24 de março de 2015
Leitura literária: leitura da competência técnica, leitura da
intertextualidade. Ambas pressupõem o repertório. Porque a competência
técnica, a não ser que seja uma demonstração de princípios gerais, não
se demonstra sem o sentido do procedimento num dado quadro cultural. A
menos que se acredite num vetor evolutivo, num caminhar para o melhor ou
mais puro ou mais econômico. Como não é sequer preciso demonstrar a
falta de razão nessa crença, o procedimento é sempre um gesto desenhado
contra um pano de fundo de expectativas de satisfação e de recusa, que
lhe dá o sentido no momento em que é lançado. E esse pano de fundo
“gruda” o objeto de tal modo que a tentativa da sua reconstituição se
chama ensino, crítica e história da literatura. Mas a leitura
propriamente literária é a do texto num dado registro, isto é: a
compreensão de como ele se apropria do passado (incorporar ou recusar,
nomeando, é o mesmo, nesse caso) e assim se insere no que há algum tempo
chamávamos tradição. Há vários modos de um texto reivindicar o nome
“literatura”. Inclusive reivindicando a denominação negativa, que
poderia ser antiliteratura, por exemplo. Porque a reivindicação de
pertencimento à literatura é uma demanda por uma atitude de leitura, por
uma atitude do leitor. Os modos mais simples são a ocupação de um
lugar: uma revista literária, um livro. Reivindicar por metonímia,
diria. Ou por contágio. Também se reivindica pela ostentação do
procedimento associado ao registro, como no caso das linhas
interrompidas, que proclamam a poesia. E, por fim, nas formas mais
complexas, pelo diálogo com outras obras, pela paráfrase, alusão,
paródia, citação: uma reivindicação por metáfora, talvez pudesse dizer.
Essas, porém, exigem mais do leitor: exigem a identificação do texto
glosado, emulado, recusado ou indiciado – às vezes por uma palavra
apenas, ou simples torneio sintático. Exigem um repertório de leituras
propriamente literárias. E talvez por isso mesmo tenham sido as formas
de produção e recepção que mais prontamente subsumiram o propriamente
literário.
Para quem escreve literatura – e mais especificamente
para quem escreve poesia – uma questão grave é que não há mais amplo
repertório comum; pelo contrário, apesar da disponibilidade da
informação e do acesso universal aos textos propiciado pela tecnologia, é
cada vez mais estreita a base comum sobre a qual fazer funcionar a
intertextualidade. Vê-se isso com mais clareza na dificuldade de fazer
paródias. Sem um repertório “clássico”, no sentido de repertório comum, a
paródia seca. Na modernidade, a intertextualidade corre sempre o risco
de se tornar críptica (o que, diga-se, pode ser um efeito almejado e um
poderoso elemento de produção sentido, como se vê, por exemplo, em The
waste land). E mesmo a alta paródia e exige a mediação de um leitor
especializado ou hiperespecializado – como se vê nesse mesmo poema. Por
isso mesmo, em muitos casos contemporâneos a ostensiva intertextualidade
tem valor indicial apenas, trazendo para dentro referências tão
evidentes que já não têm poder algum de significação, além do de
conclamar o literário ou reivindicar o pertencimento a um clã – o clã da
pedra, por exemplo, se fosse para referir o mais simples e banal hoje
na poesia brasileira. Por outro lado, a incorporação discreta corre o
risco de não produzir nenhum sentido no leitor, ficando a esperança em
que um remanescente especialista um dia a revele, explicitando a
referência para que ela possa finalmente atuar como elemento de sentido
pleno. Ou então, o que é o pior, a incorporação discreta não se decifra
como apropriação legítima, que busca, com a redução da revelação da
co-autoria, que o apropriado funcione plenamente e apenas ganhe mais
densidade de sentido com a decifração – decifra-se como plágio, essa
denominação tão grata à ignorância.
Em algum lugar está escrito que o
uso de aspas ao incorporar um texto clássico era considerado, na China
antiga, um insulto à inteligência e à cultura do leitor. Pode não ser
verdade, mas sobre essa afirmação se poderia reconstruir a utopia da
leitura preferencialmente literária.
