sábado, 1 de julho de 2023

Perfis 9: Jorge Ruedas de la Serna


Conheci-o duas vezes. Na primeira foi uma apresentação formal. Ele vinha para uma banca. Acompanhava-o uma moça de beleza peregrina, como se dizia no século XIX. Demorou-se pouco tempo. Na segunda vez, ficamos amigos. Reconhecemo-nos em situação semelhante, machucados. A garota linda tinha ido peregrinar em outras plagas. Ouvi-o com o coração aberto, sentindo os rebotes da tristeza. Depois disso, nas idas ao México, por conta da editora, nos víamos seguramente ao menos uma vez por ano. Era um homem muito alto, coisa rara no seu país, de fala mansa e pausada, pontuada de expressivos movimentos dos olhos esbugalhados, que pareciam querer saltar sobre o interlocutor. Sofria de diabetes, mas a tequila no México e a caipirinha no Brasil eram fatais. Gostava de o ouvir falar de mulheres, com carinho, fascinação e forte tempero de gulodice. Em muitas ocasiões, entre uma frase bem pensada, um copo e o seguinte, vi seus olhos se derramarem. Eu ainda não o conhecia, nem ouvira falar dele, quando defendi minha tese no mesmo dia, horário e local em que ele se doutorava. Quis o destino que ele fosse o último orientando de Antonio Candido, e que a sua defesa fosse, por isso,  a última à qual o Professor compareceria – ou seja, a sua derradeira despedida da universidade. De modo que toda a possível audiência da minha tese foi logo se aglutinar no salão nobre, com gente saindo pelo ladrão, enquanto na minha pequena sala esvaziada apenas a família e uma colega fiel do departamento assistiram à arguição. Em certo momento, pensei que a banca se lamentava intimamente por não poder ir também prestar homenagem a Antonio Candido. E confesso que eu mesmo iria, se pudesse. Foi Candido, porém, na sequência, quem mais nos aproximou, pois Jorge coordenou um congresso sobre a sua obra, cujas atas publicamos pela Editora da Unicamp. A premiação com o Jabuti foi motivo de uma grande festa, num bom restaurante em São Paulo. Jorge estava na ocasião com outra musa, que em breve deixaria de sê-lo. E eu o acompanhava nisso também. Foi lá que mais o vi chorar, sobre os copos da caipirinha, e como tudo fosse alegria, na cabeça e no coração, deduzi que em outras ocasiões eu interpretara mal a fisiologia das lágrimas. Jorge era apaixonado pelo Brasil. E pelo México. Sua afeição por Antonio Candido era tão notável quanto a sua fidelidade. E como fôssemos amigos, várias vezes fez o papel de intermediário nos recados. Sonhava fazer, no seu país, algo semelhante ao que fez aqui o Professor, ao descrever os momentos decisivos. Por isso se dedicou nos últimos anos a narrar a formação da literatura mexicana. Quando deixei a Editora, já não tinha como fazer-lhe a visita anual, a caminho da Feira de Guadalajara. Ele também deixou de vir, por conta de problemas de saúde. Recebi certa noite, pelo aplicativo de mensagens do Facebook, a notícia de sua morte. Ainda pensei um dia voltar à cidade dele, prestar-lhe uma última homenagem; mas veio o mau destino e fez de mim o que quis, como no poema de Manuel Bandeira. Um dia desses, num final de tarde luminoso, ergui um copo com a tequila de que ele mais gostava. Senti o aroma, o gosto e o efeito. E redigi esta lembrança.

sábado, 10 de junho de 2023

Perfis 8 - Jesus Antônio Durigan

    Jesus baixou à Unicamp sem anúncio nem pompa, por via incerta. Veio com uma mala de viagem estruturalista, e fortes tatuagens da passagem de Greimas pelo Brasil. Se bem me lembro, era bom professor, sistemático, cumpridor. Depois, foi diretor do Instituto, na sequência do episódio da intervenção malufista que depôs Carlos Franchi. E foi, como nos cursos que ministrou, fiel cumpridor do que lhe cumpria pensar e fazer. As lembranças mais claras que dele tenho, porém, não são da sala de aula. Fui seu aluno e de tudo o que ali falamos ficou-me apenas a lembrança de uma ardida discussão sobre um texto de Edgar Morin. Recordo-me bem, isso sim, de seu livrinho sobre o erotismo, que teve destaque na época. Mas não só, para minha surpresa: quando comecei a pensar em fazer este perfil, percebi que havia mais, nalgum canto empoeirado da memória. Era algo sobre pecado e sobre narrativa. Abanando a mente com o Google, varrendo a internet por “pecado” + “Jesus” + “Greimas” surgiu-me logo na tela do notebook o artigo de 1984. Não vou dizer que o reli agora há pouco com grande interesse, embora a releitura não fosse desinteressante. Assim como o vestuário sofre com a passagem do tempo (pela época da redação, creio que ainda se teimasse nas calças boca-de-sino e nos sapatos de plataforma), as modas teóricas resistem mal ao progresso do calendário. Será que o guardei por conta do título algo pomposo, que à época não viria despido, para mim, de alguma comicidade? A “ciência do discurso”? Creio que não. Talvez então tenha sido por conta da nota, em que a personalidade do autor se revela junto com as tensões do tempo? Pode ser, porque embora os organizadores se esforçassem por registrar, com a honestidade devida da modalização, que “aparecem aqui lado a lado tanto trabalhos teóricos quanto estudos particularizados (...), num exemplo razoável de coexistência pacífica”, a verdade é que Jesus era um estranho no ninho candidiano e devia sentir-se todo o tempo como tal: “Escrito em 1975, este trabalho se propunha a participar das discussões que se realizavam na época. Muita coisa mudou de lá para cá. Curiosamente, o trabalho foi policopiado e lido por amigos e inimigos. Talvez ainda se preste a fofocas. Por isso, foi mantido na sua versão original.” Enquanto tentava retraçar o perfil moral do homem, o que se me impôs foi o seu perfil físico. Ou melhor, a sua silhueta, inconfundível para quem a tivesse divisado alguma vez no corredor das salas de docentes do IEL. Para quem não conheceu o velho pavilhão, devo dizer que era um pouco soturno. Escuro, atravessado por um corredor comprido, ladeado de salas quase sempre fechadas, com uma grande porta de vidro em cada extremidade, tinha a propriedade de nos acostumar às sombras, e de treinar a vista para reconhecer o desenho projetado do corpo de quem vinha por uma das pontas quando estávamos no meio. Jesus tinha longas pernas arqueadas, como de vaqueiro. Pernas de alicate, como se dizia na minha terra. Ver a sua sombra caminhar num tipo de gingado na nossa direção, na semiobscuridade daquela miúda caverna, gerava alguma tensão, e era fácil imaginar, emergindo do fundo da tela, uma das muitas memoráveis trilhas de Ennio Morricone. Creio que poderíamos ter sido amigos, apesar da diferença de estatuto e de idade. Afinal, éramos ambos caipiras do interior, tínhamos a mesma origem veneziana. O que nos garantia um sotaque comum e, mais do que o sotaque, aquela entonação de quem foi criado com macarronada e frango assado aos domingos, sob a dupla sombra do crucifixo e da Comédia. Mas a verdade é que nunca fomos próximos. Jesus parecia ter, por assim dizer, o physique du rôle para cavalgar a burocracia: logo, de diretor do Instituto passou à presidência (ou direção executiva, não estou seguro) da fundação da Unicamp. Creio que foi a saída que encontrou. Mas não continuou muito tempo nessa estrada e se recolheu. No final da sua temporada no IEL, ainda gostava de o encontrar, quando percorria semanalmente outra longa estrada, de Franca (eu acho que era Franca), para dar as últimas aulas necessárias à aposentadoria. De alguma forma me identificava muito vagamente com ele. Principalmente nos primeiros tempos, em que eu tinha a impressão de que não pertencia àquele ambiente, não conseguiria me mover ou crescer dentro das fronteiras demarcadas. Ambos ansiávamos, eu acho, pela largueza dos campos gerais, em vez do canteiro bem cercado. Com o tempo, devo ter me acostumado (ou talvez a horta tenha crescido e se multiplicado), embora até hoje suspeite que aquele não foi para mim o melhor terreno. Para ele, olhando desde este ponto do tempo, tenho cada vez maior convicção de que não foi. 

