terça-feira, 1 de julho de 2014

Haiku & haikai - nota de apresentação



               Haiku & haikai – descobrindo a natureza é um livro comovente. Elaborado e publicado em edição particular por Akiko Kurihara neste ano de 2014, põe ao alcance dos que não têm acesso aos textos em japonês uma produção do maior interesse. Mais que isso: um conjunto de poemas que, delicadamente, deixa perceber as dificuldades, as agruras e as pequenas alegrias do período de adaptação dos imigrantes ao clima e à natureza brasileira.
                O título do livro revela seu duplo objetivo: contar a história – com exemplos – do haiku no Brasil (isto é, do haikai escrito aqui, mas em japonês) e completá-la com um apanhado das principais tendências do haikai (isto é, o poema em português, feito com inspiração no haiku).
                Embora o valor da segunda parte seja grande, é na primeira que reside o maior ganho do livro, pela sua singularidade. É que a história do haikai no Brasil tem sido contada, de várias perspectivas, nos últimos anos. Já a história do haiku tem muito menos fortuna crítica e, sobretudo, menos exemplos dos poemas produzidos pelos imigrantes e seus descendentes imediatos.
                Li o livro com prazer e emoção. Nele, além de muita informação e boa iconografia, há textos de vários tipos, escolas e qualidade.
                Não vou me alongar muito, pois meu objetivo aqui é fazer uns pequenos registros, que levem ao conhecimento dos eventuais leitores deste blog alguns haikus que me parecem muito dignos de registro. Todos transcritos diretamente do livro, em tradução da autora.
                E começo com este, que me parece bastante simbólico do que foi a história do haiku no Brasil, pois nele se anota uma das profundas diferenças culturais (aqui apenas mais sensível, porque dizendo respeito imediatamente ao corpo) entre o país de origem e o de destino, qual seja tocar a pessoa, nos cumprimentos, costume esse inexistente entre os japoneses:

Os imigrantes recém-chegados
Ofendidos com os tapinhas
De bom-dia.
                               (autor: Shuhei Uetsuda, 1876-1935)

                E se tivesse de escolher um haiku que pudesse fazer conjunto, pelo sentimento, com esse que acabo de transcrever, escolheria este, escrito por Gijindo Kurihara:

Montanhas ao longe,
A correnteza primaveril,
Tudo remete à terra natal.

             Também me comoveu este haiku de Keiseki Kimura, que resume uma vida de trabalho na sua recompensa frugal:

Cadeira reclinada de vime,
Descanso reconfortante
Sob o Cruzeiro do Sul.

              Assim como me chamaram muito a atenção os haikus que falam da integração difícil, porém inevitável:

Feijão com arroz,
Firma-se o propósito
Ao se naturalizar.
(Kenichi Takao)

Dia da saúde,
Cumprimenta-se com a mão
Calejada pela enxada.
(Tyomin Izuno)

Comemora-se o dia da imigração
Com vereador nissei
E prefeito sansei.
(Seiryushi Aoyagui)

Faz-se tofu
Com amendoim
Para ficar diferente.
(Tazuko Arata)

            Grande parte dos haikus recolhidos no livro traz a marca das adversidades enfrentadas pelos imigrantes, bem como o registro de alguns dos pequenos prazeres na vida de labuta. E mesmo no campo das adversidades, não falta muitas vezes um tom de divertida melancolia, que é característico do haiku clássico.