Não gostaria que estas
reflexões matinais, soltas e esparsas antes sequer do café da manhã,
fossem apenas uma distopia simplificadora. É certo que o sentido se dá a
ler e se produz sobre as ruínas dos antigos modos de leitura. E é
provável que isso seja exatamente o ponto sobre o qual se equilibra a
nossa modernidade agônica. Mas isso não me faz duvidar do fato de que
todo um modo de escrever e de ler passa por um momento singular de
transformação, sobre cujas causas e consequências valeria a pena
especular, em vez de buscar refúgio nas boas intenções e na reafirmação
da crença na perenidade da “literatura”.
terça-feira, 24 de março de 2015
segunda-feira, 14 de julho de 2014
Entrevista a Leonardo Vicente Vivaldo 2014
Entrevista a
Leonardo Vicente Vivaldo
Revista Travessias Interativas - julho 2014
terça-feira, 1 de julho de 2014
Haiku & haikai - nota de apresentação
Haiku & haikai – descobrindo a natureza é um
livro comovente. Elaborado e publicado em edição particular por Akiko Kurihara neste ano de 2014, põe ao alcance dos que não têm
acesso aos textos em japonês uma produção do maior interesse. Mais que isso: um
conjunto de poemas que, delicadamente, deixa perceber as dificuldades, as
agruras e as pequenas alegrias do período de adaptação dos imigrantes ao clima
e à natureza brasileira.
O
título do livro revela seu duplo objetivo: contar a história – com exemplos –
do haiku no Brasil (isto é, do haikai escrito aqui, mas em japonês) e
completá-la com um apanhado das principais tendências do haikai (isto é, o
poema em português, feito com inspiração no haiku).
Embora
o valor da segunda parte seja grande, é na primeira que reside o maior ganho do
livro, pela sua singularidade. É que a história do haikai no Brasil tem sido
contada, de várias perspectivas, nos últimos anos. Já a história do haiku tem
muito menos fortuna crítica e, sobretudo, menos exemplos dos poemas produzidos
pelos imigrantes e seus descendentes imediatos.
Li o
livro com prazer e emoção. Nele, além de muita informação e boa iconografia, há
textos de vários tipos, escolas e qualidade.
Não vou
me alongar muito, pois meu objetivo aqui é fazer uns pequenos registros, que levem
ao conhecimento dos eventuais leitores deste blog alguns haikus que me parecem
muito dignos de registro. Todos transcritos diretamente do livro, em tradução
da autora.
E
começo com este, que me parece bastante simbólico do que foi a história do
haiku no Brasil, pois nele se anota uma das profundas diferenças culturais
(aqui apenas mais sensível, porque dizendo respeito imediatamente ao corpo) entre o país
de origem e o de destino, qual seja tocar a pessoa, nos cumprimentos, costume esse inexistente
entre os japoneses:
Os imigrantes recém-chegados
Ofendidos com os tapinhas
De bom-dia.
(autor:
Shuhei Uetsuda, 1876-1935)
E se
tivesse de escolher um haiku que pudesse fazer conjunto, pelo sentimento, com
esse que acabo de transcrever, escolheria este, escrito por Gijindo Kurihara:
Montanhas ao longe,
A correnteza primaveril,
Tudo remete à terra natal.
Também me comoveu este haiku de Keiseki Kimura, que resume
uma vida de trabalho na sua recompensa frugal:
Cadeira reclinada de vime,
Descanso reconfortante
Sob o Cruzeiro do Sul.
Assim como me chamaram muito a atenção os haikus que falam
da integração difícil, porém inevitável:
Feijão com arroz,
Firma-se o propósito
Ao se naturalizar.
(Kenichi Takao)
Dia da saúde,
Cumprimenta-se com a mão
Calejada pela enxada.
(Tyomin Izuno)
Comemora-se o dia da imigração
Com vereador nissei
E prefeito sansei.
(Seiryushi Aoyagui)
Faz-se tofu
Com amendoim
Para ficar diferente.
(Tazuko Arata)
Grande parte dos haikus recolhidos no livro traz a marca das
adversidades enfrentadas pelos imigrantes, bem como o registro de alguns dos
pequenos prazeres na vida de labuta. E mesmo no campo das adversidades, não
falta muitas vezes um tom de divertida melancolia, que é característico do
haiku clássico.