7 Perfis

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sexta-feira, 9 de junho de 2023

Memória: editora

 Alguém me pede que compartilhe mais memórias editoriais. Não tenho muitas. E as que tenho talvez não devesse contar. Não por razão obscura ou constrangedora, mas por insignificantes para quem não for do meio. Entretanto, quando pensava em dizer que não me veio à mente um episódio interessante, veio. E começa assim: quando assumi a Editora da Unicamp não tínhamos recursos para nada. Não que o catálogo fosse ruim. A parte melhor, porém, estava esgotada ou ainda por publicar. Sem recursos nem pessoal, parecia que o fim daquela jornada chegava junto com o seu começo. Foram dias em que o ditado se comprovou: a criatividade é filha da necessidade. Ou seria esta a mãe daquela. O que dá, rigorosamente no mesmo, sendo a diferença o grau de angústia ou de otimismo a presidir à construção da frase. O episódio em questão era que tínhamos uma coleção promissora, que andava a meio do caminho. Chamava-se “História do Marxismo no Brasil”. Sem julgamento de qualidade ou competência, devo dizer que na direção da Editora logo percebi que havia dois tipos de leitores abundantes ou persistentes: os marxistas e os linguistas. Então era urgente levar adiante a empreitada que se dirigia aos primeiros. Ocorre que os volumes já editados apresentavam problemas variados em qualidade e quantidade: desde a revisão até a capa, passando pela diagramação. Eram tempos difíceis, da Forma Composer e do fotolito. Redigitar e rediagramar parecia impossível, além de muito lento. Continuar a coleção com o projeto de capa e o design antigo estava além da minha resignação aos tormentos do cargo. Foi então que a filha surgiu da mãe, isto é, a criatividade nasceu da necessidade. Não de um salto, como Diana da coxa de Júpiter, mas aos poucos. Primeiro vi que eu tinha visto muito mais capas de livros do que os tinha lido. Depois, tirando por mim, leitor mediano, concluí que milhares de pessoas veriam os livros da Editora, enquanto só 1000 ou 1500, na melhor hipótese, os comprariam. Portanto, era urgente eliminar a velha capa e arrumar um vestuário mais adequado. A ideia foi cozinhada de uma perspectiva progressiva: era preciso garantir a inteireza da coleção. Não apenas por motivo estético, mas também comercial: uma coleção que se apresenta como tal parece nos induzir, a nós, leitores, a completá-la. Seriam muitos volumes, o que justificava ainda mais o pensamento na penúria. Por fim, abriu-se o ovo de Colombo e nasceu a ideia inteira, a piar de alegria: uma capa bem feita, chamativa sem ser escandalosa, como convinha ao assunto, mas capa de coleção, não de volumes. E já agora a ideia, como um galo, lançava o seu brado de alvorecer: quando a coleção se alinhasse na estante do comprador, ele teria uma surpresa – o rosto de Marx surgiria, indiscutido, da junção das lombadas. Pronto, pensei, quem se arriscaria a deixar de fora uma fatia de tal face? Restava ainda um problema: como fazer com os miolos antigos que iriam se enfeixar no rosto marxista? Não me lembro, ou é melhor que não me lembre, se imprimimos todos os volumes antigos, mesmo com a feia diagramação e com todas as gralhas, só alterando a capa. Ou , o que seria inconfessável e portanto não vou confessar aqui, se chegamos mesmo a desencapar os volumes não vendidos para os vender rapidamente com o novo rosto. Mas afirmo com a voz de testemunha confiável que a coleção foi um sucesso e com o tempo, se tivermos por acaso chegado ao absurdo de reencapar livros, todos os volumes foram corrigidos, rediagramados e refeitos. O que afinal desmente outro ditado, pois se é verdade que não há mal que sempre dure, não é certo – ao menos no caso dessa boa coleção - que não haja bem nunca se acabe.

*

 Este pequeno palco, dizem, está com os dias contados. Houve quem o comparasse certa vez a um privado outdoor. Não me lembro bem, mas creio que a ideia era que o dono o rabiscaria à noite e o poria no terreno na frente da casa. No dia seguinte, tomaria seu café e sairia para a varanda. O minúsculo grupo ou a pequena multidão aglomerada à frente ou apenas de passagem dava o tônus e a perspectiva do dia, antes da segunda xícara. Se não era assim, poderia ser dessa maneira. Pelo menos, é como o recordo agora. Mas  outras formas crescem ao lado, lançam sobre ele a sombra sufocante, pura imagem. Veja, me dizem: as folhas da grama ainda balançam no vento. Na planície ondulada cada uma é, olhando bem, um pequeno outdoor, o minúsculo palco individual! Mas quem as distingue ou repara nas que caem? Devo dizer que também eu, nesta floresta de teto baixo, gemo e aguardo os ecos dos gemidos, que de longe se confundem. Na mesma tenebrosa unidade, poderia sempre dizer: mas não a dos eleitos e malditos, na profundidade, apenas a dos comuns, no raso. Os que não têm onde respirar, os inconformados invisíveis, os graduados na escala solitária, conscientes em medida vária, ou amortecidos, adormecidos talvez em pesadelo. Nesse incessante debater-se, o pequeno palco suga e supre. Ainda assim, já parece que perde a força. Parece mesmo condenado a desaparecer.

sábado, 3 de junho de 2023

Racismo?

 Itamar Vieira Júnior escreveu um texto sobre Vini Júnior. Nele, o escritor, a pretexto de manifestar solidariedade ao jogador, contesta uma crítica ao seu novo romance. Diz ele:


“Acabei de colocar um romance na rua e nele mais uma vez segui meu propósito de narrar a história da minha gente, daqueles que me antecederam e daqueles que me cercam. Estou no meio literário há pouco tempo, mas já acumulei repertório suficiente para escrever uma etnografia desse grupo. É claro que eu esperava racismo por minha insubordinação de continuar a escrever. Esperava que alguém me lembrasse, como o professor branco, que meus pés jamais deveriam ter deixado a senzala.”

“Então vou contar para vocês os adjetivos que ganhei de uma professora branca em redes sociais simplesmente porque decidi ignorar a "cusparada": "sujeito" (alguém inferior que não pertence à sua classe e raça), "arrogante" (já vi o mesmo adjetivo destinado a outros corpos negros altivos, como Djamila Ribeiro, Luiza Bairros e Silvio Almeida) e "preguiçoso mental" (será que é um insulto xenófobo por eu ter nascido e ainda viver na Bahia?).”


Curioso, fui atrás do quiproquó. 


Li, primeiro, o texto de Lígia G. Diniz. E, nele, estes trechos que devem ter irritado sobremaneira o escritor:


“Talvez, no entanto, a literatura de Itamar Vieira Junior encarne, mais do que qualquer outra no país, o espírito do tempo, e isso as vendas mostrarão melhor do que uma resenha. É mesmo um mérito saber sintetizar assim uma tendência. Para a literatura brasileira, porém, esse sucesso aponta o status enfraquecido da ficção imaginativa e o triunfo da narrativa didática e moralizante, que se esquiva da complexidade humana e finca o pé na prescrição de como o mundo deve ser encarado.

Não se trata só de sucesso de público, no entanto, e é preciso refletir acerca das razões para que esse tipo de literatura obtenha tanto espaço institucional — dos prêmios à atenção recebida pela mídia, o que inclui esta longa resenha. É frustrante que essas razões apontem para o caminho do autoflagelo fácil, e nada produtivo, de uma elite ilustrada que, para expurgar a culpa por seus privilégios, celebra narrativas maniqueístas (e, ironicamente, muito cristãs) em que miséria é sinônimo de virtude, e a desigualdade brasileira se explica pelas ações de monstros muito, muito malvados.”


É verdade que a autora da crítica, a julgar pela foto dela numa rede social, é branca. Mais que branca, pelo que vi: é ruiva e tem olhos claros. O que talvez, de um certo ponto de vista, a desqualifique de uma vez por todas para tratar do texto de um homem pardo. (Penso agora que talvez eu mesmo, apesar de não ser totalmente branco na Europa por conta da costela árabe, sendo suficientemente branco aqui, devesse ser forçado a calar a boca nesse caso.)


Aliás, “calar a boca” foi o motivo da tal briga em rede social a que alude Itamar. E foi assim: ele bloqueou a crítica numa das suas redes, e ela reclamou disso em público. Foi aí que disse que a recusa dele à crítica era preguiça mental e que o bloqueio foi prova de arrogância. Ele, por sua vez, na Folha, equiparou essa reclamação aos insultos recebidos por Vini Jr. e logo traduziu tudo em clave identitária. Afinal, além de ela ser branca, o editor da Quatro Cinco Um (segundo Itamar, pois eu não conheço ninguém ali) é branco!


Ora, mesmo correndo o risco de também ser equiparado à torcida espanhola que xingava Vini Jr. de macaco, devo dizer que a crítica da Lígia me pareceu rigorosa, coerente e sem ponta de racismo. 


Por isso mesmo, creio que o Itamar, ao equipará-la aos torcedores espanhóis e ao se comparar ao Vini Jr. apenas reforça, confirma a propriedade da crítica que ela faz nos parágrafos transcritos. 