Cobertor
Mais leve do que o sonho
Do meu filho
(Mikio Higuchi)

Olhando o céu
Onde esvoaçam libélulas,
Fumo o cigarro.
(Idem)

Festival de verão,
A moça bonita de quimono
É a minha filha.
(Shunpu Mihara)

Dia em que tudo sai errado,
Ao ficar de guarda no chiqueiro,
As galinhas foram roubadas.
(Tonan Tanaka)

Outono quente
Só as tiriricas
Crescem como peste.
(Mika Iwaki)

           Vários outros mereceriam transcrição e comentário. E talvez volte a eles, em outro momento, depois de dada a notícia inicial.
            Por agora, queria encerrar esta breve apresentação do livro, com uma rápida incursão na sua segunda parte. Mais exatamente, no domínio dos descendentes que se dedicaram ao cultivo do haikai, isto é, do haiku produzido em português.
           E termino este breve relato com a transcrição de três haikais, um de cada um dos mais dedicados cultores e difusores da forma tradicional na nossa língua, pessoas a quem tive e tenho o prazer de conhecer pessoalmente e que admiro pelo belo trabalho pela difusão do haikai no Brasil.

Eis aqui:

À noite, sozinho,
Me deixa mais pensativo
O canto dos insetos.
(Masuda Goga)

Por longos quilômetros
Sob um céu azul profundo –
Milharal ao vento.
(Teruko Oda)

Este álbum de fotos –
Também as traças se nutrem
De velhas lembranças.
(Edson Kenji Iura)




Sphera - resenha

Sphera, de Marco Lucchesi

(resenha originalmente publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 2003)