Cobertor
Mais leve do que o sonho
Do meu filho
(Mikio Higuchi)
Olhando o céu
Onde esvoaçam libélulas,
Fumo o cigarro.
(Idem)
Festival de verão,
A moça bonita de quimono
É a minha filha.
(Shunpu Mihara)
Dia em que tudo sai errado,
Ao ficar de guarda no chiqueiro,
As galinhas foram roubadas.
(Tonan Tanaka)
Outono quente
Só as tiriricas
Crescem como peste.
(Mika Iwaki)
Vários outros mereceriam transcrição e comentário. E talvez
volte a eles, em outro momento, depois de dada a notícia inicial.
Por agora, queria encerrar esta breve apresentação do livro,
com uma rápida incursão na sua segunda parte. Mais exatamente, no domínio
dos descendentes que se dedicaram ao cultivo do haikai, isto é, do haiku
produzido em português.
E termino este breve relato com a transcrição de três
haikais, um de cada um dos mais dedicados cultores e difusores da forma
tradicional na nossa língua, pessoas a quem tive e tenho o prazer
de conhecer pessoalmente e que admiro pelo belo trabalho pela
difusão do haikai no Brasil.
Eis aqui:
À noite, sozinho,
Me deixa mais pensativo
O canto dos insetos.
(Masuda Goga)
Por longos quilômetros
Sob um céu azul profundo –
Milharal ao vento.
(Teruko Oda)
Este álbum de fotos –
Também as traças se nutrem
De velhas lembranças.
(Edson Kenji Iura)
Sphera - resenha
Sphera, de Marco Lucchesi
(resenha originalmente publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 2003)
(resenha originalmente publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 2003)
Escrever, para Marco Lucchesi, tem algo de conjura.
Num dos poemas de Sphera (Record, 2003), lê-se: “a cada folha / em
branco a cada / verso / inexistente / a baba do dragão / e o fero basilisco”. O
disforme, o caráter desordenado e monstruoso do mundo sem a escrita é o que
primeiro avulta neste pequeno poema em que se resume um dos principais
movimentos do livro. O mítico basilisco, que envenena os lugares por onde
passa, sendo morte física e emblema do diabo, é também dotado de um poder
supremo: o de matar com o olhar. “Fero basilisco”, por isso, é a expressão com
que é qualificada, no D. Quixote, uma pastora que, pela beleza, leva à
morte um apaixonado não correspondido. O envenenamento pelo disforme e a
sedução insuportável do muito belo são, portanto, os riscos, quando a poesia
não ordena ao menos a superfície do mundo.
Ao longo do livro, esse é o movimento principal:
“invoco / uma palavra / que me salve / dos extremos”. Mas tão eficaz é essa
convocação das palavras (não uma palavra especial, um mantra ou fórmula de
encantamento, mas a palavra em situação de poesia), que é em vão perguntar em
que consistem esses extremos: onde é o céu, onde o inferno desta poesia? Onde o
macho e a fêmea, o sol e a lua, a carne e o espírito, a dormência da morte e a
vontade de viver? Onde o aqui e o além? Em nenhum momento do livro se
apresentam imagens dos pólos em tensão. O transcendente não é um objeto de
desejo. É antes um desejo de transcendência sem objeto. A conjura do verso é,
por isso, desejo de apagamento e constatação de incomunicabilidade: “escrevo
sem / deixar vestígios / enquanto busco teus / sinais / ambíguos”.
Perto do final, retornam o dragão e o basilisco,
vestidos de nome moderno. Entre um evento de dimensões cósmicas e um ato
quotidiano, a desordem é outra vez conjurada pelo rapto da palavra que os
equaciona e, assim, reconhece e ordena por instantes: “a supernova / que brilha
pouco acima // do horizonte e o café / que se resfria sobre / a mesa: assim //
opera em todos / os quadrantes / a lei terrível da entropia”.
Esse equacionamento, essa reordenação se constata na
forma de arranjo das palavras, no corte dos versos e estrofes, nas quais o
vocabulário e as imagens equilibram o coloquial de hoje, o verbo imantado pela
lírica camoniana e os rastros da simbologia alquímica.