Ou seja, sem absorver a crítica, ele optou por bloquear a autora dela, tirar-lhe o direito de fala no perfil dele, o que deve parecer grave para os que frequentam esse universo fervente que são as redes sociais. Caindo ela na esparrela de reclamar, Itamar conseguiu a resposta mais fácil e lucrativa ao texto dela: tratou logo de se engatar no Vini Jr, surfar na onda e faturar. Com um ganho adicional, qual seja o de prevenir-se de futuras críticas de pessoas não-negras ou não-pardas. Como quem diz: - olha aqui, brancos e brancas: vocês podem ler os meus livros, mas a atitude correta que lhes cabe é fazer logo um ato de contrição e calar a boca sobre qualquer reparo que queiram fazer aos meus produtos, seus racistas!

terça-feira, 30 de maio de 2023

Memória - Teoria


Quando cursei Letras em Araraquara, de 1972 a 1975, o curso era anual e havia, se bem me recordo, duas disciplinas de Teoria da Literatura. No primeiro, tínhamos uma matéria de caráter introdutório; no quarto, um aprofundamento. Isso em princípio. O modelo em tudo era a USP.
Lá, no mesmo ano em que publicou Formação da literatura brasileira, Antonio Candido tinha proposto a criação de uma cadeira intitulada “Teoria Geral da Literatura”, que respondia por duas disciplinas com o perfil incorporado em Araraquara.
Observando os programas da disciplina de primeiro ano da USP em 1961 e 1964, percebe-se algo interessante, que tem a ver com esta memória. O de 1961, intitulado “Introdução ao Estudo da Literatura”, parece inspirado no livro de Wolfgang Kayser. Já o de 1964 se intitula “Introdução à Teoria Literária” e traz as marcas do livro de Wellek, inclusive na dicotomia de “fatores externos” e “fatores internos”. A mesma guinada apresentam os programas dos cursos de quarto ano, sendo o de 1961 intitulado “Análise crítica do romance”; e o de 1964, “Estudo analítico do poema”.
Em Araraquara, já na década seguinte, o primeiro ano era puro Wellek. Não de forma mediada, mas direta. O livro dele era como uma bíblia e durante todo o ano foi nossa única leitura, capítulo a capítulo, com atenção quase religiosa ao anátema dos vícios de atribuir protagonismo aos “fatores externos”. Já o quarto ano era outro testemunho eloquente dos novos tempos. Eu tive a esperança de cursar com Adolfo Casais Monteiro, mas essa esperança foi a primeira a morrer: ele se foi justamente em meados do ano em que ingressei. Coube então a um veterano professor, muito versado nos clássicos, a disciplina que coroaria os esforços de pensamento teórico, mas aqui vem o testemunho: o homem já se convertera às modas linguísticas e só havia fatores internos, de Jakobson, de Propp e já não me lembro quantos outros.
Na sequência de estudos, fui cursar mestrado na Unicamp, num departamento intitulado justamente “Teoria Literária”, fundado por Antonio Candido e habitado por seus orientandos. Com uma curiosidade: toda a componente literária do curso de Letras era abrigada sob essa rubrica, não havendo a tradicional divisão departamental entre letras vernáculas, clássicas e modernas. Nem mais enfoque comparativo, pois só estavam previstos cursos de literaturas vernáculas. Situação essa de proeminência absoluta, oposta à da USP, de onde nos vinha o fundador e seus discípulos, pois lá se mantinha a divisão tradicional e a Teoria Literária ficava numa posição engraçada, meio marginal, num departamento intitulado “Linguística e Línguas Orientais”. Situação essa oficialmente resolvida apenas em 1990, quando a disciplina finalmente deu nome a um departamento.
Veio esta memória por conta de ter recebido de meu amigo Osvaldo Silvestre o programa de um colóquio sobre a Teoria da Literatura no Brasil. Olhando-o não pude evitar refletir que por esse nome se pode aqui mais propriamente designar a disciplina escolar do que a atividade propriamente teórica, que sempre me pareceu rigorosamente derivada. A não ser que se possa esticar o uso da palavra ou expressão, por exemplo falando em teoria implícita na obra de um autor.
Mas voltando à memória, confesso que ela pode muito, mas não pode tudo. Para os detalhes, precisa do escrito. No caso, para preenchê-la no que diz respeito à USP, recorri a um artigo bem ilustrativo de Sandra Nitrini, publicado em “Literatura e Sociedade”, no segundo semestre de 2019.

quinta-feira, 25 de maio de 2023

poema 2

 no ar seco do meio da tarde

enquanto as uvas esticavam sua casca rija
e o sol fazia as pedras cantarem
na voz das cigarras
quando o pão sobre a mesa endurecido
aguardava a fome da mão que o partisse
não era assim desta maneira que eu deveria
nesta ocasião nem mesmo
minha mãe me ajude
o sol escuro se pondo no meu coração
o rio de sangue escorrendo devagar
até que o beba a terra ou o dissolva a água
elas também mães
das coisas vivas e das coisas mortas
ou com a casca do hábito
o trigo que aguarda o segador que cego caminha
esmagando sob os pés estas espigas gordas
e ainda a água que ocupa o lugar humilde
o côncavo que triunfa ao recolher
e nesta altura dos meus anos
entenderia o que me é dado
e em paz repetiria
“retira-te logo que a tua tarefa tenha terminado”
por fim até os assassinos podem
como podem os cães ferozes
e as mulheres que mataram os seus filhos
ou o raspar da corda no poço seco
a geada que desfolha o sono
e o meu corpo em revolta
contra a morte
contra o decair da carne
a sobrevida da vontade -
tudo sempre apenas este
o que ao meu lado flutua sem esforço
desconjuntado
distraindo num esgar
velho comparsa na descida.

poema 1

 Do mesmo velho caderno, esta imitação (eu creio) de Cesário Verde. Mas também com rastros de António Nobre (ao que parece).

.
Paisagem agradável com mendigos
A rua já se enfeita e sobe um burburinho
de festa e de alegria, no cair do sol.
As lojas como ostras sentem a maré,
a igreja pacifica, regurgita, e fecha.
Um novo botequim depois do que faliu,
uma história depois de uma lembrança triste.
Boa noite, uma ajuda, doutor, uma ajuda...
Sentindo que se aviva uma paixão defunta,
vejo as calçadas, as fachadas, essas praças,
enquanto sigo, bêbado, na rua errada.
E quando chego ao largo, as árvores enormes
balançam docemente à brisa da manhã.

Sobre ensino - maio 2023

 Devendo preparar uma conversa sobre ensino, fiquei refletindo como quem pensa em voz alta, só que por escrito.

 

Notas sobre ensino – 1

 

Numa aula de xadrez, pressupõe-se que o professor tenha grande conhecimento da arte. Numa dada posição, seu olhar pode divisar mais rápida e profundamente os pontos fortes e as fraquezas de cada lado e com base nisso escolher a estratégia ou a tática mais eficaz. Sei bem como é. No meu tempo, em Matão, os dois jogadores mais experientes podiam me demonstrar sua capacidade de jogo facilmente, porque numa configuração qualquer, de algum equilíbrio podiam me vencer assumindo qualquer dos lados do tabuleiro. A mim competia tentar igualá-los. Para isso ia aos livros. Além dos clássicos de abertura, em que disputavam minha atenção os livros do Panov e os do Ludek Pachman, meu preferido era “Estratégia moderna do xadrez”, desse último autor. O teste do rendimento da aprendizagem era invariavelmente o mesmo: comparar a minha capacidade de análise com a dos meus mestres e, quando fosse o caso, enfrentá-los no tabuleiro. Talvez tenha vindo daí a ideia persistente de que a um excelente professor, como eram os dois Biavas, não basta o conhecimento abstrato e a exposição dele. O momento de espanto, que provocava o estudo e estimulava a vontade de aprender, era sempre o da demonstração, em que se materializavam o conhecimento teórico e as lições da experiência. Penso que é assim que sucede nas artes tradicionais japonesas. Um professor tem de saber fazer o que ensina. De seu desempenho provém sua autoridade real. Da sua capacidade de mostrar pelo exemplo o que deve ser feito. Talvez por conta disso eu só tenha ousado conduzir oficinas de haicai quando percebi que meu conhecimento teórico e minha experiência prática permitiam que, na maior parte dos casos, eu pudesse sugerir (ouvindo o relato da pessoa que compôs o haicai apresentado a mim) uma forma mais eficaz ou mais justa de dar conta da intenção. 