Escrever, para Marco Lucchesi, tem algo de conjura. Num dos poemas de Sphera (Record, 2003), lê-se: “a cada folha / em branco a cada / verso / inexistente / a baba do dragão / e o fero basilisco”. O disforme, o caráter desordenado e monstruoso do mundo sem a escrita é o que primeiro avulta neste pequeno poema em que se resume um dos principais movimentos do livro. O mítico basilisco, que envenena os lugares por onde passa, sendo morte física e emblema do diabo, é também dotado de um poder supremo: o de matar com o olhar. “Fero basilisco”, por isso, é a expressão com que é qualificada, no D. Quixote, uma pastora que, pela beleza, leva à morte um apaixonado não correspondido. O envenenamento pelo disforme e a sedução insuportável do muito belo são, portanto, os riscos, quando a poesia não ordena ao menos a superfície do mundo.
Ao longo do livro, esse é o movimento principal: “invoco / uma palavra / que me salve / dos extremos”. Mas tão eficaz é essa convocação das palavras (não uma palavra especial, um mantra ou fórmula de encantamento, mas a palavra em situação de poesia), que é em vão perguntar em que consistem esses extremos: onde é o céu, onde o inferno desta poesia? Onde o macho e a fêmea, o sol e a lua, a carne e o espírito, a dormência da morte e a vontade de viver? Onde o aqui e o além? Em nenhum momento do livro se apresentam imagens dos pólos em tensão. O transcendente não é um objeto de desejo. É antes um desejo de transcendência sem objeto. A conjura do verso é, por isso, desejo de apagamento e constatação de incomunicabilidade: “escrevo sem / deixar vestígios / enquanto busco teus / sinais / ambíguos”.
Perto do final, retornam o dragão e o basilisco, vestidos de nome moderno. Entre um evento de dimensões cósmicas e um ato quotidiano, a desordem é outra vez conjurada pelo rapto da palavra que os equaciona e, assim, reconhece e ordena por instantes: “a supernova / que brilha pouco acima // do horizonte e o café / que se resfria sobre / a mesa: assim // opera em todos / os quadrantes / a lei terrível da entropia”.
Esse equacionamento, essa reordenação se constata na forma de arranjo das palavras, no corte dos versos e estrofes, nas quais o vocabulário e as imagens equilibram o coloquial de hoje, o verbo imantado pela lírica camoniana e os rastros da simbologia alquímica.
Os poemas breves, de aparente ritmo sincopado, quando lidos em voz alta deixam sentir o alento da versificação tradicional, firmando a cadência antiga que os organiza. Este, por exemplo: “abeira-se / do abismo // com seus olhos / líquidos para saber / onde repousa // o nada // e sempre esse desvão / essa caçada // que o aprisiona em / quedas imortais”. Graficamente entrecortado, resolve-se em um alexandrino seguido de três decassílabos: “abeira-se do abismo com seus olhos líquidos, / para saber onde repousa o nada; / e sempre esse desvão, essa caçada / que o aprisiona em quedas imortais”.
Lucchesi compõe, assim, com fios minimalistas da tradição poética do ocidente, uma rede por onde escoa o fugidio, o inconstante, em busca das constelações possíveis de sentido. Como uma aranha, pronta a recompor a teia esgarçada, o poeta se apresenta como consciência expectante, no centro do livro, medindo e ponderando os abalos repetidos do desenho, enquanto contempla o vazio sobre o qual se sustenta a sua leve geometria.
Da sua maneira, é uma busca pelo Éden. Mas o que resulta é um “gélido jardim”. A fuga do disforme, do olhar paralisante do basilisco, dos pequenos poderes torturantes que habitam o presente, será apenas um entregar-se mais rápido ao deserto iluminado, cheio de olhos e de vozes que apenas assopram, por pouco tempo, a poeira informe.
A impressão final é a de que se trata de um livro no qual a totalidade se exibe aos pedaços. Melhor dizendo, é um livro em que o desejo de totalidade se apresenta como pedaços, como uma série de pequenos triunfos transitórios, cristalizados nos poemas. O voluntário aspecto de fragmento é, assim, antes um efeito, um recuo estratégico da voz que, melancólica, conforma o impossível nos ritmos antigos, do que uma confissão de incapacidade de apreender uma totalidade percebida como inapreensível.
Nesse sentido, a fisionomia resultante é clássica. O tom do livro é um estoicismo mitigado. E a erudição que o anima é o conforto possível: o da conversação inteligente, agradável, à margem do abismo, cuja presença ao mesmo tempo exige e rarefaz as palavras que são ditas.
A ossatura do livro não é dada tanto pelo arranjo dos poemas, quanto pela ocorrência, em intervalos bastante regulares, de cinco sonetos de rigoroso corte clássico que, em média a cada nove poemas, erguem-se, como colunas de apoio ou suma dos momentos que os precedem. Assinalam, em registro alto, a coleta das experiências e descrevem a progressão de uma obra alquímica que, aparentemente, não se realiza. Ou então se cumpre apenas como intenção e falência, pois, como se lê no último soneto do volume, a “palavra despojada e cristalina”, resultado da grande obra, se perde na corrente das águas que se afastam da fonte. Que a sua ausência seja tomada como testemunho da existência de um deus impossível de ser identificado ou compreendido diz muito sobre a teologia, ou sobre o anseio por sentido teológico, que anima este volume.
Lidos isoladamente, os sonetos não responderão talvez pelo há de melhor no livro. Marcando o ritmo das páginas, rodeados pelos textos breves, que fluem de uma página para a outra, eles funcionam como lugares de chegada. E, como pontos de chegada, são mais temáticos do que formais, menos simbólicos do que rítmicos. Mas com o seu ostensivo andamento tradicional e com o seu vocabulário em que há algo de cediço, retirando dos demais poemas a sua própria força, são eles, no final das contas, os pontos luminosos que definem o contorno possível dessa Sphera. Vista de fora, ela não espelha a vertigem frente à máquina do mundo, nem o pavor face ao desmedido das vastas esferas estreladas. Apenas revolve, sem muito alarde, fugazes constelações, nas quais operam e se refletem o acaso e a nostalgia da totalidade num mundo desabitado pelos deuses.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Leitura de um poema de Camilo Pessanha


Leitura de um poema de Camilo Pessanha  [1]



Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
- Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clarões, cromáticas vesânias -,
No limbo onde esperais a luz que vos batize,
 
As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.
 
Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da água na clepsidra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,
 
Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.
 
Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,
 
Adormecei. Não suspireis. Não respireis.
 