Os poemas breves, de aparente ritmo sincopado,
quando lidos em voz alta deixam sentir o alento da versificação tradicional,
firmando a cadência antiga que os organiza. Este, por exemplo: “abeira-se / do
abismo // com seus olhos / líquidos para saber / onde repousa // o nada // e
sempre esse desvão / essa caçada // que o aprisiona em / quedas imortais”.
Graficamente entrecortado, resolve-se em um alexandrino seguido de três
decassílabos: “abeira-se do abismo com seus olhos líquidos, / para saber onde
repousa o nada; / e sempre esse desvão, essa caçada / que o aprisiona em quedas
imortais”.
Lucchesi compõe, assim, com fios minimalistas da
tradição poética do ocidente, uma rede por onde escoa o fugidio, o inconstante,
em busca das constelações possíveis de sentido. Como uma aranha, pronta a
recompor a teia esgarçada, o poeta se apresenta como consciência expectante, no
centro do livro, medindo e ponderando os abalos repetidos do desenho, enquanto
contempla o vazio sobre o qual se sustenta a sua leve geometria.
Da sua maneira, é uma busca pelo Éden. Mas o que
resulta é um “gélido jardim”. A fuga do disforme, do olhar paralisante do
basilisco, dos pequenos poderes torturantes que habitam o presente, será apenas
um entregar-se mais rápido ao deserto iluminado, cheio de olhos e de vozes que
apenas assopram, por pouco tempo, a poeira informe.
A impressão final é a de que se trata de um livro no
qual a totalidade se exibe aos pedaços. Melhor dizendo, é um livro em que o
desejo de totalidade se apresenta como pedaços, como uma série de pequenos
triunfos transitórios, cristalizados nos poemas. O voluntário aspecto de
fragmento é, assim, antes um efeito, um recuo estratégico da voz que,
melancólica, conforma o impossível nos ritmos antigos, do que uma confissão de
incapacidade de apreender uma totalidade percebida como inapreensível.
Nesse sentido, a fisionomia resultante é clássica. O
tom do livro é um estoicismo mitigado. E a erudição que o anima é o conforto
possível: o da conversação inteligente, agradável, à margem do abismo, cuja
presença ao mesmo tempo exige e rarefaz as palavras que são ditas.
A ossatura do livro não é dada tanto pelo arranjo
dos poemas, quanto pela ocorrência, em intervalos bastante regulares, de cinco
sonetos de rigoroso corte clássico que, em média a cada nove poemas, erguem-se,
como colunas de apoio ou suma dos momentos que os precedem. Assinalam, em
registro alto, a coleta das experiências e descrevem a progressão de uma obra
alquímica que, aparentemente, não se realiza. Ou então se cumpre apenas como
intenção e falência, pois, como se lê no último soneto do volume, a “palavra
despojada e cristalina”, resultado da grande obra, se perde na corrente das
águas que se afastam da fonte. Que a sua ausência seja tomada como testemunho
da existência de um deus impossível de ser identificado ou compreendido diz
muito sobre a teologia, ou sobre o anseio por sentido teológico, que anima este
volume.
Lidos isoladamente, os sonetos não responderão
talvez pelo há de melhor no livro. Marcando o ritmo das páginas, rodeados pelos
textos breves, que fluem de uma página para a outra, eles funcionam como
lugares de chegada. E, como pontos de chegada, são mais temáticos do que
formais, menos simbólicos do que rítmicos. Mas com o seu ostensivo andamento
tradicional e com o seu vocabulário em que há algo de cediço, retirando dos
demais poemas a sua própria força, são eles, no final das contas, os pontos
luminosos que definem o contorno possível dessa Sphera. Vista de fora,
ela não espelha a vertigem frente à máquina do mundo, nem o pavor face ao
desmedido das vastas esferas estreladas. Apenas revolve, sem muito alarde,
fugazes constelações, nas quais operam e se refletem o acaso e a nostalgia da
totalidade num mundo desabitado pelos deuses.
terça-feira, 22 de outubro de 2013
Leitura de um poema de Camilo Pessanha
Leitura de um poema de Camilo Pessanha [1]
Ó cores
virtuais que jazeis subterrâneas,
-
Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados
clarões, cromáticas vesânias -,
No limbo
onde esperais a luz que vos batize,
As
pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.
Abortos
que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão
graves de cismar, nos bocais dos museus,
E
escutando o correr da água na clepsidra,
Vagamente
sorris, resignados e ateus,
Cessai de
cogitar, o abismo não sondeis.