 

 

Notas sobre ensino – 2

 

Talvez por conta do que contei no post anterior, sempre me debati (e ainda me debato) com uma questão prévia a toda a reflexão, mas bem difícil: o que ensina quem ensina literatura? E também, como uma derivação desta: como ensina, quem ensina literatura? É talvez mais fácil responder a outra questão, menos frequentemente formulada: o que aprendeu (ou teve de aprender ou deveria ter aprendido) quem ensina literatura? Digo que é talvez mais fácil porque a resposta pode ser mais imediata: quem ensina literatura deve, em primeiro lugar, ter construído um bom repertório de leituras. Mas de que leituras? Do meu ponto de vista, não só de leituras literárias, embora essas sejam o elemento mais importante, os alicerces do edifício. Dependendo do objeto, o repertório precisa ser ampliado. Filosofia, história, antropologia, psicologia, filologia, que mais? Também é preciso um repertório musical, sem dúvida. E por que não de pintura, escultura, arquitetura? E o cinema? E o que mais pudermos incluir no conceito vago de “cultura”. Mas a pergunta incômoda é mesmo a primeira: o que ensina quem ensina literatura. Não é filosofia, por certo; nem sociologia ou antropologia. Nem história, esse guarda-chuva tentador, que tantas vezes oferece abrigo ao se juntar ao restritivo “literária”.  Professores de literatura que se põem a ensinar psicanálise tendem a fazer um mau trabalho, no que diz respeito à psicanálise. Idem os que se metem com a filosofia ou sua história. E assim por diante. Aliás, ouvi já de algum malvado que os departamentos de literatura são lugares a partir dos quais pessoas podem ensinar o que não sabem ou conhecem pela rama, uma área onde alguém pode explicar o que mal conhece pelo que ignora ainda mais. Opinião que não posso dizer que endosse, embora dela não discorde inteiramente.

 

 

 Notas sobre ensino – 3

 

Mas então o que ensina quem se propõe a ensinar literatura? Quando eu mesmo me pergunto isso, a resposta é sempre a mesma: um professor de literatura é sobretudo um professor de leitura. Creio de fato nisto: ensinar literatura é ensinar a ler textos literários; ou, se se preferir, é ensinar a ler literariamente. Nesta última formulação se podem abrigar todos os chamados “dados contextuais”. Porque ler “literariamente” é, em primeiro lugar, do meu ponto de vista, estar atento ao texto, mergulhar nele e na sua rede de sentidos; o que implica, em medida vária, retraçar as referências, as citações, os intertextos, as alusões e aquilo que poderia denominar “biografia pública” do autor. Vê-lo em diálogo com outros tempos do seu texto, para assim aquilatar o que nele há de novo ou de mais bem sistematizado, em relação à média. Ler textos literários é, quanto a mim, uma tarefa que implica uma boa dose de submissão ao objeto, um esforço para fazê-lo falar desde o seu tempo e lugar. Mas fazê-lo falar para nós. É certo que se pode usar os textos literários de outra forma: como exemplos de teoria ou campo de teste de hipóteses metodológicas; ou ainda, normalmente por meio de partes selecionadas, como elementos de prova de teorias ou ideias gerais sobre várias coisas. E também se pode fazer com que falem algo que não falaram ou que falem algo que hoje parece X e no tempo deles parecia Y. Tudo isso, nessa diversidade, faz sentido. E não duvido que em quase todos esses casos a prova da competência possa ser feita. Que um aluno possa trazer um texto ao professor e que este possa fazer como fazia o meu professor de xadrez. Mas também não duvido de que uma aproximação ao texto a partir de um amplo repertório cultural, uma leitura que não violente o texto para fazê-lo dizer apenas uma coisa ou impedi-lo de dizer outras, é capaz de dar conta de um leque muito mais amplo de textos e de gerar respostas mais duradouras nos estudantes, permitindo-lhes mais ampla formação. Quando eu cursava a faculdade de Letras, caiu sobre nós o Estruturalismo. Foi uma febre. Um sarampo, como depois se disse. A Linguística era tida como a chave das ciências humanas. As aproximações linguísticas ao texto literário proliferaram. A vertente mais ativa foi a que teve na palavra “estrutura” o seu esteio. Uma leitura como a que Jakobson fez de um poema de “Mensagem” foi imitada até a exaustão. A competência dos professores que aderiram era inegável: um texto ia para a lousa ou para a transparência e era impiedosamente desmembrado, em busca de todo tipo de estrutura: acoplamentos, paralelismos, quiasmos, classes de palavras, paronomásias, anagramas, oclusivas, dentais, sibilantes etc. Drummond compôs, sobre essa prática de vivissecção, um poema engraçado, “Exorcismo”, com um refrão que pedia a Deus para nos liberar de uma aluvião de termos técnicos – e das formas de leitura que deles se valiam ou neles se escoravam. Passou em certo momento o sarampo, mas deixou cicatrizes. Houve gerações que, no ensino médio ou no superior, foram expostas. Ler literariamente, naquele tempo, para muita gente, era esquartejar um texto e exibir a sua anatomia: os ossos, os músculos, os tendões. Fora disso, era tudo gordura. E melhores eram os textos quanto menos gordura tivessem. Quando a “teoria” saiu de moda e a forma de leitura idem, a competência de leitura específica de professores treinados no modelo, e só nele, se esvaiu. Os que ficaram aferrados àqueles mecanismos interpretativos passaram rapidamente do laboratório de vanguarda ao depósito do museu. 

 

Notas sobre ensino - 4

 

No último post terminei por desviar talvez o assunto e evocar os tempos em que estudar literatura pareceu, no Brasil, tratar de responder, de certo ângulo de visão, à pergunta: como funciona o texto literário? Como funciona a máquina do poema? No caso do romance, a perspectiva teve menos sucesso ou menos aplicação. Talvez porque o método seleciona o objeto? O pressuposto define o lugar do exercício do método? Seja como for, voltando ao ponto: para mim, ensinar literatura é ensinar a ler textos literários. Por isso mesmo, retomando, creio que tanto melhor é o resultado do trabalho da leitura quanto mais se permita que o texto force os limites do método ou dos pressupostos do leitor. Os melhores professores que tive foram os que não obrigavam o texto a dizer isto ou aquilo, nem tratavam de buscar a pedra filosofal da literariedade, muito menos os que moíam e peneiravam um texto em busca dos pedregulhos com que escorar ideias sobre a sociedade. Mas agora, nestas divagações preparatorianas, surgem de novo perguntas incômodas. Por que estudar literatura na escola? Por que estudar só literatura e não as demais artes, isto é: por que parece natural a muita gente que somente a literatura seja a única arte exigida como parte do currículo? Será por inércia curricular que as universidades pedem, no vestibular, apenas o conhecimento da história literária ou de obras literárias, e não de pintura, escultura ou música? Quando a questão da nacionalidade era central, a pergunta de por que estudar literatura, ou por que a literatura tinha proeminência sobre outras artes nem fazia muito sentido. Isso ainda era muito forte nos tempos de Antonio Candido, como se vê pela famosa proposição de que é a nossa pobre e fraca literatura que “nos” exprime. Daí o dever de amor que ele ali preconizava. Mas e hoje? Qual o futuro da literatura como disciplina escolar e como parte essencial da educação dos cidadãos? Por quanto tempo ainda haverá a obrigação de estudar literatura e, portanto, a necessidade de ensiná-la na escola regular? Como estas divagações nasceram de um convite para falar mais uma vez sobre ensino de literatura, creio que é daqui, deste lugar mais incômodo, que deva prosseguir. Mas termino estas anotações por confessar que ainda não sei bem como.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Um manuscrito

Isto estava em um caderno muito antigo. Manuscrito, em péssima letra, de leitura tão árdua que não garanto a fidelidade nem a autoria.

Trazia ainda uma palavra feia, que tratei logo de ocultar para menor ofensa ao leitor.


O verso 12 foi o mais obscuro, de decifração mais difícil, dada a condição do material. 


A lição deste texto é a do Alcir, a quem pedi socorro. 

A minha dizia: Que coragem te dê no que restou.

 

 

Ó bárbara criatura, ó desprovida: 

“Se em cada verso meu onde c*g*ste

Uma rosa se erguesse numa haste

Seria esta clepsidra bem florida!”

 

- De nada valem reis ou marafonas

Em teu socorro virem com asnices:

Não há como ocultar tuas sandices,

Não há como esconder um Amazonas. 

 

E se vires que possas afogar

Alguma inveja no bestunto teu,

Roga ao Deus que teu cérebro encurtou

 

Que fé te dê no pouco que sobrou

Pra confessar que no trabalho meu

Cuspindo disfarçaste o chupitar.

 

 

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Monstros masculinos

 Estive lendo um artigo no The Guardian. Era assinado por Claire Dederer. Minha ignorância englobava também esse nome. Então fui à procura. Aprendi que é uma autora norte-americana conhecida. O artigo que li era um extrato do livro “Monsters: A Fan’s Dilemma”. Achei-o na Amazon, felizmente em versão Kindle. Sua capa é divertida. Veremos o livro, que comprei, mas ainda não li. Estou ainda com o texto do jornal.

