de retorno à terra natal – condição necessária para a inspiração poética portuguesa.
                Descobre-se, então, a primeira justificativa para a escolha de Macau como lugar de culto de Camões e do povo português. Ao afirmar que ele ali teria escrito o poema nacional português, a tradição celebra o gênio que, mesmo nas condições adversas do exílio prolongado, conseguiu manter viva, dentro de si, a pátria distante. Conseguiu, portanto, manter produtiva a sua inspiração.
               Retomando a metáfora vegetal com que explicara não só o vigor das tradições, mas a própria inspiração poética, Pessanha celebra nestes termos o poeta quinhentista:

               [...] o gênio de Camões, alimentado embora exclusivamente da seiva que trouxera da Pátria – da imagem viva da sua paisagem, da lembrança minuciosa e fiel dos seus costumes, da sua história, das suas lendas, das suas crenças, da sua cultura científica e literária –, teve pujança bastante para triunfar dos meios mais adversos, para resistir aos mais implacáveis fatores de perversão e de atrofia.

               Essa homenagem a Camões, ao fazer dele um símbolo da energia da nação no seu apogeu, levanta imediatamente a questão da continuidade – do império português e do sentimento poético português – isto é, a comparação entre o passado e o presente:

               [...] mas a terrível ação depressiva do clima e do ambiente físico e social dos países tropicais, se não tiveram poder contra a assombrosa vitalidade criadora do poeta máximo, têm-no, todavia, [...] para esterilizar em cada um de nós outros, os pigmeus que a quatro séculos de distância o contemplamos, o pouco de aptidão versificadora que algum tivesse, mas ainda para destruir, mesmo nos melhor dotados, a comezinha parcela de imaginação de que é indispensável dispor quem intente evocar a estatura do gigante, o seu esbelto perfil e a sua figura augusta.

               A oposição está dada, e a explicitação do paralelo direto entre o orador e o homenageado, enquanto poetas, é, assim, inevitável:

               [...] quem estas linhas escreve – diz Pessanha – teve, por várias vezes (há quantos anos isso vai!), deambulando pelo passeio da Solidão, a ilusão, bem vivida apesar de pouco mais duradoira que um relâmpago, de caminhar ao longo de uma certa colina da Beira-Alta, muito familiar à sua adolescência.
              
               Nos termos do quadro conceitual em que se move a conferência, o que Pessanha afirma é que, enquanto estava alimentado pela “seiva que trouxera da Pátria – da imagem viva da sua paisagem, da lembrança minuciosa e fiel dos seus costumes, da sua história”, pudera ele próprio conseguir a ilusão indispensável à criação poética. Mas essa seiva, diferentemente do que ocorrera com Camões, se esvaíra. “Há quantos anos isso vai!” é a exclamação dolorosa que abre caminho à confissão do fracasso e ao paralelo do poeta moderno com o antigo.
               A contraposição com Camões não se traça apenas no nível individual. O poeta de outrora pudera manter-se espiritualmente, por anos a fio, apenas com as lembranças da pátria ausente porque vivera num outro tempo, no qual a “energia da raça” era tão exuberante a ponto de despender-se por “todo o imenso império português” que então se construía.  Já o tempo a partir do qual o poeta moderno dirige o olhar para o passado é visto sob o prisma da decadência, da ausência daquela energia que caracterizara os anos de 1500. Sente-se Pessanha num mundo e num momento em que nem a “raça” é pródiga de energias, nem (talvez por isso mesmo) o poeta é capaz de prover-se de uma suficiente reserva de lembranças e memórias que lhe permitam manter-se alimentado, quando desligado do ambiente e da paisagem portuguesas.
               Ao montar essa equação, na qual a cada momento na história da nação corresponde um tipo de poeta, Pessanha acaba por fazer, da sua obra quase inexistente, uma espécie de equivalente gorado da obra de Camões. É como se ele se representasse como um não-Camões, ou melhor, como o Camões possível nos tempos da decadência – para o qual até mesmo a evocação da grandeza do passado é um desafio.
                Se nos lembrarmos agora daquela carta de 1894, perceberemos que a conferência forma com ela um conjunto de coerência metafórica, contra o qual os poemas aqui rapidamente comentados ganham relevo e densidade.
               De fato, a metáfora da avareza já preludiava a formulação de 1924, segundo a qual a capacidade poética depende da manutenção da seiva haurida em contato com a terra natal; e a imagem do grumo de sangue a da esterilidade correspondente ao esvaziamento da seiva trazida do húmus da terra natal.
               Houvesse tempo e a leitura contrastiva dos textos de Pessanha sobre a China e dos poucos poemas nos quais ele glosa a paisagem exótica ou distante nos permitiria agora traçar outro quadro, que com esse faria conjunto: o da tentação e do perigo da entrega à sedução do diferente, por conta do amortecimento da capacidade de transfiguração nostálgica, imprescindível, segundo o poeta, à eclosão e à manutenção do sentimento poético português.


[1] Texto lido no colóquio “Camilo Pessanha: orientalisme, exil et esthétiques fin-de-siècle”, na Universidade Paris Oeste/Nanterre, em novembro de 2008.
[2] Carta datada de 30 de abril de 1894, reproduzida em Camilo Pessanha, Cartas, transcrição e organização de Maria José de Lancastre. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, p. 47.
[3] Nostalgia, exílio e melancolia – leituras de Camilo Pessanha. São Paulo: Edusp, 2001.
[4] Ib., p. 46.