Gemebundo
arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda
a noite errais, doces almas penando,
E as asas
lacerais na aresta dos telhados,
E no
vento expirais em um queixume brando,
Adormecei. Não suspireis. Não respireis.
Clepsidra é o nome que tem
sido dado às coleções possíveis de versos de Camilo Pessanha. Uma ordenação
significativa autorizada pelo poeta parece ser algo irremediavelmente perdido,
se é que alguma vez existiu. E se existiu, dificilmente terá sido integrada por
todos os poemas que até hoje os vários editores foram reunindo sob o título
emblemático do lugar de escoamento da água, imagem e medida do transcurso
ininterrupto do tempo.
Entretanto, do que talvez tivesse
sido um desenho de conjunto, um projeto do livro dos versos de Pessanha, restam
duas balizas: uma quadra em que um “eu” afirma o desejo de “no chão sumir-se,
como faz um verme” e esta invocação dos estranhos interlocutores que só a voz
do poeta constitui em existência. Quanto ao lugar inaugural da quadra
denominada, por alguns, “Inscrição”, não há prova documental, apenas a tradição
das várias edições e a coerência de lugar e de sentido. Já o presente poema foi
identificado pelo próprio poeta, numa versão preliminar, como a “última página
de um livro em tempos delineado”.
Ganham, pois, os poemas com a
leitura conjunta, que ressalta o desejo de trânsito entre superfície e
profundeza, entre o interior e o exterior da terra. Na quadra, a languidez da
alma produz o desejo de “deslizar sem ruído”, de desaparecer por meio de um
mergulho regressivo, que supõe a perda das defesas e das características
humanas. Neste, o movimento começa com o anseio das cores subterrâneas pelo
batismo da luz que lhes dê existência – portanto, com o desejo de emergir da
terra que as recobre – e prossegue com a apresentação/invocação de outros seres
que ainda não chegaram a existir e que aparecem situados em graus crescentes de
afastamento do solo: primeiro, os abortos nas prateleiras ou nas mesas dos
museus; depois, os sonhos, à beira dos telhados.
Ressalta também, da leitura
conjunta, o lugar em que se situa a voz lírica, que é o lugar da consciência do
desejo. Lugar analítico por excelência. No primeiro caso, o da quadra, o desejo
é do próprio sujeito que o expressa: desejo de inconsciência, de alívio de uma
situação que é sentida como destino, como efeito de uma circunstância de ordem
mais ampla: “eu vi a luz em um país perdido”. No caso do poema final, o desejo
é atribuído ao interlocutor. A voz lírica é o lugar da experiência que
aconselha justamente a cessação do desejo. Este, por sua vez, tem um lugar
aporético: é o desejo de existir, postulado como origem da frustração e da dor
de seres ainda inexistentes, ou já não existentes.
Na primeira estrofe, as cores
virtuais, ao jazerem enterradas, forçam a percepção de que a base metafórica
são os fenômenos da decomposição orgânica: a loucura produtora de alucinações
coloridas, a expectoração dos tuberculosos e o fogo-fátuo. O procedimento
lembra a morbidez irônica de outros versos. Aqueles nos quais as várias
substâncias geradas pela putrefação dos cadáveres são objeto de contemplação,
como produtoras de formas e de cores: “putrescina! – flor de lilás! /
cadaverina! – branca flor do espinheiro!”. A possibilidade da leitura é
reforçada pelo verso 4, que traz as imagens complementares do limbo e do
batismo, em relação inversa. A decepção da esperança de fuga do lugar de
inércia, por meio do ritual que se destina justamente a evitá-lo, contribui
para o adensamento agônico da materialidade corporal das imagens, além de
preparar a menção aos natimortos que comparecerão logo adiante no poema. O
verso 5, destacado espacialmente dos anteriores, dos quais é entretanto a
seqüência sintática, nos põe de súbito em face dos olhos dos enterrados, aos
quais se aconselha que se fechem finalmente, sem esperança de término da
vigília dolorosamente empreendida.