O artigo merece atenção. A autora desde logo assume o lugar de onde pensa: o de uma mulher, vítima da opressão e agressão masculinas. Mas seria ingênuo pensar que as questões que apresenta se limitem ao universo das leitoras, embora ela explicitamente atribua a propalada separação entre a biografia e a obra, no sentido de que a qualidade estética pode ser avaliada por si só, aos homens. Eis como escreve: “Quando comecei a explorar esse problema, descobri que críticos masculinos desejavam que a obra permanecesse intocada pela vida.” Na sequência, identificando “male critics” com “a voz da autoridade” desenvolve um parágrafo que parece um petardo endereçado aos axiomas do New Criticism, mas não só.
O ponto que mais me interessou talvez tenha sido o jeito como ela descreve o crime de um homem monstruoso: uma mancha, que vai se espalhando pelo entorno, pela obra. 
Na apresentação do livro na Amazon, lemos: “O que fazer da arte de homens monstruosos? Podemos amar a obra de Roman Polanski e Michael Jackson, Hemingway e Picasso? Deveríamos amá-la?” No artigo, além desses nomes aparece o de Bowie, que desvirginou uma menina de 15 anos. 
O crime de Bowie inclusive lhe parece mais grave na medida em que a menina não sentia que era uma mancha a perda da sua virgindade para um artista que adolescentes (inclusive Claire Dederer, no seu tempo) adoravam. 
Mas voltando ao ponto da mancha. Pensei que a melhor expressão para nomear o que ela descreve talvez fosse “ferrugem”. Porque a ferrugem tem essa propriedade de se espalhar, corroer, como uma espécie de podridão líquida que se derrama em todas as direções.
E fiquei pensando em quais autores eu tinha sentido, por conta da sua biografia, essa ferrugem a corroer a obra. Desses que ela mencionou, fixei-me no caso de Hemingway, um autor que realmente amo – para usar o termo que ela usa. Sucede que li certa vez uma biografia que lançava várias manchas sobre o caráter e mesmo sobre a motivação e origem da obra de Hemingway. Uma péssima biografia, eu creio, escrita por alguém que antipatizava com o autor de modo muito intenso, Anthony Burgess.
Como já se vê, não houve mancha que ali se lançasse sobre o homem Hemingway que se transportasse, no meu julgamento ou afeição, para a obra do autor de “Adeus às armas”. E depois ainda li outras. E sei da antipatia que o escritor desperta em certos meios, dos ecológicos aos feministas, passando por largo espectro. Mas a verdade – talvez por ser eu mesmo um “crítico masculino”, como diz Dederer – é que ainda leio com grande prazer, pela terceira ou décima vez, um conto do autor de “O sol também se levanta”. Ao mesmo motivo alguém poderia atribuir o fato de que nenhuma revelação sobre Salinger, verdadeira ou não, tenha afetado minimamente a minha fascinação pelas suas “Nove histórias”.
Resta agora ler o livro da autora, para ver se a minha insistência em acreditar que “a thing of beauty is a joy for ever” não é, no final das contas, alguma desprezível cumplicidade com monstruosas criaturas.

Serviço: https://www.theguardian.com/books/2023/may/06/can-i-still-listen-to-david-bowie-a-superfans-dilemma?CMP=fb_gu&utm_medium=Social&utm_source=Facebook&fbclid=IwAR0KST6J8zXD5S5ustvpSzAXS-Jencnx3pBRugeK-tSv0KeHhpAxEeoxRI0&mibextid=Zxz2cZ#Echobox=1683368487

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Leo Vaz

 Alexandre Eulálio conheceu Leo Vaz. Gostava dos seus livros e gostou de saber que eu também. Na verdade, houve uma época em que pensei seriamente em lhe dedicar um trabalho mais longo. Queria escrever – e o faria ainda se tivesse força para isso – um estudo sobre um tipo de literatura que ficou soterrada pela aluvião da herança modernista. Pensava em centrar o trabalho sobre dois livros, “Vida ociosa”, de Godofredo Rangel, e “O professor Jeremias”, de Leo Vaz. Ambos publicados em 1920. Alexandre, como é fácil imaginar, adorou a ideia. Como incentivo, um dia me apareceu com o exemplar cuja foto vai anexada. Eu tinha defendido o mestrado no ano anterior ao da dedicatória. Queria que ele me orientasse, mas ele se recusou. Não tinha formação, dizia. Não era um acadêmico. Era um diletante.

Agora há pouco, arrumando os livros, deparei com esse exemplar meio esquecido. Junto com ele, o primeiro que li do autor, quando ainda era muito jovem, e que Alexandre menciona na dedicatória. Só depois, já durante o mestrado, vim a conhecer essas “Páginas vadias”, e ainda “O misterioso caso de Ritinha”, que era uma segunda edição “sorrateiramente aumentada pelo autor”, como se lia no frontispício.

Ao folhear esses volumes, fiquei matutando. Autores como Leo Vaz e Godofredo Rangel praticamente desapareceram. Do último, houve recentemente uma reedição em grande estilo, que recebi de Wander Melo Miranda. Mas de Leo Vaz não creio que se tenha reeditado nada de modo sistemático. E não tive notícia de estudos universitários sobre esse filão ainda por explorar e avaliar, que foi a prosa que nasceu ao lado ou mesmo antes da modernista e depois correu ao lado dela.
Lembro-me também de ter lido, na época, entre outros, um escritor de Piracicaba, em cujos livros encontrei muita boa matéria para reflexão, principalmente sobre o que eram os serões da pequena classe média nas pensões onde viviam estudantes e funcionários para os quais a cultura literária e linguística era um capital importante para o sucesso e a ascensão possível.

Cheguei a comentar com Antonio Candido sobre esses tópicos de interesse, e foi uma desilusão. Sua resposta foi que aquele escritor especialmente era um chato, que lhe enviava todos os livros, mas que ele nunca tivera paciência de ler. E concluiu que ali, naquele campo em que eu pretendia laborar, pouco haveria de fato de interesse. Não concordei. E não foi por isso que desisti do trabalho e enveredei pela literatura portuguesa. Foi, sim, justamente para escapar de algo que me parecia complicado, que era a assunção dos preconceitos modernistas, na esteira da vaga acusação de “anatolianismo” com que Mário de Andrade, se não estou em erro, fustigou os não-modernistas da linhagem que me interessava.


Em todo caso, trouxe para a mesinha de cabeceira agora à noite o Leo Vaz, mesmo com o risco pulmonar dos farelinhos de papel e dos restos de poeira imbricados nas lombadas. Quem sabe me animo ainda um dia.

sexta-feira, 10 de março de 2023

Perfis 7 - Antonio Arnoni Prado



Certa vez, numa conversa sobre o Modernismo, de repente perguntei ao Arnoni se ele era da família Prado. Ele parou de falar e dispôs a mão na frente do queixo, num gesto todo seu: só o indicador, meio dobrado, ocultava um pouco do sorriso estranho, no qual os cantos da boca não se erguiam, mas abaixavam num esgar controlado. “Que é isso, companheiro? Sou um prado do Tremembé!” 


Arnoni era homem de poucos gestos, mas expressivos. Gostava de ficar de meio perfil para o interlocutor, olhando de esgueio. Não falava alto nem baixo e tinha uma bela voz. Na verdade, sempre me pareceu que poderia ser ator. Um galã, com rosto quadrado e olhar um tanto enigmático, como se ponderasse com certa hesitação tensa as palavras e os movimentos dos músculos do rosto. 


Tinha na fala o hábito das reticências, que intercalava com uma combinação esparsa de exclamação com interrogação, todas sempre apoiadas num risco de ironia. 


Se dissesse que o temperamento era melancólico não creio que incorresse em erro. Mas talvez valesse mais a pena sublinhar uma certa camada de tinta machadiana, aquela pátina de descrença que a gente vai percebendo ao longo da evolução do escritor, entretanto sem dose de cinismo ou de exibicionismo irônico.
Quando certa vez me socorri do valhacouto dos desamparados, que era a casinha campineira do Haquira Osakabe, Arnoni lá foi parar também. Havia mais dois quartos na parte interna, que ele recusou. Preferia ficar num cômodo alijado, no fundo do quintal. Dava mais certo com ele, afirmou. 


Foi um conviva quase invisível. Vez por outra passava ao lado da janela aberta da salinha de jantar. Eu estava ali, normalmente estudando. Ele cumprimentava, às vezes parava um minuto. Certa vez, parou mais. Falou um pouco de tudo e depois sacou da bolsa um exemplar do Baudelaire, da Pléiade. Estou muito bem acompanhado, me disse, segurando o livro como um amuleto. E se foi.


Não tive tempo de dizer nada, mas se tivesse talvez teria dito que pelo aspecto de ambos não pareciam boa companhia mútua. 


Não tive segunda chance: em poucos dias um de nós deixou o refúgio e depois só nos falamos institucionalmente.


Aliás, creio que essa era a forma preferencial de relação do meu fugaz companheiro da casinha da rua Amélia Bueno.