 
               Clepsidra é o nome que tem sido dado às coleções possíveis de versos de Camilo Pessanha. Uma ordenação significativa autorizada pelo poeta parece ser algo irremediavelmente perdido, se é que alguma vez existiu. E se existiu, dificilmente terá sido integrada por todos os poemas que até hoje os vários editores foram reunindo sob o título emblemático do lugar de escoamento da água, imagem e medida do transcurso ininterrupto do tempo.
               Entretanto, do que talvez tivesse sido um desenho de conjunto, um projeto do livro dos versos de Pessanha, restam duas balizas: uma quadra em que um “eu” afirma o desejo de “no chão sumir-se, como faz um verme” e esta invocação dos estranhos interlocutores que só a voz do poeta constitui em existência. Quanto ao lugar inaugural da quadra denominada, por alguns, “Inscrição”, não há prova documental, apenas a tradição das várias edições e a coerência de lugar e de sentido. Já o presente poema foi identificado pelo próprio poeta, numa versão preliminar, como a “última página de um livro em tempos delineado”.
               Ganham, pois, os poemas com a leitura conjunta, que ressalta o desejo de trânsito entre superfície e profundeza, entre o interior e o exterior da terra. Na quadra, a languidez da alma produz o desejo de “deslizar sem ruído”, de desaparecer por meio de um mergulho regressivo, que supõe a perda das defesas e das características humanas. Neste, o movimento começa com o anseio das cores subterrâneas pelo batismo da luz que lhes dê existência – portanto, com o desejo de emergir da terra que as recobre – e prossegue com a apresentação/invocação de outros seres que ainda não chegaram a existir e que aparecem situados em graus crescentes de afastamento do solo: primeiro, os abortos nas prateleiras ou nas mesas dos museus; depois, os sonhos, à beira dos telhados.
               Ressalta também, da leitura conjunta, o lugar em que se situa a voz lírica, que é o lugar da consciência do desejo. Lugar analítico por excelência. No primeiro caso, o da quadra, o desejo é do próprio sujeito que o expressa: desejo de inconsciência, de alívio de uma situação que é sentida como destino, como efeito de uma circunstância de ordem mais ampla: “eu vi a luz em um país perdido”. No caso do poema final, o desejo é atribuído ao interlocutor. A voz lírica é o lugar da experiência que aconselha justamente a cessação do desejo. Este, por sua vez, tem um lugar aporético: é o desejo de existir, postulado como origem da frustração e da dor de seres ainda inexistentes, ou já não existentes.
               Na primeira estrofe, as cores virtuais, ao jazerem enterradas, forçam a percepção de que a base metafórica são os fenômenos da decomposição orgânica: a loucura produtora de alucinações coloridas, a expectoração dos tuberculosos e o fogo-fátuo. O procedimento lembra a morbidez irônica de outros versos. Aqueles nos quais as várias substâncias geradas pela putrefação dos cadáveres são objeto de contemplação, como produtoras de formas e de cores: “putrescina! – flor de lilás! / cadaverina! – branca flor do espinheiro!”. A possibilidade da leitura é reforçada pelo verso 4, que traz as imagens complementares do limbo e do batismo, em relação inversa. A decepção da esperança de fuga do lugar de inércia, por meio do ritual que se destina justamente a evitá-lo, contribui para o adensamento agônico da materialidade corporal das imagens, além de preparar a menção aos natimortos que comparecerão logo adiante no poema. O verso 5, destacado espacialmente dos anteriores, dos quais é entretanto a seqüência sintática, nos põe de súbito em face dos olhos dos enterrados, aos quais se aconselha que se fechem finalmente, sem esperança de término da vigília dolorosamente empreendida.