Na estrofe seguinte, a apóstrofe
se dirige aos que não nasceram, mas cujos corpos se preservam incompletos,
intactos, modificados apenas na coloração. Habitantes de outro limbo, o
asséptico dos museus, são explicitamente afastados, pela negação, de Deus. Seu
mundo não é o da expansão das cores, mas o da concentração sonora. Não é o da
terra, a que deve retornar o pó; mas o da água. E a força da estrofe provém em
grande parte do contraste entre as duas imagens da água, uma explícita e outra
implícita. Explícita é a água que corre na clepsidra: o tempo que flui. Implícita
é a água parada, o líquido em que flutuam os corpos metidos nos frascos, na
paralisação do fluxo vital interrompido. Embora sejam também figurações da
impossibilidade de uma consciência sem vida, contrastam os abortos com as cores
virtuais: sem ansiedade, sem esperança de redenção, ouvem resignados e talvez
irônicos a passagem do tempo, a que já estão imunes. Ecoam, com o seu vago
sorriso confinado nos invólucros de vidro, um outro poema de Pessanha, que
também é estruturado sobre a imagem paradoxal do cadáver consciente e
reflexivo: o morto que se ri do fato de que nada do que passa sobre a sua
sepultura lhe dói minimamente. A esses a voz lírica aconselha a cessação da
atenção e da busca de respostas.
Neste momento do poema, as duas
pontas do ser orgânico foram interpeladas: aquela em que a vida ainda não se
realizou plenamente, imagem de um momento congelado, de promessa sem
realização; e aquela em que o ser, já passado o momento da morte (no qual um
outro seu texto via o surgimento de um aspecto de “imortal serenidade”), se
desfaz na escuridão da tumba, esporadicamente cortada de clarões e cores sem
esperança de redenção. Entre elas se deve situar logicamente o espaço da vida.
Se assim for, ela aqui é identificada ao sonho, e seu grau de irrealidade e indefinição
acaba por parecer maior do que o dos momentos terminais.
No terceiro bloco, interpelam-se
os “sonhos não sonhados”. Do ponto de vista da construção metafórica,
completa-se o quadro lúgubre do poema, juntando a imagem das almas penadas à
das aves noturnas que se ferem de morte contra os limites da casa, e encarnam
mais explicitamente o anseio, já marcado de dor, pela existência. Noturna, não
há nessa estrofe nenhuma menção de cor. Em compensação, é o mais sonoro dos
três blocos em que se divide o poema. Não apenas porque refere o arrulhar, a
expiração e os queixumes dos sonhos, ou bater das suas asas nas arestas dos
telhados. Mas principalmente porque a estrofe toda se eriça de aliterações e
assonâncias e, principalmente, porque uma mesma rima de grande sonoridade
retoma e sistematiza o procedimento (inaugurado na primeira estrofe) de
explorar a cesura do alexandrino: virtuais, esperais, (cerrai), errais,
lacerais, expirais. Essas três últimas palavras, ecoando os seus “ais” na sexta
sílaba de três versos seguidos, martelam a gradação das ações atribuídas aos
sonhos, mostrando que mesmo aquilo que não chegou a existir (os sonhos que não
foram sequer sonhados), aquilo que poderia ser descrito, portanto, como pura
potência sem ato, tem um périplo de sofrimento e morte. Nesse sentido, o poema
vai num crescendo: a relação desejo/dor vai sendo vazada em imagens de
materialidade crescente. À medida que prossegue a leitura, mais intensa se
torna a presença do desejo de vida e mais intensa parece a dor que surge
associada a ele.
Para essa percepção de
intensidade contribui a leitura do verso final, que, diferentemente do padrão
estabelecido nos blocos estróficos anteriores, não é sintaticamente bipartido,
mas tripartido. Como os anteriores, abre-se com um imperativo afirmativo, a que
se segue um negativo. A diferença é que há agora duas frases de ordem negativa,
e que a sua forma de construção coloca em destaque – pela repetição do mesmo
padrão métrico (o péon quarto), da estrutura sintática e da pontuação – a palavra
de negação.
A tripartição do verso final
também encerra uma gradação de intensidade: o sono, a ausência de reação à dor,
a parada da respiração. É a morte absoluta, afinal, o conselho que aqui se
cristaliza, após ter sido preparado pelos versos isolados após cada quarteto. E
o que a morte absoluta significa, neste quadro particular, em que os
interlocutores não estão vivos, é a cessação do paradoxal desejo de existir.