Apenas uma vez o vi fora da contenção habitual. Foi durante o período mais tenso da vida do departamento. Fundado por Antonio Candido e organizado a partir de um núcleo composto por seus orientandos, vivia o DTL um processo de redefinição. Arnoni, naquela época, se recuperava de alguma lesão nas pernas e caminhava com auxílio psicológico de uma bengala.


Aquilo na verdade lhe caía bem. Ele não fumava cachimbo, que eu soubesse, mas tinha um pouco a boca torta, como se diz dos habituados à arte. Com a bengala, a possível reminiscência do cachimbo ressaltava os traços do rosto e a contenção habitual dos gestos. Parecia um aristocrata.


Mas numa das reuniões nas quais se debatia a herança, o encanto se desfez. Enfrentando um oponente mais ardido, enquanto dirigia palavras num tom de voz grave, alguns decibéis acima do usual, Arnoni foi se aproximando lentamente. Enquanto gesticulava, parecia ter se esquecido do apoio psicológico, que agora se movimentava quase por vontade própria. Em certo momento, como fecho da frase, ergueu a mão direita. E com ela a bengala, que ficou vibrando no ar por alguns segundos densos, pesados como a madeira de que era feito o objeto gesticulante.


O oponente não me lembro se se intimidou, mas Arnoni pareceu surpreso. Não de todo insatisfeito com o gesto, eu creio. Mas num minuto se conteve, voltou a usar a bengala na sua função precípua, apoiou-a no chão, virou sobre os calcanhares e caminhou solenemente de volta ao fundo da sala, onde se sentou.


Eu me lembro de que o olhava entre perplexo e divertido. Estávamos praticamente lado a lado, mas não julguei que a bengala, embora eu estivesse no mesmo campo do interlocutor de há pouco, fosse de novo adquirir vida. Percebendo meu olhar, ele fez o mesmo gesto característico que descrevi no começo da crônica. Ainda parecia um tanto irritado e combativo. Afinal, era um aspecto do legado do Mestre que estava sendo questionado. Mas já se via que o ar fleumático ia ganhando terreno até subir à superfície, na forma de um meio sorriso, entre resignado e cúmplice.


Não o vi muitas vezes depois disso. Minhas atividades na Editora me pouparam de muitas reuniões burocráticas e anódinas. E soube que, naquele bom tempo em que não havia lista de presença nem problemas com ausência, ele também não dava muito as caras por lá.


Quando tive notícia da sua morte, não pude, por conta da minha própria saúde, ir prestar-lhe homenagem. O que faria com gosto e por justiça. Como faço aqui.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Versificação: acento e metro

Um amigo me diz que há interesse entre poetas jovens pelas questões de métrica. Eu julgava que não, e fiquei animado com a notícia. Resolvi, então, fazer aqui uma pequena provocação.

E é a seguinte: quando dizemos que a nossa versificação é silábico-acentual, queremos dizer exatamente o quê? Que a base é silábica e que a distribuição das tônicas de verso (ou pausas, como diria Castilho) ocorre segundo esquemas tradicionais. Exemplo: uma linha que tem dez sílabas poéticas, tem tônicas de verso preferenciais na quarta ou na sexta. No primeiro caso, o do verso sáfico, ocorre também na maioria dos casos um acento na oitava sílaba. E no segundo caso, o do verso heroico, há uma variante com acento na terceira e outra com acento na segunda.
Essa seria uma definição correta, porque tradicional. E porque tem guiado, no nível básico, a prática por décadas ou séculos.
Entretanto, como reconhece o próprio Castilho, há poetas em cuja obra predomina o verso correto, porém ruim...
Sempre pensei nisso, e terminei por suspeitar de que talvez haja outra componente importante da nossa versificação, que possa explicar em parte esse paradoxo do verso correto, porém mau. O que, em certo sentido, é uma conversa sobre como o metro e o ritmo combinam ou não combinam, conversam ou não conversam.
Do meu ponto de vista, essa componente é o caráter acentual da nossa língua, enfatizado pela nossa versificação. (Quase diria: a oralização literária, o modo como oralizamos tanto a poesia quanto a prosa literária, acentua o lado acentual da língua, mas essa é outra discussão.) 
Em suma, na denominação “silábico-acentual”, creio que devem ter o mesmo peso os dois termos. Com isso quero valorizar outro aspecto do “acentual”: uma versificação ou oralização baseada na tendência de que entre uma tônica e outra haja aproximadamente o mesmo intervalo de tempo. Ou seja, que haja isocronismo entre as tônicas. Na versificação acentual, para isso acontecer, quando há menos sílabas entre uma e outra tônica, inserem-se pausas; e quando há mais sílabas, a velocidade da elocução é maior. 
Que há versos em português assim construídos, em prejuízo da base silábica, parece certo. Um exemplo é a cantiga que diz: palma palma palma / pé pé pé / roda roda roda / caranguejo peixe é. A base silábica é redondilha menor: cinco sílabas. No segundo verso, em vez de uma átona depois de cada “pé” temos, para completar o pé, uma pausa. Já no último verso é preciso alguma ginástica para enquadrá-lo no tempo da cantiga. Talvez a pausa entre versos seja usada para abrigar as duas primeiras sílabas (caran-), porque tudo soa muito natural quando cantado.
Se assumirmos que a isocronia é algo importante na nossa versificação, muita coisa muda na nossa maneira de entender o ritmo dos versos tradicionais, como o decassílabo e as medidas velhas...
E aqui, eu creio, pode começar uma outra discussão, sugerida por outro amigo: a caracterização do poema em prosa em português. Minha intuição, sem ter pensado muito no assunto, é que um texto de poema em prosa, não tendo metro, no sentido estrito, pode seguir esse princípio: o de favorecer ou incentivar a leitura, silenciosa ou em voz alta, que destaque a isocronia.
Castilho andou buscando algo assim, quando escandiu trechos imensos de boa prosa, em busca dos metros clássicos. Não conseguiu nenhum resultado. Talvez mesmo porque ali não era o metro silábico que contava, mas o princípio da versificação acentual.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

De uma conversa com Thomaz Albornoz Neves

 Na obra de Manuel Bandeira, a questão do metro em poesia tem um desenvolvimento interessante: no seu primeiro livro, a metrificação parece algo pacificado, no sentido de que ocorre natural e harmonicamente. Depois, há um momento no qual, parodiando um título, podemos falar em “metro dissoluto”. Então, mais do que dissolver o metro, Bandeira passou a buscar o “verso puro”- no sentido de Ureña. A propósito, é bem conhecida a passagem do “Itinerário de Pasárgada”, na qual ele expressa o ideal dessa fase ou busca: “Ora, no verso livre autêntico o metro deve estar de tal modo esquecido que o alexandrino mais ortodoxo funcione dentro dele sem virtude de verso medido.” Por fim, à medida que progredimos na leitura da sua obra completa, observamos o retorno do metro, da linha medida, sem drama – por assim dizer, outra vez pacificada –, que vai ombreando com os versos livres, até predominar.

Sei que essas questões interessam hoje a pouca gente. No geral, perdemos a noção do metro. Os otimistas podem dizer que, em troca, ganhamos na capacidade de perceber o ritmo. Os pessimistas, que o ritmo da elocução, perdida a memória do metro, pode predominar na leitura, mas não na escrita, onde a linha cortada sem metro nem ritmo é quase apenas um pequeno enigma, uma forma de criar hesitação.
Voltei a me lembrar disso tudo porque um dos poetas cuja obra me interessa muito, depois de a construir sem metro, mas fazendo daquilo que Mallarmé denominou a “respiração perceptível no antigo sopro lírico” ou “direção pessoal entusiasta da frase” a base da sua poesia, de repente se lançou a produzir sonetos.
Conversamos ontem sobre isso. Sobre esse assunto abstruso, a metrificação. E sobre o que significa para nós o apagar-se do fantasma do verso medido, ainda tão forte no tempo de Mallarmé, depois do legado de Victor Hugo.
E foi então, no final da conversa, que, como um cumprimento ao poeta, enviei-lhe este soneto improvisado, feito com versos misturados naquilo de que falávamos: heroicos e provençais – e ainda misturado na forma, pois italiano um pouco na divisão lógica, e inglês outro tanto na distribuição das rimas.

Falando com Thomaz sobre o soneto,
Dizia-lhe que o verso bem medido
Não tem ritmo, mas só subentendido
O padrão da cantilena, o esqueleto
Que dá sustentação à carnadura
E que mal se adivinha, quando a dança
Ergue alto a carne, reforçando a aliança
Do corpo e do sentido, em forma pura.
Enfim, dizia, o metro não ouvido
Na leitura expressiva, ainda persiste
Na base, e bate ou vibra ali em despiste,
Fantasma ora aparente, ora escondido.
Se sem metro há poesia, e ainda verso,
Melhor é o ritmo com metro submerso.

domingo, 29 de janeiro de 2023

Primeiro capítulo de um livro não escrito


 Matão era uma cidadezinha pacata, integrada ao mundo pela ferrovia Araraquarense. É certo que também passava ao lado a rodovia Washington Luís. Naquele tempo, porém, o trem era mais seguro e na linha férrea não havia desvios, com eventuais atoleiros, nem vacas pastando à margem, perigosamente, naquela boa preguiça mastigante que eu não me cansava de admirar.