               Na estrofe seguinte, a apóstrofe se dirige aos que não nasceram, mas cujos corpos se preservam incompletos, intactos, modificados apenas na coloração. Habitantes de outro limbo, o asséptico dos museus, são explicitamente afastados, pela negação, de Deus. Seu mundo não é o da expansão das cores, mas o da concentração sonora. Não é o da terra, a que deve retornar o pó; mas o da água. E a força da estrofe provém em grande parte do contraste entre as duas imagens da água, uma explícita e outra implícita. Explícita é a água que corre na clepsidra: o tempo que flui. Implícita é a água parada, o líquido em que flutuam os corpos metidos nos frascos, na paralisação do fluxo vital interrompido. Embora sejam também figurações da impossibilidade de uma consciência sem vida, contrastam os abortos com as cores virtuais: sem ansiedade, sem esperança de redenção, ouvem resignados e talvez irônicos a passagem do tempo, a que já estão imunes. Ecoam, com o seu vago sorriso confinado nos invólucros de vidro, um outro poema de Pessanha, que também é estruturado sobre a imagem paradoxal do cadáver consciente e reflexivo: o morto que se ri do fato de que nada do que passa sobre a sua sepultura lhe dói minimamente. A esses a voz lírica aconselha a cessação da atenção e da busca de respostas.
               Neste momento do poema, as duas pontas do ser orgânico foram interpeladas: aquela em que a vida ainda não se realizou plenamente, imagem de um momento congelado, de promessa sem realização; e aquela em que o ser, já passado o momento da morte (no qual um outro seu texto via o surgimento de um aspecto de “imortal serenidade”), se desfaz na escuridão da tumba, esporadicamente cortada de clarões e cores sem esperança de redenção. Entre elas se deve situar logicamente o espaço da vida. Se assim for, ela aqui é identificada ao sonho, e seu grau de irrealidade e indefinição acaba por parecer maior do que o dos momentos terminais.
               No terceiro bloco, interpelam-se os “sonhos não sonhados”. Do ponto de vista da construção metafórica, completa-se o quadro lúgubre do poema, juntando a imagem das almas penadas à das aves noturnas que se ferem de morte contra os limites da casa, e encarnam mais explicitamente o anseio, já marcado de dor, pela existência. Noturna, não há nessa estrofe nenhuma menção de cor. Em compensação, é o mais sonoro dos três blocos em que se divide o poema. Não apenas porque refere o arrulhar, a expiração e os queixumes dos sonhos, ou bater das suas asas nas arestas dos telhados. Mas principalmente porque a estrofe toda se eriça de aliterações e assonâncias e, principalmente, porque uma mesma rima de grande sonoridade retoma e sistematiza o procedimento (inaugurado na primeira estrofe) de explorar a cesura do alexandrino: virtuais, esperais, (cerrai), errais, lacerais, expirais. Essas três últimas palavras, ecoando os seus “ais” na sexta sílaba de três versos seguidos, martelam a gradação das ações atribuídas aos sonhos, mostrando que mesmo aquilo que não chegou a existir (os sonhos que não foram sequer sonhados), aquilo que poderia ser descrito, portanto, como pura potência sem ato, tem um périplo de sofrimento e morte. Nesse sentido, o poema vai num crescendo: a relação desejo/dor vai sendo vazada em imagens de materialidade crescente. À medida que prossegue a leitura, mais intensa se torna a presença do desejo de vida e mais intensa parece a dor que surge associada a ele.
               Para essa percepção de intensidade contribui a leitura do verso final, que, diferentemente do padrão estabelecido nos blocos estróficos anteriores, não é sintaticamente bipartido, mas tripartido. Como os anteriores, abre-se com um imperativo afirmativo, a que se segue um negativo. A diferença é que há agora duas frases de ordem negativa, e que a sua forma de construção coloca em destaque – pela repetição do mesmo padrão métrico (o péon quarto), da estrutura sintática e da pontuação – a palavra de negação.
               A tripartição do verso final também encerra uma gradação de intensidade: o sono, a ausência de reação à dor, a parada da respiração. É a morte absoluta, afinal, o conselho que aqui se cristaliza, após ter sido preparado pelos versos isolados após cada quarteto. E o que a morte absoluta significa, neste quadro particular, em que os interlocutores não estão vivos, é a cessação do paradoxal desejo de existir.