Os seres interpelados nos três
blocos do poema ocupam espaços simbólicos diferentes e bem delimitados. Os
primeiros se situam num espaço de exterioridade inominada, apenas referida
metaforicamente como “limbo”, cujo elemento é a terra. Confinados, seu desejo
de redenção se manifesta também como desejo de exteriorização, de subida em direção
ao ar e à luz. Os terceiros, ao que parece, localizam-se no espaço privado da
casa, do lar. Associados aos pombos que habitam os beirais, o limiar da
exterioridade, seu desejo de serem sonhados é também o desejo de passarem à
interioridade do espaço íntimo, e sua permanência na virtualidade é também a
sua condenação à morte no espaço da exterioridade da noite e do vento.
Já os segundos se situam no
espaço social, público e controlado do museu. O elemento predominante na
estrofe que os apresenta é a água. Mas neles mesmos não há movimento, nem
anseio por movimento. Imagens da quietude desesperançada, os abortos comparecem
como o momento do equilíbrio possível. Oferecendo-se quietamente como
espetáculo visual, dotados da materialidade que falta aos outros interlocutores
da voz lírica, os não-nascidos parecem imunes à esperança e à dor do anseio
pela existência. Nesse sentido, são o equilíbrio possível no quadro do poema.
Por uma carta juvenil, sabe-se
que, em algum momento, Pessanha pensou em organizar o conjunto dos seus poemas
segundo um desenho temático centrado no tema do desejo e do prazer (realização
possível e destruição do desejo). A leitura seqüencial conduziria à constatação
de que lutar pelo prazer é o mesmo que lutar pela extinção do desejo e pela
morte. A vida, portanto, era identificada ao momento tenso, cheio de energia e
de dor, no qual a carência move em direção a um objeto, cuja posse dissipa a
tensão e é sempre deceptiva em si mesma. Talvez por isso a vontade de fixar,
preservar ou celebrar o momento anterior à realização do desejo seja um dos
motores da lírica de Pessanha, responsável por alguns dos seus poemas mais
célebres. Uma das suas melhores concretizações é o soneto que começa “Depois da
luta e depois da conquista”. Mas já neste poema final, escrito para encerrar o
conjunto dos seus versos, o desejo em busca de realização é objeto apenas de
piedade. Não se fixa heroicamente, como idealidade solar fadada ao
obscurecimento e à decomposição; nem se celebra como furor, como febre que
produz imagens irreais de integração, como no díptico iniciado pelo soneto
“Desce em folhedos tenros a colina”. Pelo contrário, num poema em que o
elemento ‘fogo’ é o grande ausente, o momento da luz possível entre as duas
cenas noturnas de sofrimento desejante é o momento em que repousam,
indiferentes ao correr do tempo, os abortos desprovidos de transcendência.
Pessanha escreveu certa vez que,
apesar do progresso da ciência, permanecerá intocado um espaço incognoscível,
“da beira de cujo abismo as almas meditativas continuarão, por todo o sempre, a
debruçar-se terrificadas e ansiosas”. Era uma frase que situava o espaço da
poesia, indicando a condição da sua continuidade num mundo dominado pelo
conhecimento positivo.
Nesse quadro, se este poema foi escrito para encerrar o livro que reuniria os
poemas de Camilo Pessanha, ressalta agora que a imagem da estrofe central pode
ser lida como uma figuração irônica da própria condição do pensamento
filosófico ou poético. Irônica não apenas porque todo o poema ecoa e enfeixa os
fios principais da lírica de Pessanha e porque nessa estrofe particular
comparece, pela única vez, a palavra que denominaria o conjunto dos seus
versos, mas também porque reúne, no espaço da curiosidade científica e do
didatismo, os temas constantes ao longo de alguns dos seus melhores versos: a
construção da imagem do desejo congelado antes da realização, a cisma sobre o
abismo do incognoscível e a descrença na transcendência, que permitiria fugir à
fragmentação e redimir o desejo, apontando-lhe um fim que não fosse a própria e
estéril extinção
[1]
Este texto foi publicado no volume Século
de Ouro – antologia crítica da poesia portuguesa do século XX, organizado
por Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra e lançado pelas editoras Angelus
Novus e Cotovia, em 2002.
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