Quanto à gente que lá vivia, eu me lembro de uma frase que meu pai dizia rindo: se alguém fosse ao Banco do Brasil e visse as placas com os nomes dos caixas e demais funcionários, ia achar que era a escalação da Azurra. 

De fato, os italianos eram maioria e, dentre eles, os que tinham origem no Vêneto. Os sobrenomes terminados em consoante já indicavam o dialeto aos menos familiarizados. Mas os demais também acusavam a origem.

Pequena e pacata, era entretanto uma cidadezinha progressista, como disse Mário de Andrade quando a visitou. Ao menos no que diz respeito à indústria. Quando a deixei, no começo dos anos de 1970, um grande cartaz na entrada avisava ao visitante que no município havia cerca de trinta e cinco mil habitantes e cento e quarenta e tantas indústrias.

Depois, a essas empresas de origem familiar veio juntar-se uma grande fábrica de suco de laranja, fazendo brotar em volta campos perfumados e fábricas menores no mesmo ramo. 

As multinacionais trouxeram um contingente grande de migrantes, e até o arrabalde final da cidade, que no meu tempo era a Vila Raposa (acho que era esse o apelido), foi englobado na parte mais central. E também o Bairro Alto, que ficava depois da estação ferroviária, esse marco divisório do miolo e das franjas da cidade, passou a pertencer ao núcleo principal.

Confesso que hoje perdi o contato e não sei como aquilo anda. Mas creio que não anda mal.

Uma outra comunidade de habitantes de algum relevo – se pensarmos nas ramificações desde Matão até São José do Rio Preto – era a de origem árabe. E nessa forquilha me encaixo eu: entre o Vêneto e a Síria (ou o Líbano, porque as fronteiras mudavam mais antes do que hoje).

O lado vêneto, porém, não se radicou ali. Na sequência da crise de 1929, a terra conseguida em pagamento de trabalhos não virou indústria, como no caso de outros vizinhos. Virou mais terra, muito mais terra, no norte do Paraná, para onde o avô levou a prole para derrubar a mataria e plantar café.

Tivessem ficado em Matão, em vez de funcionário público eu poderia ser herdeiro de indústria metalúrgica, porque talento na área não faltava ao avô, nem aos tios, nem ao pai. De modo que mesmo faltando a mim a coisa estaria garantida.

Já no Paraná, as geadas trabalharam contra e só o empenho de vários anos permitiu que a tribo se fosse ajeitando na terra e na comunidade, numa vila que hoje tem tantos parentes quanto o meu apartamento tem livros.

O outro braço da forquilha é o árabe. Ou turco, como se dizia. Monteiro Lobato em algum lugar fala da venda do Elias Turco. Pois era também um Elias Turco o rapaz que se estabeleceu na beirada de uma das fazendas dos ingleses, num sítio pequeno, ao lado da Estrada do Rumo, num armazém de duas portas.

Elias veio cedo do Líbano ou da Síria. Provavelmente desta. Primeiro ele mascateou a cavalo, depois, já com algum capital, de caminhonete; por fim, abriu a venda, que denominou Casa Síria, casou-se com uma calabresa brava, que foi o terror dos clientes, dos filhos e dele mesmo. Ainda conseguiu comprar um pequeno sítio e trazer a velha mãe para a nova terra. E ali, arrastando a perna entre o quarto e a salinha atrás do balcão, onde gostava de se sentar para ouvir a conversa do comércio, terminou os seus dias, depois de dois derrames, dois anos mais jovem do que eu neste momento em que escrevo isto.

Meu pai, depois de descobrir que não estava talhado para o sacerdócio, largou o seminário e foi trabalhar de escrevente na fazenda Tamanduá, do conjunto inglês. Num final de tarde, reparou na turquinha, na venda. E muitos anos depois estavam casados: quando ele conseguiu, como parecia ser a praxe do tempo, estabelecer-se num bom emprego.

A casa onde cresci era típica da cidade: tinha duas janelas dando para a rua, de onde minha mãe atendia as vizinhas e clientes dos botões forrados com que ajudava nas despesas. Um portão de ripas dava acesso a um caramanchão, que era uma parreira de uvas que nunca deram fruto e que servia de garagem para o velho Ford 38. Seguindo adiante abria-se um quintal onde reinava uma jabuticabeira e havia um quartinho que mais parecia uma capela. E era, em certo sentido, pois ali o meu pai, como seus irmãos em seus quintais, instalou uma sagrada reprodução, em ponto menor, da oficina ancestral.

A rua era perpendicular ao rio. Da frente da casa via-se perfeitamente a baixada e a encosta da colina, sobre a qual ficava a estação de trem. Do lado oposto, duas casas acima ficava a Padaria Central, que era um dos centros culturais e políticos da cidade. Assim como a farmácia tinha sido em outros tempos.

Matão era conhecida por duas coisas e depois ficou sendo, em certos meios, por três. A primeira delas é uma valsa famosa, intitulada precisamente “Saudades de Matão”. Sempre me perguntei se esse “matão” do título se referia ao, na época, povoado de São Bom Jesus do Matão, ou se era simplesmente uma referência vaga a um mato grande, sinônimo de natureza agreste. A segunda é a tradição de enfeitar as ruas para a passagem do Corpo de Cristo. Parece ter começado com simples flores espalhadas no chão, mas logo evoluiu como a cidade, adquirindo um aspecto de grande artesanato, até chegar a um estágio quase industrial, com moldes metálicos que garantiam a precisão dos padrões. Por fim, a terceira é mais modesta e limitada, mas não menos notável: Matão foi um celeiro tão grande de enxadristas para os Jogos Regionais e Abertos, quanto de laranjas para as fábricas de suco.

E aqui voltamos à rua de casa, porque a porta do celeiro era justamente a Padaria Central, onde o padeiro, vendido o pão do dia, cantava árias de óperas italianas junto ao balcão deserto e acolhia os jovens interessados na arte do xadrez, discutindo com eles partidas e aberturas, sobre um grande tabuleiro de madeira que nunca deixava de estar pronto, mesmo entre uma fornada e a seguinte.

Foi nessa cidadezinha adorável, ensolarada e calorenta, e nessa rua que desde a madrugada era invadida pelo cheio de pão fresco, e também nos arredores rurais, em que os cafezais foram lentamente sendo substituídos por laranjais, pastos e finalmente canaviais, que cresci. Aí vivi, vi, ouvi ou imaginei a partir de indícios, as histórias que agora vou contar.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Poesia e inteligência artificial

 Acho interessantes algumas reações ao chat de Inteligência Artificial. As pessoas dizem: é um programa, não tem sentimentos, não tem emoções, não traduz nenhuma mensagem etc. Sim, é um programa. Sim, não tem emoções, nem sentimentos. Mas não estamos mais falando de programas como a Siri ou a Alexxa. Aqui se trata de  programas que permitem criar algo novo, a partir de parâmetros. Isso é mais ameaçador, mais instigante ou mais animador, conforme o ponto de vista. Porque nós também funcionamos assim. Quero dizer: somos seres de linguagem, temos os protocolos todos. E somos também regidos por eles. Mudar esses protocolos é para nós difícil. Temos apego emocional a eles. E como custaram esforço tendemos a querer mantê-los. Já a IA tem, nesse sentido especial, mais “liberdade”, por assim dizer.  Como provocação, podia referir textos como o Tradição e o talento individual, do Eliot, ou a Conferência sobre lírica e sociedade, do Adorno. Se ao poeta se pede, no lirismo, uma despersonalização ou um mergulho na língua, de modo que ele seja um lugar de atualização da tradição ou uma voz pela qual a linguagem fale, e não ele, então o que poderá acontecer quando programas como o ChatGPT tiverem aprendido o suficiente, tiverem internalizado vários “paideumas” (para usar o termo do Pound), e puderem responder a comandos humanos que lhes peçam um poema? Eu mesmo tive surpresas quando lhe pedi para fazer haikais. Num primeiro momento, veio tudo muito explícito. Então lhe fiz um pedido não muito simples. Que encontrasse uma situação que transmitisse o sentimento ou sensação designada por uma palavra, sem a utilizar. Pedi-lhe que encontrasse, nos termos do Eliot, um “correlato objetivo”. E a máquina fez. Ou seja, os protestos humanistas não atingem o alvo. Também porque quem pode garantir que um poeta, ao fazer um poema, não esteja agindo exatamente como o ChatGPT, ou seja, mobilizando algoritmos e jogos de linguagem e protocolos que definem justeza, expressividade, profundidade etc? Dizer que um poema feito pela IA não vale o mesmo que um feito por um humano é supor que sempre um humano será “autêntico” ou expressará sentimentos reais ou coisa semelhante... Já quanto a produzir conhecimento, veremos. O ChatGPT mal completou 3 meses de vida. E está aprendendo rapidamente. E ainda mais rapidamente ampliando seu repertório.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Machado na hemeroteca

 Não saberia como louvar com palavras justas o trabalho de digitalização dos jornais feito pela Biblioteca Nacional. Neste período difícil, enquanto não me posso permitir trabalhos de maior fôlego, percorro com prazer tanto o passado distante, quanto o passado imediato. Andei, por exemplo, pela revista A Estação, onde Machado publicou, entre outras obras, “O Alienista”. Está certo que aí o interesse foi utilitário: devo escrever algo sobre esse conto e por isso achei interessante ver onde e como foi publicado, onde foram os cortes, se eles coincidiram com as partes lógicas, se nos cortes há “ganchos” etc. Pode parecer uma tarefa sem sentido, mas talvez não seja nesse caso e em alguns outros. 