               Os seres interpelados nos três blocos do poema ocupam espaços simbólicos diferentes e bem delimitados. Os primeiros se situam num espaço de exterioridade inominada, apenas referida metaforicamente como “limbo”, cujo elemento é a terra. Confinados, seu desejo de redenção se manifesta também como desejo de exteriorização, de subida em direção ao ar e à luz. Os terceiros, ao que parece, localizam-se no espaço privado da casa, do lar. Associados aos pombos que habitam os beirais, o limiar da exterioridade, seu desejo de serem sonhados é também o desejo de passarem à interioridade do espaço íntimo, e sua permanência na virtualidade é também a sua condenação à morte no espaço da exterioridade da noite e do vento.
               Já os segundos se situam no espaço social, público e controlado do museu. O elemento predominante na estrofe que os apresenta é a água. Mas neles mesmos não há movimento, nem anseio por movimento. Imagens da quietude desesperançada, os abortos comparecem como o momento do equilíbrio possível. Oferecendo-se quietamente como espetáculo visual, dotados da materialidade que falta aos outros interlocutores da voz lírica, os não-nascidos parecem imunes à esperança e à dor do anseio pela existência. Nesse sentido, são o equilíbrio possível no quadro do poema.
               Por uma carta juvenil, sabe-se que, em algum momento, Pessanha pensou em organizar o conjunto dos seus poemas segundo um desenho temático centrado no tema do desejo e do prazer (realização possível e destruição do desejo). A leitura seqüencial conduziria à constatação de que lutar pelo prazer é o mesmo que lutar pela extinção do desejo e pela morte. A vida, portanto, era identificada ao momento tenso, cheio de energia e de dor, no qual a carência move em direção a um objeto, cuja posse dissipa a tensão e é sempre deceptiva em si mesma. Talvez por isso a vontade de fixar, preservar ou celebrar o momento anterior à realização do desejo seja um dos motores da lírica de Pessanha, responsável por alguns dos seus poemas mais célebres. Uma das suas melhores concretizações é o soneto que começa “Depois da luta e depois da conquista”. Mas já neste poema final, escrito para encerrar o conjunto dos seus versos, o desejo em busca de realização é objeto apenas de piedade. Não se fixa heroicamente, como idealidade solar fadada ao obscurecimento e à decomposição; nem se celebra como furor, como febre que produz imagens irreais de integração, como no díptico iniciado pelo soneto “Desce em folhedos tenros a colina”. Pelo contrário, num poema em que o elemento ‘fogo’ é o grande ausente, o momento da luz possível entre as duas cenas noturnas de sofrimento desejante é o momento em que repousam, indiferentes ao correr do tempo, os abortos desprovidos de transcendência.
               Pessanha escreveu certa vez que, apesar do progresso da ciência, permanecerá intocado um espaço incognoscível, “da beira de cujo abismo as almas meditativas continuarão, por todo o sempre, a debruçar-se terrificadas e ansiosas”. Era uma frase que situava o espaço da poesia, indicando a condição da sua continuidade num mundo dominado pelo conhecimento positivo.
            Nesse quadro, se este poema foi escrito para encerrar o livro que reuniria os poemas de Camilo Pessanha, ressalta agora que a imagem da estrofe central pode ser lida como uma figuração irônica da própria condição do pensamento filosófico ou poético. Irônica não apenas porque todo o poema ecoa e enfeixa os fios principais da lírica de Pessanha e porque nessa estrofe particular comparece, pela única vez, a palavra que denominaria o conjunto dos seus versos, mas também porque reúne, no espaço da curiosidade científica e do didatismo, os temas constantes ao longo de alguns dos seus melhores versos: a construção da imagem do desejo congelado antes da realização, a cisma sobre o abismo do incognoscível e a descrença na transcendência, que permitiria fugir à fragmentação e redimir o desejo, apontando-lhe um fim que não fosse a própria e estéril extinção



[1] Este texto foi publicado no volume Século de Ouro – antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, organizado por Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra e lançado pelas editoras Angelus Novus e Cotovia, em 2002.