Antes, porém, de especular sobre isso, devo dizer que me divertiu ver os trechos de Machado entre brocados, espartilhos e todas as  notícias de figurinos franceses. Aquilo era o mundanismo impresso, o sonho de consumo das endinheiradas da época. E mostra que, de fato, o “leitora” com que Machado interpela a pessoa que lê pode ser lido em clave dupla: uma pragmática, pois o lugar de publicação tinha majoritariamente esse sexo como destinatário; outra irônica, no sentido de que a expectativa de leitura do suposto leitor ou do lugar, por um lado, e o objetivo e expectativas do autor, por outro, podiam não coincidir.

Agora voltando ao ponto. Mesmo que não se justificasse no caso de “O Alienista”, não é desprovido de interesse esse tipo de excursão temporal na materialidade das letras, porque devo escrever também, se a tanto me ajudar saúde e arte, algo sobre “Casa Velha”. 

Creio ter lido em Lúcia Miguel Pereira que ela considerava que a composição da “Casa Velha” era bem anterior à data da sua publicação. E mais: ela acreditava que o texto tinha sido desenterrado para cumprir obrigações jornalísticas. Já John Gledson discorda e atribui a esse mesmo conto a responsabilidade de fechar um quadro de análise temporal da sociedade brasileira. Isso quereria dizer que teria lugar de relevo na sua obra. De fato, até certo ponto o machadiano inglês faz dela uma espécie de chave para a compreensão da relação da ficção com a história.

Ora, confesso que desde o princípio concordei com ela e não com ele, porque não vi nunca maior atrativo nesse texto. Nem logo que li, nem mesmo depois de ler o livro do Gledson, nem hoje. Parece-me uma pouco interessante retomada dos romances primeiros de Machado, algo portanto deslocado em relação ao que ele fez depois da “virada” das “Memórias Póstumas”.

Talvez por isso me interessasse ver como se recortou, para publicação em “A Estação”, o texto de “Casa Velha”. E o que vi foi que o corte é, por assim dizer, aleatório. Não se faz de acordo com as partes lógicas do enredo, nem segundo “ganchos” narrativos. Também a extensão das partes é muito variável. Isso poderia simplesmente significar que o texto não foi pensado como folhetim, ou melhor, como publicação seriada. Mas creio que não. Creio que essa constatação só reforça a minha concordância com Lúcia Miguel Pereira: o texto parece mesmo ter sido um tampão, por assim dizer. O que havia à mão para cumprir o compromisso.

Em seguida, abandonando o século XIX, de um salto mergulhei no suplemento literário do Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, onde fiquei zanzando pelos meados da década de 1950, com outras confirmações ou descobertas divertidas. 

Ah, as maravilhas da tecnologia! E pensar que quando fiz a dissertação sobre a poesia concreta tive de ficar quase 15 dias no Rio de Janeiro, porque a BN estava em crise e os andares funcionavam em dias alternados... Era então muito difícil obter microfilmes. E nem se imaginava que um dia houvesse celulares para fotografar o que interessasse! Quando mais que um dia, de um lugar qualquer, com um simples notebook, sem pedidos a bibliotecários bem ou mal humorados, arquivistas lentos ou rápidos, se pudesse ter acesso quase instantâneo à memória dos séculos...

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Perfis 6: Ivan Teixeira

 

Os fundos da sua casa davam para o Horto, mas disse-me a Maria Eugenia que ele nunca foi até lá. Acredito. Era totalmente citadino e cartesiano, de onde lhe vinha o cordial horror ao desalinho e irracionalidade da natura bruta. Entretanto, lembro-me de ele me dizer que apreciava deixar comida aos macaquinhos, do que concluo que, embora não se aventurasse na desordem natural, não se opunha a que ela viesse até ele, enquadrada em horários e locais combinados. Não obstante, mandou construir uma casa em Vinhedo, que visitei, num condomínio em formação, que me parecia mais selvagem do que o domesticado Horto. Talvez por isso tenha lá deixado em exílio alguns livros bons, e voltado para a primeira. Afinal, lá estava acondicionada a mina de ouro – uma vasta biblioteca, onde brilhavam as lombadas de obras raras – e a parte que mais me impressionou: uma edícula que crescia numa espécie de torre ou alpendre fechado, sem mobília alguma. A acústica! – exclamou ele, de dedo erguido, assim que entramos. E calou-se. Depois fez vocalizações, que comprovaram o anúncio. E abriu um sorriso indagador. Ivan tinha um dos olhos levemente mais caído. Nessas horas, ele se fechava um bocado mais do que o outro, o que simulava uma piscadela ansiosa por concordância ou cumplicidade. Junto com o olhar fixo atravessando as lentes, era quase uma intimação. Admirável acústica! – eu repeti baixinho, como que a esquivar-me dela. E creio que era mesmo. Contou-me então Ivan para que a utilizava. Ele não acreditava inteiramente na escrita, ou melhor, na leitura silenciosa que um autor fazia da própria produção. Para ele, um texto só podia ser considerado razoável quando lido em voz alta. Aí, sim, os cacófatos mostravam as fuças, as palavras gêmeas se ferroavam mutuamente, uma frase em forma de centopeia indicava onde devia cair o machado, e a língua bífida, sedutora, das conclusões acomodatícias, era logo desmascarada pela outra língua, a dele, enquanto fazia rolar na boca as frases e parágrafos, em escrutínio. Já se vê que não me disse nada dessa forma. Eu que traduzi assim em homenagem ao Horto ignorado do outro lado do quintal. Talvez porque ali eu visse que ele compusera, fronteiro ao outro, o seu verdadeiro jardim, o seu paraíso terrestre, a sua vinha inesgotável. Nas estantes da ampla sala, altas a perder de vista, e naquela saleta despida, onde executava os textos. Pedi-lhe que me demonstrasse. Foi um pedido que mal teve a chance de afirmar-se nas pernas. Ivan me dispôs num lugar um pouco alijado, junto à porta, apanhou um maço de papéis e começou a rodear, com passos pausados e medidos, o aposento. Era como aquela contagem que as bandas fazem, antes da música. E ela logo veio: a leitura. Quem quer que o tenha visto ler um texto recomporá facilmente a cena: segurava o papel com uma das mãos e com a outra regia o discurso. Nenhuma ideia vinha nua. Cada uma com vestimenta própria: roupa de guerra, traje de baile, mero terno azul e até um jeans bem composto. Mas nunca de pijamas ou de camiseta. Vestia-as a voz, com o tecido da entonação, as botas do volume e o chapéu do timbre. O ensaísta, o buscador de raridades, o pesquisador, toda essa coorte se subordinava ali, na leitura, ao professor – que, no entanto, pela solenidade garbosa, tinha um pouco de padre. Na sala de aula ou num auditório, ao padre se juntava o showman, e muitas vezes o sobrepujava. Da mesma forma como um arqueólogo desenterra um pedaço de osso e dali logo deduz um lagartão inteiro, com barriga, rabo e focinho cheio de dentes, assim eu vi o Ivan deduzir por uma aba anônima do livro o seu autor. Com tal arte perante a classe foi lendo e relendo e deduzindo, como um detetive, mostrando aqui o nariz, ali as bochechas, mais além o lombo, até que o homem – creio que o Rosa – saltasse inteirinho e pronto para fora da orelha, como Minerva das coxas de Júpiter. Era também dublê de editor. Idealizava e levava adiante projetos, tanto na ECA quanto na Ateliê. Aliás, foi por seu intermédio que conheci Plínio Martins. Nos tempos em que eu dirigia a Editora da Unicamp, fizemos muitos projetos e viagens juntos. Na última delas, para a Feira de Guadalajara, Ivan começou a se queixar da comida mexicana. Tudo lhe fazia mal. De volta ao Brasil, foi ao médico. Em poucos meses, a doença o levou. Está fazendo agora, em 2023, dez anos.